sexta-feira, 2 de março de 2012

As raízes norte-americanas do nazismo

buscado no Gilson Sampaio 



Domenico Losurdo [*]
A invasão do Iraque, em Março de 2003, foi acompanhada por uma curiosa campanha mediática contra os movimentos de oposição à guerra, acusados então de anti-americanismo. É muito significativo que neste clima ideológico e político os acusadores não recordassem o terror exercido pelo Ku Klux Klan em nome do “americanismo puro”, ou do “americanismo cem por cento”, face aos negros e aos brancos que se opunham à supremacia branca. Tampouco recordavam a caça às bruxas de McCarthy contra os defensores de ideias ou sentimentos “não americanos”.
Em 1924, Correspondance Internationale (a versão francesa do órgão da Internacional Comunista) publicava um artigo escrito por um jovem indochinês imigrante nos Estados Unidos, no qual afirmava sentir grande admiração pelo desenvolvimento norte-americano, ao mesmo tempo que se horrorizava com a prática do linchamento de negros no Sul.
Um desses espetáculos de massas é descrito cruamente nesse texto: 

"O negro é cozido, flamejado e queimado, pois deve morrer duas vezes em lugar de uma só. É depois enforcado, ou mais exatamente, o que resta do seu corpo é pendurado... Quando já todos estão saciados, o cadáver é descido. A corda é então cortada em pequenos pedaços, cada um dos quais será vendido por três a cinco dólares”. 

No entanto, a denúncia do sistema de supremacia branca, não implicava uma condenação global dos Estados Unidos: a Ku Klux Klan tinha toda “a brutalidade do fascismo”, mas seria derrotado, não só pelos negros, judeus e católicos (todos vítimas em diferentes graus), como por "todos os americanos decentes". [1]

UM MARAVILHOSO PAÍS DO FUTURO
Foi um indochinês que comparou o Ku Klux Klan com o fascismo, mas as semelhanças de ambos os movimentos eram também evidentes para os autores norte-americanos da época.
Os homens vestidos de branco do Sul dos Estados Unidos eram frequentemente comparados aos camisas negras italianos e aos camisas castanhas alemães. Após assinalar as semelhanças entre o Ku Klux Klan e o movimento nazi, um acadêmico norte-americano da época chegava à seguinte conclusão:
“Se a Depressão não tivesse atingido a Alemanha tão duramente, o nacional-socialismo poderia ser hoje considerado como o é às vezes o Klan: uma curiosidade histórica predestinada ao fracasso”. [2]
Por outras palavras, o que explica, tanto o fracasso do Ku Klux Klan nos Estados Unidos, como a ascensoão do Terceiro Reich na Alemanha, mais que as distâncias na história ideológica e política, são os diferentes contextos econômicos. Mas deve também ser considerado o importante papel desempenhado pelos movimentos reacionários e racistas norte-americanos como inspiradores da agitação que conduziu Hitler ao poder na Alemanha.
Já nos anos 1920’s se tinham constituído as relações, o intercâmbio e a colaboração entre o Ku Klux Klan e a extrema direita alemã, para promover o racismo contra judeus, negros e outras pessoas não brancas. Em 1937, o ideólogo nazi Alfred Rosenberg exaltava os Estados Unidos como um “maravilhoso país do futuro”, que detinha o mérito de ter formulado a brilhante “ideia de um Estado racial”, uma ideia que devia ser posta em prática, “com um poder jovem” através da expulsão e deportação de “negros e amarelos”. [3]
Basta analisar as leis publicadas imediatamente após a chegada dos nazis ao poder para comprovar as semelhanças com a situação que então se vivia no sul dos Estados Unidos.
A posição dos alemães de origem judia na Alemanha correspondia obviamente à dos afro-norte-americanos no sul estadunidense. Hitler distinguia claramente, inclusive no âmbito jurídico, a posição dos arianos relativamente aos judeus e aos poucos mulatos que viviam na Alemanha. “A questão negra”, escrevia Rosenberg, “é o mais urgente de todos os assuntos decisivos nos Estados Unidos”; e uma vez que a noção de igualdade deixava de ser aplicada aos negros, também deixava de haver motivo para que não se extraíssem “as consequências necessárias para amarelos e judeus”. [4]
Nada disto pode surpreender. Desde que o fundamento do projeto nazi era a construção de um Estado racial, que outro modelo possível existia nessa época? Rosenberg mencionava a África do Sul, que devia permanecer solidamente em “mãos nórdicas e brancas”, e servia como um “sólido baluarte” diante da ameaça representada pelo “despertar negro”. Sem dúvida que, até certo ponto, Rosenberg sabia que a política segregacionista sul-africana era amplamente inspirada pelo sistema de supremacia branca surgido nos Estados Unidos.
Por outro lado, o objetivo de Hitler não consistia num expansionismo colonial tradicional, mas sim num império continental criado com a anexação e germanização de territórios vizinhos do Leste. A Alemanha era chamada a expandir-se para a Europa de Leste como se se tratasse do longínquo Oeste americano, tratando os “nativos” da mesma forma que os índios norte-americanos tinham sido tratados, sem perder de vista o modelo estadunidense, que o Führer exaltava pela sua “força interior sem precedentes”. [5]
Imediatamente após a invasão, Hitler procedeu ao desmembramento da Polônia: uma parte, da qual foram expulsos os polacos, foi diretamente incorporada no Grande Reich; o resto foi transformado em “Governo Geral” dentro do qual os polacos viviam “numa espécie de reserva”, como declara o Governador Geral Hans Frank, [6] o modelo norte-americano de liquidação da população originária foi seguido quase literalmente. 

