sexta-feira, 23 de março de 2012

O homem que plantava árvores



Fábula de Elzéard Bouffier, escrita por Jean Giono, em 1953.

Há cerca de quarenta anos, eu fazia uma longa viagem a  pé em altitudes absolutamente desconhecidas pelos turistas, numa região antiga. Na época em que se compreendeu minha longa caminhada por esta região desértica, nada crescia por lá exceto alfazema selvagem. Era uma terra deserta, árida e monótona.
Após três dias de caminhada, encontrava-me no meio de uma desolação sem igual. Acampava ao lado do esqueleto de uma aldeia abandonada. Não tinha água desde a véspera e eu necessitava encontrá-la. Aquelas casas aglomeradas como um velho ninho de vespas, embora em ruínas, levaram-me a pensar que talvez lá tivesse havido em tempos passados uma fonte ou um poço. Havia de fato uma fonte, mas estava seca.
Tive de levantar o acampamento. Ao fim de cinco horas de caminhada, eu ainda não tinha encontrado água, e nada me dava esperanças de poder vir a encontrá-la. Por todos os lados a mesma secura, as mesmas plantas lenhosas. De repente vi ao longe uma pequena silhueta negra. Fosse o que fosse; dirigi-me para ela. Era um pastor. Umas trinta ovelhas, deitadas sobre a terra escaldante, descansavam perto dele.
Ele deu-me de beber e, um pouco mais tarde, conduziu-me à sua cabana que se situava numa ondulação do planalto. Ele extraía a sua água, uma água excelente, de um furo natural muito profundo, ao lado da cabana.
Esse homem falava pouco. Isto é próprio das pessoas solitárias, mas parecia confiante e seguro de si.
Sua cabana estava arrumada, a louça lavada, o chão varrido; ao lume fervia uma panela de sopa. Reparei então que ele estava barbeado, que todos os seus botões estavam bem cosidos, que a sua roupa estava remendada com aquele cuidado minucioso que torna os remendos invisíveis.
Ele partilhou sua sopa comigo e, quando lhe ofereci meu tabaco, disse-me que não fumava. O seu cão, silencioso como ele, era amigável, mas não submisso.
Imediatamente se tornou claro, por um acordo tácito, que eu passaria a noite ali. A aldeia mais próxima ficava a mais de um dia de caminhada. E, além disso, eu conhecia perfeitamente o caráter das aldeias daquela região. Umas quatro ou cinco, dispersas pelos flancos das alturas, nas matas de carvalhos brancos, longe umas das outras, na extremidade de caminhos por onde podiam passar carruagens. São habitadas por lenhadores que fazem carvão de madeira. Suas vidas eram pobres. As famílias, apertadas em pequenos espaços, nesse clima que é duma rudeza excessiva, fecham-se no seu egoísmo, numa ambição irracional, desejando continuamente escapar-se deste lugar.
Havia concorrência em tudo, desde a venda do carvão até o banco da igreja. Sobre tudo isso, um vento que irrita os nervos sem cessar. Há epidemias de suicídios e numerosos casos de loucuras, quase sempre mortíferas.
O pastor, que não fumava, foi buscar um saquinho e despejou sobre a mesa um monte de bolotas. Pôs-se a examinar com muita atenção, uma após outra, separando as boas das más. Eu fumava o meu cachimbo. Ofereci-lhe ajuda, mas ele disse-me que era assunto seu. Quando tinha do lado das boas bolotas um monte bastante grande, contou-as em grupos de dez. Ao fazer isso, eliminava ainda os frutos pequenos ou os que estavam ligeiramente fendidos, pois os observava de muito perto. Quando, enfim, juntou diante de si cem bolotas perfeitas, parou e fomos dormir.
O convívio com este homem dava uma grande paz. No dia seguinte pedi-lhe autorização para passar o dia todo com ele. Ele considerou isso natural ou, mais exatamente, deu-me a impressão de que nada poderia incomodá-lo. Ele fez sair o rebanho e levou-o para a pastagem. Antes de partir, molhou num balde de água o pequeno saco onde tinha posto as bolotas cuidadosamente escolhidas e contadas.
