quinta-feira, 1 de março de 2012

QUESTÕES DE CULTURA

buscado no Praça do Bocage


Cultura é, provavelmente, uma das mais complexas palavras de qualquer língua, com uma raiz que significando uma atividade é também uma entidade. Originalmente descrevia um concreto processo material de trabalho que o homem introduziu no crescimento espontâneo da natureza para a conformar às suas necessidades, alterando-a, dominando-a, inventando-a e inventando uma nova disciplina, a agricultura, que o foi agarrando à terra diversificando as culturas e desenhando novos habitats, desenvolvendo agregados populacionais e uma vida colectiva onde a cultura começou a ser metaforicamente trans­posta para os assuntos ditos do espírito.
As sementeiras passaram a ser materiais e imateriais tal como os seus frutos enquanto, paradoxalmente, os que adubam a terra para a tornar mais fértil, mais propícia a produzir culturas, começa­ram a ser considerados incultos por falta de tempo para se cultiva­rem, em contraponto com os citadinos progressivamente mais inte­ressados na cultura e com mais tempo para produzirem cultura não só enquanto progresso da humanidade, mas como instrumento que marca distancias e distinções.
O labirinto semântico da palavra cultura descreve sempre uma transição entre o que existe e o que se transforma, seja na natureza ou no espírito dos homens. Transição constante, variável entre regu­lação e crescimento espontâneo por força do trabalho que a diver­sifica e aprofunda. Cultura é ainda um instrumento de dominação da natureza e/ ou da humanidade numa sociedade que se apropria dos frutos do trabalho, de todos os frutos do trabalho, do mais banal cordel ao mais complexo poema, para deles fazer merca­dorias. Apropriação que é trave mestra do sistema de produção capitalista que aprofunda o divórcio entre o homem e a natureza, o homem e seus semelhantes, entre o homem individual e a sua individualidade. Onde a alienação corta transversalmente toda a actividade humana.
Cresce a cultura como uma floresta de equívocos não inocentes e que progressivamente são usados para a desacreditar enquanto soma dinâmica e activa das sabedorias da vida e dos conheci­mentos do fazer, da prática colectiva de grupos e indivíduos. Equívo­cos que, no limite, a encerram no círculo restritivo da criação artís­tica. Seria assim a cultura uma ilha limitada às artes e às letras onde alegremente a criatividade se expandiria, longe do ruído trivial do trabalho ou das outras actividades quotidianas, sejam as das ciên­cias e das tecnologias sejam as da política ou da vida doméstica.
Essa ideia reducionista da cultura esquece-se, e não lhe interes­sa entender, que uma ilha se define sempre em relação a um conti­nente e que as artes, embora se desenvolvam com uma relativa autonomia, são de alguma forma e sempre condicionadas pela evolução socioeconómica.
Essa ideia minoritária de cultura esquece deliberadamente que só alguns, mesmo que sejam muitos, dos produtos culturais são arte, e quando o esquece é porque está determinada em limitar a possibilidade de conhecimento e d reconhecimento dos objectos artísticos a alguns eleitos. Objectos que, nas sociedades posteriores à Revolução Francesa, a burguesia, num gesto liberal e moscovita, possibilitou a sua visão e/ou audição ao povo. Os objectos, não o saber que suporta e serve para os legitimar, quer dizer para lhes atribuir valor de mercado. O que nesta nossa época pós modernista do capitalismo final, conduziu a que o mercado de objectos de arte seja de facto um mercado de objectos de luxo. A alienação atinge aqui o seu clímax e não é iludida pelas dádivas de doses de ópio às massas populares, principalmente quando esse ópio desgastou a qualidade aplainada pela rasadoira da generalizada oferta de entretenimento que não exige reflexão, nem sintoniza sentimentos e se afunda num perverso gosto homogeneizado e acéfalo que atira para a fornalha da iliteracia global um grande número de pessoas que, por via da exclusão cultural (fenómeno inquietantemente crescente), ficam cada vez mais incapacitadas e afastadas da possibilidade de possuírem ferramentas para exercerem os seus direitos de cidadania.
No pólo oposto, as artes até podem representar a excelência da vida, mas se a isso se restringem ficam amputadas do seu poder transformador. Tornam-se um aparato condenado a ficar amarrado à deriva da moda.
Actualmente os intermediários culturais, dos comentadores das mais variadas espécies e especialidades aos comissários artísticos, querem ser os grandes protagonistas da história ocupando o lugar que os operários e a burguesia, a luta de classes portanto, tinham na modernidade. São impulsionados pela retórica em que se embrulham onde, para justificarem o seu desejo de eternidade, fazem coexistir vários fins da história com a ilusão do fim da classe operária. Classe que, contrariando esses desejos, continua a crescer por todo o mundo formada por todos os que se encontram directa e indirectamente ligados e submetidos às normas capitalistas de produção, tal como Marx as definiu e que não perdeu actualidade, o que arranca pela raiz as teorias pós-modernas que exploram a deslocação da posição da classe operária dentro do proletariado, da generalidade dos trabalhadores que vendem a sua força de trabalho, seja manual e/ou intelectual, onde deixou de ocupar um lugar central. Assinam apressadamente a sua certidão de óbito para sossego das suas almas rapaces, sem terem percebido que a classe operária não desapareceu, é diferente porque é diferente o trabalho que desenvolve, tal como o capitalismo, na actualidade se reciclou e hoje já não exporta só fábricas obsoletas para lugares obscuros de países subdesenvolvidos, exporta igualmente fábricas sofisticadas e mão-de-obra qualificada que forma a mão-de-obra local. E se essa é uma das características principais do capitalismo actual a outra é, como se referiu, a produção de bens imateriais que se tornou tão relevante quanto a produção de bens materiais.
Não se trata apenas de produção de comunicação que se processa principalmente nas redes tradicionais dos média, nas culturais e nas informáticas, onde se preparam e justificam as acções mais agressivas (Bósnia, Kosovo, Afeganistão, Iraque, Líbia, Síria) consolidando a imagem de autoridade das corporações capitalistas e do aparelho de estado ao seu serviço. Trata-se de por todos os meios construir e impor um imaginário, onde é tão relevante uma canção, de preferência americana na forma e internacional nos sentimen­tos, quanto a fabricação efémera de heróis populares saídos de um qualquer Big Brother, Casa dos Segredos, as múltiplas rodas da fortuna e novos talentos, que é parte fundamental do trabalho contu­maz de alienação das massas populares.
Não é questão original, tem é uma nova cartografia que usa todos os meios ao seu dispor, mesmo os mais inesperados, e que è traçada pelos intermediários culturais encarregados de confecciona­rem “uma subtil actividade de manipulação nas empresas indus­triais ou na gestão da produção cultural: rádio, televisão, empresas de sondagem, estudos de pesquisa, grandes jornais e semanários e, sobretudo, nas profissões ligadas ao trabalho social e à animação cultural” (Pierre Bourdieu, La Distinction). São eles, ocupando o lugar equivalente ao do baixo clero na idade média e da nobreza menor e da pequena burguesia nas épocas subsequentes, os transmissores do bom gosto, das boas maneiras e das ideias das classes supe­riores. São eles os garantes da manutenção do estado de sítio do capitalismo. São eles os vendedores dos modelos sociais que supor­tam o imperialismo. São actores representando o seu próprio papel, no qual foram investidos por quem está constantemen

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