O ESTADO RACIAL NA ALEMANHA E NOS ESTADOS UNIDOS
O modelo norte-americano deixou uma profunda marca inclusive no âmbito das categorias e linguístico. O termo Untermensch (sub-homem), que desempenhou um papel tão central como destruidor na teoria e prática do Terceiro Reich, não era mais que uma tradução de Under Man. O nazi Rosenberg estava bem consciente desse fato e expressou a sua admiração pelo autor americano Lothrop Stoddard, inventor do termo, que aparece como subtítulo -- The Menace of the Under Man (A ameaça do sub-homem) de um livro publicado pela primeira vez em Nova York em 1922 e traduzido para o alemão (Die Drohung das Untermenschen) três anos mais tarde. Relativamente ao seu significado, Stoddard afirmava que servia para designar a massa de “selvagens e bárbaros essencialmente incivilizáveis e incorrigivelmente hostis à civilização”, que deviam ser tratados de modo radical para evitar o colapso desta. Já antes de ser elogiado por Rosenberg, Stoddard havia sido recomendado por dois presidentes norte-americanos (Harding y Hoover). Mais tarde foi recebido com honrarias em Berlim, onde se avistou com as mais altas autoridades do regime, incluindo Hitler, que já havia começado a sua campanha para dizimar e dominar os Untermenschen, os "nativos" da Europa de Leste.
Nos Estados Unidos da supremacia branca, assim como na Alemanha em poder do movimento nazi, o programa para restabelecer a hierarquia racial estava estreitamente vinculado a projectos de incentivo aos melhores para que procriassem, evitando assim o risco de “suicídio racial” (Rassenselbstmord) que pesava supostamente sobre os brancos.
Em 1918 Oswald Spengler dava a voz de alarme, citando o presidente estadunidense Theodore Roosevelt. [7] Decerto que a advertência de Roosevelt contra o espectro do “suicídio racial” ou a “humilhação racial” era acompanhada peIa denúncia da “diminuição da taxa de nascimentos nas raças superiores”, ou seja, “o antigo stock de norte-americanos nativos” ou seja os WASP (White, Anglo-Saxon Protestant). Também aqui as descobertas da investigação histórica são surpreendentes. Erbgesund heitslehre (educação para a saúde hereditária) ou Rassenhygiene (higiene racial), outra palavra-chave da ideologia nazi, não são mais que as traduções para alemão do termo eugenics (eugenia) a nova ciência consagrada ao aperfeiçoamento racial, inventada em Inglaterra durante a segunda metade do século XIX por Francis Galton.
Não é por acaso que esta nova ciência foi recebida tão favoravelmente nos Estados Unidos. Em vésperas da Primeira Guerra Mundial, muito antes da chegada de Hitler ao poder, publicou-se em Munique um livro intitulado Die Rassenhygiene in den Vereinigten Staaten von Nordamerika (A higiene racial nos Estados Unidos da América do Norte), que no próprio título assinala já os Estados Unidos como um modelo de “higiene racial”. O autor, Géza von Hoffmann, vice-cônsul do lmpério Austro-Húngaro em Chicago, exaltava a América do Norte peIa “lucidez” e “pura razão prática” demonstrada, ao afrontar com a energia necessária, um problema muito importante frequentemente ignorado: nos Estados Unidos violar as leis que proíbem as relações sexuais e o matrimônio inter-racial podia ser punido com dez anos de prisão. Não só podiam ser perseguidos e condenados os responsáveis por esses actos como também os seus cúmplices. [8]
Já depois do acesso dos nazis ao poder, os ideólogos e “cientistas” da raça continuavam insistindo:
“A Alemanha tem muito que aprender com as medidas adoptadas pelos norte-americanos: eles fazem o que deve ser feito”. [9]
Merece destaque o fato de ter aparecido nos Estados Unidos, muito antes do que na Alemanha, a noção de “solução final” a respeito da questão negra num livro publicado em Boston em 1913. [10] Ievada mais tarde a cabo pelos nazis, empregando o mesmo termo (EndIösung) para resolver a “questão judaica”.
O NAZISMO como projeto mundial de SUPREMACIA BRANCA
No decurso da sua história, os Estados Unidos tiveram de enfrentar diretamente os problemas resultantes do contacto entre diferentes “raças” e o afluxo de numerosos imigrantes procedentes de todo o mundo. Por outro lado, o violento movimento racista, que aí surgiu no final do século XIX, constituiu uma resposta à Guerra Civil e ao período de reconstrução que se lhe seguiu.