Reparei que em vez do cajado ele levava um varão de ferro grosso como o dedo polegar e com cerca de um metro e meio de comprimento.
Ele deixou o pequeno rebanho à guarda do cão e subiu em direção ao local onde eu me encontrava. Ele convidou-me a acompanhá-lo caso não tivesse nada de melhor para fazer. Ele ia a uns duzentos metros para cima.
Chegando ao local onde queria, começou a espetar o varão de ferro na terra, isto fazia um pequeno buraco no qual metia uma bolota, depois tapava o buraco de novo. Ele plantava carvalhos. Perguntei-lhe se a terra lhe pertencia. Ele respondeu que não. Sabia de quem era? Ele não sabia. Supunha que era uma terra comunal ou talvez fosse de alguém que não se importava com ela. Ele não se preocupava nada por não conhecer os proprietários. Plantou assim as suas cem bolotas com um cuidado extremo.
Depois do meio-dia, ele começou a selecionar as suas sementes. Devo ter insistido muito nas minhas perguntas, pois ele ia respondendo. Havia três anos que ele plantava árvores naquela solidão. Já tinha plantado cem mil. Dessas cem mil, vinte mil tinham nascido. Dessas vinte mil, ele contava perder metade por causa dos animais roedores ou de tudo o que é impossível. Restavam dez mil carvalhos que iam crescer naquele local onde antes não havia nada.
Nesse momento interroguei-me sobre a idade daquele homem. Tinha visivelmente mais de cinqüenta anos. Cinqüenta e cinco, disse ele. Chamava-se Elzéard Bouffier. Tinha tido uma fazenda nas planícies, onde viveu parte de sua vida. Tinha perdido sua esposa e seu único filho, e então ele retirara-se para a solidão onde lhe dava prazer viver lentamente com as suas ovelhas e o seu cão. Ele tinha concluído que aquele país morria por falta de árvores. Acrescentou que, não tendo ocupações muito importantes, ele resolveu remediar a situação.
Disse-lhe que em poucos anos esses dez mil carvalhos estariam magníficos. Ele respondeu-me muito simplesmente que, se Deus lhe desse vida, em trinta anos ele teria semeado muitas outras árvores que esses dez mil seriam uma gota de água no oceano.
Aliás, ele já estudava a reprodução dos carvalhos e tinha perto de sua cabana um viveiro de amêndoas de faias. Aquelas que ele tinha protegido dos seus animais por uma cerca de tela estavam belíssimas. Ele também estava considerando bétulas para o fundo do vale onde, disse-me ele, que a umidade estava adormecida a poucos metros da superfície do solo. Separámo-nos no dia seguinte.
No ano seguinte começou a guerra de 14, na qual estive durante cinco anos. Eu tinha esquecido todo o acontecimento. Um soldado de infantaria não podia refletir sobre árvores.
Saído da guerra, encontrava-me com um grande desejo de respirar um pouco de ar puro. Foi sem qualquer outra idéia pré-concebida que retomei o caminho para aquele país deserto. A terra não tinha mudado, contudo, para além da aldeia morta, vislumbrei ao longe uma espécie de névoa cinza que cobria as colinas como um tapete. Eu tinha recomeçado a pensar naquele pastor, que plantava árvores. “Dez mil carvalhos” eu refletia “ocupam de fato um grande espaço”.
Tinha visto muita gente morrer durante cinco anos para não imaginar facilmente a morte de Elzéard Bouffier.
Ele não tinha morrido. De fato, estava mesmo muito vivo. Ele tinha mudado de profissão. Agora possuía apenas quatro ovelhas mas, em compensação, tinha uma centena de colméias. Tinha-se livrado das ovelhas, porque elas colocavam em perigo a plantação de árvores. A guerra não tinha perturbado a todos. Ele tinha continuado imperturbavelmente com a sua plantação.
Os carvalhos de 1910 tinham agora dez anos e estavam mais altos do que eu e do que ele. O espetáculo era impressionante. Como ele não falava, passamos o dia todo em silêncio, andando pela floresta. Isto estava em três talhões, onze quilomêtros de comprimento, no seu ponto mais longo, e três quilômetros de largura. Eu me lembrava que aquilo tudo tinha saído das suas mãos e da alma daquele homem, sem meios técnicos. Eu estava literalmente sem palavras.