Durante os séculos XIX e XX, a Ku Klux Klan e os teóricos da “supremacia branca” acusavam os Estados Unidos posteriores à escravatura (com a sua maciça entrada de imigrantes procedentes dos países europeus menos desenvolvidos e do Oriente) de ser uma “civilização mestiça” ou um “gentio de cloaca”. De forma análoga, Hitler descrevia no Mein Kampf a sua Áustria natal como um caótico “conglomerado de povos”, uma “Babilônia de gente”, um “reino babilônico” dilacerado pelo “conflito racial”.
Segundo Hitler, a catástrofe era iminente na Áustria: a “eslavização” e a “desaparição do elemento germânico” progrediam, e o ocaso da raça superior que tinha colonizado e civilizado o Oriente estava próximo. A Alemanha, para onde Hitler (que era austríaco) foi viver, havia presenciado uma convulsão sem precedentes desde o final da Primeira Guerra Mundial, uma comoção comparável à que percorreu o Sul dos Estados Unidos depois da Guerra Civil.
Segundo a visão racista, mais grave ainda que a perda das suas colônias, era que a Alemanha se via obrigada a suportar a ocupação militar de tropas multirraciais das potências vencedoras e que parecia ter sido transformada numa “misturada racial”.
Este fantasma da proximidade do fim da civilização era reforçado pelo surgimento da Revolução de Outubro, apelando à rebelião dos povos colonizados. Esta revolução estalou e afirmou-se numa área habitada por povos tradicionalmente considerados à margem da civilização.
Assim como os partidários da abolição da escravatura foram assinalados no sul dos Estados Unidos como “amantes dos negros” e traidores à sua própria raça, os social-democratas e especialmente os comunistas eram considerados por Hitler como traidores à raça germânica e ocidental.
Em suma, o Terceiro Reich apresentava-se como uma tentativa para impedir, sob condições de guerra total e de guerra civil internacional, o suposto fim da civilização, o suicídio do Ocidente e da raça superior criando um regime de supremacia branca à escala mundial e sob hegemonia alemã.
De FORD a HITLER
Alguém se lembra do elogio do Ku Klux Klan ao “genuíno americanismo de Henry Ford”? Amplamente admirado, o magnata automobilístico condenava a Revolução Bolchevique acusando-a de ser, em primeiro lugar, o produto de uma conspiração judaica. Fundou até uma revista, a Dearborn Independent, cujos artigos publicados foram reunidos em 1920 num único volume intitulado O Judeu Internacional. O livro transformou-se imediatamente numa referência básica do anti-semitismo internacional, foi traduzido para alemão e adquiriu grande popularidade.
Nazis destacados, como Von Schirach e mesmo Himmler vieram mais tarde a reconhecer terem sido inspirados ou motivados por Ford. Segundo Himmler, o livro de Ford desempenhou um papel “decisivo” (ausschlaggebend) não só na sua formação pessoal, como também na do Führer.
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Também aqui se evidencia o caráter inconsistente de qualquer comparação esquemática entre a Europa e os Estados Unidos, como se a praga do anti-semitismo não afetasse ambos.
Em 1933 Spengler considerava necessário esclarecer este ponto: a fobia anti-judaica que confessava abertamente, não devia confundir-se com o racismo “materialista” típico “dos anti-semitas na Europa e na América”. [11]
O anti-semitismo biológico que se agitava impetuosamente no outro lado do Atlântico era considerado excessivo mesmo por um autor como Spengler, que se expressava sem qualquer pudor nos seus escritos, contra a cultura e a história judaicas. Por esta razão, entre outras, Spengler foi considerado tímido e inconsequente pelos nazis, cujas preferências se situavam noutro lado: O Judeu Internacional continuou a ser publicado com todas as vênias no Terceiro Reich, e com editoriais que enfatizavam o singular mérito histórico do seu autor (por haver trazido à luz a “questão judaica”), estabelecendo uma linha de continuidade entre Henry Ford e Adolfo Hitler. 