As faias que me chegavam aos ombros, espalhadas a perder de vista. Os carvalhos estavam vigorosos e tinham ultrapassado a idade em que estavam à mercê dos roedores para destruir a obra criada, estavam agora em pé uma ao lado da outra. O pastor me mostrou admiráveis bosquezinhos de bétulas que datavam de cinco anos atrás. Tinha-as feito ocupar todos os vales onde ele suspeitava, com razão, que haveria umidade quase na superfície. Estavam tenras como jovens garotas e muito decididas.
A criação parecia, aliás, realizar-se por uma reação em cadeia. Ele não se preocupava com isso, mas prosseguia obstinadamente a sua simples tarefa. Mas ao descer novamente pela aldeia, vi correr água em riachos que, na memória viva, sempre tinham estados secos. Foi o mais formidável renascimento, que me foi dado presenciar.
O vento também dispersava certas sementes. Ao mesmo tempo em que reapareceu a água, reapareciam salgueiros, prados, jardins, flores e uma certa alegria de viver.
Mas a transformação acontecia tão lentamente que entrava nos hábitos sem provocar espanto. Os caçadores, que subiam às alturas na perseguição de lebres ou de javalis, tinham na verdade constatado a população das pequenas árvores, mas tinham-na atribuído aos caprichos naturais da terra. Por isso ninguém tocava na obra daquele homem. Quem, entre os aldeões ou os administradores, teria suspeitado que qualquer um poderia mostrar essa obstinação na realização deste magnífico ato de generosidade?
A partir de 1920 nunca fiquei mais de um ano sem visitar Elzéard Bouffier. Nunca o vi desfalecer nem hesitar, apesar de que só Deus sabe, que sua vida não foi fácil. Eu nunca disse nada sobe suas decepções, mas você pode facilmente imaginar que deve ter sido necessário vencer a adversidade. Ele tinha, durante um ano, plantado mais de dez mil áceres vermelhos. Todos tinham morrido. No ano seguinte; desistiu dos áceres para retomar as faias, as quais resultavam ainda melhor que os carvalhos.
Para ter uma idéia mais ou menos exata deste caráter excepcional, é preciso não esquecer que ele trabalhava numa solidão total, tão total que, no fim de sua vida, ele tinha perdido o hábito de falar. Ou será que não via necessidade?
Em 1933 ele recebeu a visita de um guarda florestal deslumbrado, que ordenou-lhe que não fizesse qualquer fogueira fora, com medo de pôr em perigo aquela floresta “natural”. Nessa época ele ia plantar faias a doze quilômetros da sua casa. Para evitar o ir e vir, porque tinha então setenta e cinco anos, tencionava construir uma cabana de pedra nos próprios locais de suas plantações. O que ele fez no ano que se seguiu.
Em1935, uma verdadeira delegação administrativa foi examinar a “floresta natural”. Desejavam fazer qualquer coisa e, felizmente não se fez nada, a não ser a única coisa útil: colocar a floresta sob a guarda do Estado e proibir que lá se fosse fazer carvão. Pois era impossível não ficar subjugado pela beleza daquelas jovens árvores em plena saúde.
Eu tinha um amigo entre os chefes florestais da delegação. Expliquei-lhe o mistério. Nós fomos à procura de Élzeard Bouffier. Encontrámo-lo em pleno trabalho a vinte quilômetros do local onde tinha sido feita a inspeção.
Antes de partir, meu amigo fez apenas uma breve sugestão acerca de certas espécies às quais o terreno dali parecia ser favorável. Mas ele não insistiu. “Pela simples razão”, disse-me depois, que, “aquele homem sabe mais disso do que eu”. Depois de uma hora de nossa caminhada, ele acrescentou: “Sabe muito mais disso do que todo mundo e ele encontrou uma ótima maneira de ser feliz!”
Foi graças a esse chefe que, não somente a floresta, mas a felicidade daquele homem foram protegidas. Ele nomeou três guardas florestais para essa proteção e amedrontou-os de tal maneira que ficaram insensíveis a quaisquer “garrafas de vinho” que os carvoeiros pudessem oferecer-lhes como propina.