O Ocidente e a “Democracia do Povo Dominante”
É oportuno destacar o paradoxo que caracterizou os Estados Unidos desde a sua fundação, sintetizada no século XVIII pelo escritor britânico Samuel Johnson:
Como poderemos suportar os estridentes gritos de liberdade dos proprietários de escravos?” [12]
A democracia desenvolveu-se na América do Norte no seio da comunidade branca simultaneamente com a escravização dos negros e a deportação dos índios.
Em 22 dos primeiros 36 anos como nação independente, a presidência esteve nas mãos de proprietários de escravos. Também eram proprietários de escravos os que redigiram a Declaração de Independência e a Constituição. Sem escravatura (mais a correspondente segregação racial) não se pode entender a “liberdade americana”: as duas estavam vinculadas, sustentando-se uma à outra. Enquanto a escravatura assegurava o firme controle sobre as classes “perigosas” no âmbito da produção, a expansão para o Oeste servia para desactivar o conflito social, transformando o proletariado potencial numa classe de proprietários agrícolas, ainda que a expensas dos povos originários, que seriam expulsos ou aniquilados.
Depois da Guerra da Independência, a democracia norte-americana experimenta novos desenvolvimentos durante a presidência de Jackson na década de 1830: a extensão do sufrágio e a eliminação, em grande parte, das restrições relacionadas com a propriedade na comunidade branca, eram concomitantes com a rigorosa deportação dos índios norte-americanos e com o crescente ressentimento e violência contra os negros.
O mesmo se pode dizer do período compreendido entre o final do século XIX e a metade da segunda década do século XX, onde se combinaram reformas como a instauração da eleição direta dos membros do Senado, o voto secreto, a introdução de eleições primárias e de instituições de referendo, etc. com fatos sobremaneira trágicos para a população negra (alvo dos esquadrões do terror da Ku Klux Klan) e a expulsão dos índios norte-americanos dos seus últimos territórios e a sua submissão a uma brutal aculturação, com a intenção de os despojar, inclusive, da sua identidade cultural.
Relativamente a este paradoxo, numerosos intelectuais norte-americanos se referiram a uma Herrenvolk democracy, ou seja uma democracia apenas para “Senhores” (para usar uma expressão do tipo das que Hitler apreciava).
Na realidade, a categoria “democracia do povo dominante” pode ser útil para explicar a história do Ocidente como um todo. Desde o final do século XIX e nos princípios do século XX, a extensão do sufrágio na Europa marcha pari passu com a colonização e a imposição de relações laborais de servidão e semi-servidão aos povos submetidos.
Os governos democráticos na Europa estavam fortemente entrelaçados com o poder da burocracia, com a violência policial e o estado de sítio nas colônias. Em última análise, trata-se do mesmo fenômeno que ocorria nos Estados Unidos, com a diferença que na Europa era menos evidente porque os povos colonizados viviam do outro lado do oceano. 