A floresta não correu nenhum risco grave, exceto durante a guerra em 1939. Os automóveis moviam-se a gasogênio, a madeira nunca era suficiente. Começaram a fazer cortes nos carvalhos de 1910. Mas essas árvores estavam tão afastadas das estradas que o empreendimento se revelou muito ruim do ponto de vista financeiro e foi abandonado. O pastor não tinha visto nada. Estava a trinta quilômetros, continuando calmamente o seu labor, ignorando a guerra de 39 como tinha ignorado a de 14.
Eu vi Elzéard Bouffier pela última vez em 1945. Ele tinha então oitenta e sete anos. Eu tinha retomado a rota do deserto, mas agora, estava funcionando um ônibus lá. Atribuí a esse meio de transporte o fato de não estar reconhecendo os lugares dos meus primeiros passeios. Parecia-me também que o itinerário me fazia passar por lugares novos. Precisei perguntar o nome de uma aldeia para concluir que estava mesmo nessa região dantes em ruína e desolação.
Em 1913, esta aldeia de dez a doze casas tinha três habitantes. Eram selvagens, detestavam-se, viviam da caça com armadilhas. As urtigas devoravam as casas abandonadas.
Tudo estava mudado, até o ar. No lugar das rajadas secas e brutais que dantes me tinham acolhido, soprava uma brisa suave carregada de doces odores. Um ruído semelhante ao da água vinha das alturas. Era o vento nas árvores. Enfim, o maior espanto foi ouvir o verdadeiro som da água correndo para um tanque. Eu vi que tinham feito uma fonte, que a água era abundante e, o que mais me tocou, tinham plantado ao pé da fonte uma tília que podia ter já uns quatro anos, já grossa, símbolo incontestável duma ressurreição.
O lugarejo tinha agora vinte e oito habitantes, entre os quais quatro jovens casais. As casas novas, reboco novo, estavam rodeadas de hortas onde cresciam, misturados mas alinhados, legumes e flores, couves e roseiras, peras e flores de coelho, aipos e anêmonas. Era um lugar onde se desejaria viver.
A partir daí eu continuei o meu caminho a pé. Nos flancos aplanados da montanha, eu via pequenos campos de cevada e centeio, no fundo dos vales estreitos as terras foram virando pasto verde.
As velhas nascentes alimentadas pelas chuvas e pelas neves que as florestas retêm, recomeçaram a correr. Os riachos foram canalizados. Ao lado de cada fazenda, em meio a bosques de plátanos, os tanques das fontes transbordam sobre tapetes de hortelã fresca.
As aldeias reconstruíram-se pouco a pouco. Uma população vinda das planícies, onde a terra é cara, fixara-se na região trazendo juventude, movimento e espírito de aventura. Encontravam-se pelos caminhos homens e mulheres bem alimentados, meninos e meninas sorrindo. Mais de dez mil pessoas deviam a sua felicidade a Elzéard Bouffier.
Quando penso que um único homem, confiando em seus próprios recursos físicos e morais, fora capaz de transformar um deserto nesta terra de Canaã, estou convencido de que, apesar de tudo, a condição humana é verdadeiramente admirável. Mas quando considero a grandeza de alma e a dedicação necessárias para obter esta transformação, sinto um imenso respeito por esse velho camponês sem cultura.
Adaptado de Jean Giono

O escritor francês Jean Giono registrou em seu livro um resultado maravilhoso; centenas de milhares de hectares de terra foram arborizadas e sua novela inspirou muitas pessoas até os dias atuais a plantar árvores. E não foi somente isto. Seu sonho de plantar árvores tem fortemente influenciado milhões de leitores em todo o mundo, mudando suas relações com a natureza e fortalecendo seus corações a crer na força do espírito.

2 comentários:

Sonia Amorim disse...

Maravilhoso. Extraordinário. Agradecida por compartilhar. Grande abraço!

jader resende disse...

Obrigado Sonia.
Vou ver teus blogs.
Um grande abraço