Missão Imperial e Fundamentalismo Cristão
Em 1899, a revista Christian Oracle explicava assim a decisão de mudar o seu título para Christian Century: "Cremos que o próximo século será testemunha de triunfos do cristianismo jamais vistos, e que será mais verdadeiramente cristão que qualquer dos precedentes".
William McKinley
Mais adiante o presidente McKinley explicava que a decisão de anexar as Filipinas procedia da inspiração do “Todo Poderoso” que, depois de escutar as incessantes preces do presidente, numa noite de insônia, o tinha por fim, libertado de toda a dúvida e indecisão. Não teria sido adequado deixar a colônia nas mãos da Espanha, ou entregá-la “à França ou à Alemanha, nossos rivais no comércio do Oriente”. Nem, peIa mesma razão, teria sido correto deixar as Filipinas aos próprios filipinos, que eram “incapazes de se autogovernar”, o que teria levado o país a um estado de “anarquia e desgoverno” ainda pior que o resultante da dominação espanhola:
“Não temos outra alternativa senão tomarmos tudo a nosso cargo, e educar os filipinos, civilizá-los e cristianizá-los, e, peia graça de Deus, fazer o mais que pudermos por eles, como companheiros nossos por quem Cristo também morreu. Voltei então para a cama e dormi profundamente”. [13]
Hoje conhecemos os horrores perpetrados durante a repressão do movimento independentista nas Filipinas: a guerrilha desenvolvida pelos filipinos foi enfrentada com a destruição sistemática de campos e gados, pelo confinamento maciço da população em campos de concentração, onde pereciam vítimas da fome e da doença, e inclusive em alguns casos, do assassinato de todos os varões maiores de dez anos.
Sem dúvida que, apesar das dimensões dos “danos colaterais”, a marcha da ideologia imperial-religiosa da guerra se reactivou triunfalmente durante a Primeira Guerra Mundial, quando o presidente Wilson a eIa se referia como se se tratasse de uma cruzada real, de uma “guerra santa, a mais sagrada em toda a história”, destinada a impor a democracia e os valores cristãos em todo o mundo.
John Foster Dulles
A mesma plataforma ideológica foi aplicada a outros conflitos no século XX, sendo a Guerra Fria particularmente exemplar neste aspecto. John Foster Dulles, era definido por Churchill como “um severo puritano”.
Dulles orgulhava-se de que “ninguém no Departamento de Estado conhece a Bíblia como eu”. O seu fervor religioso não era de modo nenhum um assunto privado:
“Estou convencido que aqui temos a necessidade de fazer que os nossos pensamentos e práticas políticas reflitam com a maior fidelidade a convicção religiosa de que o homem tem a sua origem e destino em Deus”. [14]
A esta fé, associavam-se outras categorias teológicas fundamentais na luta política internacional: os países neutrais que recusavam tomar parte na cruzada contra a União Soviética estavam em “pecado”, enquanto que os Estados Unidos, à cabeça dessa cruzada, representavam o “povo moral” por definição.
Em 1983, Ronald Reagan, quando a Guerra Fria atingia o seu clímax, apontou a necessidade de derrotar o inimigo ateu (a URSS), com claros acentos teológicos:
“Há no mundo pecado e maldade, e as Escrituras e Jesus nosso senhor ordenaram-nos que nos oponhamos a isso com todo o nosso pode”. [15]
Alinhando-se com esta tradição e radicalizando-a ainda mais, George W. Bush conduziu a sua campanha eleitoral sob um autêntico dogma:
“A nossa nação é a eleita de Deus e foi escolhida peIa História como um modelo de justiça para o mundo”.
A história dos Estados Unidos está marcada pela tendência a transformar a tradição judaico-cristã numa espécie de religião nacional que consagra o excepcionalismo do povo norte-americano e a missão sagrada que lhe foi confiada. Não é este entrelaçamento de religião e política sinônimo de fundamentalismo? Não foi por acaso que o termo fundamentalismo foi utilizado pela primeira vez no âmbito do protestantismo norte-americano.
Certamente que qualquer administração norte-americana terá os seus hipócritas, os seus intriguistas e os seus cínicos; mas não há motivos para duvidar da sinceridade de Wilson ou, atualmente, de Bush Jr.
Não devemos esquecer o fato de que os Estados Unidos não são uma verdadeira sociedade secular, a arraigada convicção de representar uma causa sagrada e divina facilita não só a constituição de uma frente unida em tempos de crise, mas também a repressão e banalização das páginas mais obscuras da história estadunidense.
Durante a Guerra Fria, Washington patrocinou sangrentos golpes de Estado na América Latina e colocou no poder brutais ditadores militares; em 1965, promoveu na Indonésia o massacre de centenas de milhares de comunistas ou seus simpatizantes. No entanto, por mais desagradáveis que possam ser, esses detalhes não alteram a santidade da causa personificada pelo “Império do Bem”.
Max Weber costumava referir-se à “moralina” (farisaísmo) norte-americana. "Moralina" não significa mentira, nem hipocrisia consciente. É tão só a hipocrisia dos que são capazes de mentir a si mesmos, o que se assemelha à falsa consciência assinalada por Engels.
De todo o modo, não é fácil compreender totalmente essa mescla de fervor religioso e moral, por um lado, e a clara e aberta tentativa de domínio político, econômico e militar do mundo, por outra.
É sem dúvida, esta amálgama (combinação explosiva), este peculiar fundamentalismo, que constitui atualmente a grande ameaça à paz mundial.
O fundamentalismo norte-americano intoxica um país que, designado e autorizado por Deus, considera irrelevantes a ordem internacional atual e as regras humanitárias.
É neste quadro que devemos situar a deslegitimação das Nações Unidas, o desprezo pela Convenção de Genebra e as ameaças proferidas não só contra os seus inimigos, como também contra os seus “aliados” na OTAN. 

O Despotismo Imperial
Além de combater o “mal” e defender os valores cristãos e norte-americanos, a guerra contra o Iraque (não contando com outras guerras em perspectiva) pretende expandir a democracia por todo o mundo.
Retomemos por um momento o jovem indochinês que em 1924 denunciava o linchamento de negros. Mais tarde regressou ao seu país e aí adotou o nome pelo qual seria mundialmente conhecido: Ho Chi Minh.
Durante os incessantes bombardeios norte-americanos no Vietnam, terá o dirigente vietnamita recordado os horrores perpetrados contra os negros pelos defensores da supremacia branca?
Por outras palavras, a emancipação dos afro-norte-americanos e sua conquista dos direitos civis marcaram realmente uma mudança, ou continuam os Estados Unidos a ser uma Herrenvolk democracy, uma democracia de “Senhores”, com a diferença de que agora os excluídos já não são os que estão dentro da mãe pátria, mas antes os que estão fora, como aconteceu no caso da “democracia” europeia?
Podemos examinar a questão numa perspectiva diferente, considerando a reflexão de Kant:
“Que é um monarca absoluto? É aquele que quando decide que deve haver guerra, há guerra”.
Kant não se referia aos Estados do Antigo Regime, mas sim à Inglaterra, no limiar do seu século de desenvolvimento liberal. [16]
De acordo com a posição kantiana, o atual presidente dos Estados Unidos deveria ser considerado um déspota por dois motivos.
Primeiro, devido ao surgimento, na última década, de uma “presidência imperial” que, quando embarca em ações militares, as apresenta frequentemente ao Congresso como um fato consumado. Mas estamos ainda mais interessados no segundo aspecto: é a Casa Branca que soberanamente determina quando as resoluções das Nações Unidas são vinculativas ou não; é a Casa Branca que soberanamente decide que países são “Estados delinquentes” e se é legal submete-los a embargos que irão causar o sofrimento de toda uma população, ou ao fogo infernal de bombas de fragmentação ou de urânio empobrecido.
Soldados dos EUA em foto no Afeganistão com  bandeira nazista

A Casa Branca decide soberanamente a ocupação militar desses países, pelo tempo que considerar necessário, condenando os seus dirigentes e os seus “cúmplices” a prolongadas penas de prisão. Contra estes e contra os “terroristas”, chega a ser legitimado o “assassinato seletivo”, ou melhor, um assassinato que é tudo menos seletivo, como o bombardeamento de um restaurante porque se pensava que Saddam Hussein pudesse lá estar. As garantias legais não se aplicam de todo aos “bárbaros”.
A tudo isto se junta a crescente intolerância que Washington manifesta para com os seus “aliados” ocidentais. Também a eles exige que sigam com humildade a vontade da nação eleita por Deus, cujo presidente se comporta como se fosse um soberano mundial, sem o controle de qualquer organismo internacional.
Notas de rodapé
1. Wade, Wyn Craig. 1997. The Rery Cross: The Ku Klux Klan in America. New York and Oxford: Oxford University Press.
2. MacLean, Nancy. 1994. Behind the Mask 01 Chivalry: The Making of the Second Ku Klux Klan. New York and Oxford: Oxford University Press.
3. Rosenberg, Alfred. 1937. Der Mythus des 20. Jahrhunderts. Munich: Hoheneichen. Publicado pela primeira vez em 1930.
4. lbid.
5. Hitler, Adolf. 1939. Mein Kampf. Munich: Zentralverlag der NSDAP. Publicado pela primeira vez em 1925.
6. Ruge, Wolfgang, and Wolfgang Schumann (eds.). 1977. Dokumentezurdeutschen Geschichte. 1939-1942. Frankfurt a. M.: Radelberg.
7. Spengler, Oswald. 1933. Jahre der Entsche idung. Munich: Beck. 1980. Der Untergang des Abendlandes. Munich: Beck. Original 1918-23.
8. Hoffrnann, Géza voo. 1913. Die Rassenhygiene in den Vel'9inigt9n Staaten von Nordamerika. Munich: Lehmanns.
9. Günther, Hans S. R. 1934. Rassenkunde des deutschen Volkes. Munich: Lehmanns. Publicado pela primeira vez em 1922.
10. Fredrickson, George M. J. The Black Image in the White Mind: The Debate on Afro-American Character and Destiny, 1817-1914. Hanover, N.H.: Wesleyan University Press. Publicado pela primeira vez em 1971.
11. Spengler, op.cit.
12. Foner, Erich. 1998. The History of American Freedom. London: Picador.
13. McAllister Uno, Brian. 1989. The U. S. Army and Counterinsurgency in the Philippine War, 1899-1902. Chapel HiII and London: University of North Carolina Press.
14. Kissinger, Henry. 1994. Diplomacy. New York: Simon and Schuster.
15. Draper, Theodore. 1994. "Mission Impossible". New York Review of Books (6 October).
16. Kant, Immanuel. 1900. "Der Streit der Fakultaten". In Gesammelte Schriften. vai. 7. Berlin and Leipzig: Akademie-Ausgabe. Publicado pela primeira vez em 1798. 

[*] Investigador do Istituto di Science Filosofiche e Pedagogiche, Urbino, Itália.
O artigo original encontra-se em na revista argentina Enfoques Alternativos, nº 27, Out-Nov/2004. 

Tradução de Carlos Coutinho. 

Este artigo foi extraído de Resistir

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