Buscado no Gilson Sampaio
do Viomundo
Casara: Teses do STF na AP 470 tendem a espalhar por todo o Judiciário, atingindo o cidadão comum
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Rubens Casara – Nos modelos democráticos”!!!
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“E
o que fez o Partido dos Trabalhadores em relação ao Poder Judiciário?
Contribuiu para uma composição conservadora do órgão de cúpula do Poder
Judiciário brasileiro.
O
exemplo do Supremo Tribunal Federal é emblemático: foram indicados para
ministros, salvo raras exceções, pessoas conservadoras, sem
compromissos com uma visão progressista de Estado, alguns ligados a
setores conservadores da Igreja Católica ou a políticos historicamente
contrários às lutas do próprio Partido dos Trabalhadores”.
Conceição Lemes
Nessa
segunda-feira 23, o julgamento da Ação Penal 470, o chamado mensalão
entrou na nona semana. Muitos juristas o acompanham com preocupação.
Alegam que princípios de respeito às garantias fundamentais, como “o
ônus da prova cabe à acusação” e “não se pode condenar alguém com base
em presunções”, estariam sendo deixados de lado.
“A
Ação Penal 470 ilustra bem a encruzilhada em que se encontra o Poder
Judiciário. O risco da tentação populista é que passe a produzir
decisões casuísticas, para atender às expectativas do que é
vendido pelos meios de comunicação como opinião pública”, observa Rubens
Casara. “Isso é grave, pois princípios e teorias forjados durante a
caminhada da humanidade acabam esquecidos ou afastados para a produção
de decisões direcionadas a dar essa resposta simbólica à sociedade.”
Esse
risco aumenta quando as decisões casuísticas são produzidas pela maior
Corte de Justiça do Brasil, como a Ação Penal 470 embora não seja
exclusividade dela.
“Acaba virando
jurisprudência, pois as cortes inferiores tendem a reproduzi-las”,
prossegue Casara. “Esse fenômeno o professor e ministro da Corte Suprema
da Argentina Raul Zafaroni chama de comodismo crônico.”
“Ao
se espalharem por todo o Judiciário, as teses do STF na Ação Penal 470
acabarão atingindo os cidadãos comuns”, adverte Casara. “São os
‘clientes’ preferenciais do nosso sistema penal que privilegia os que
têm posses e condena os sem condição financeira.”
Rubens
Casara é juiz da 43ª Vara Criminal do Rio de Janeiro e professor de
Direito Penal da Faculdade de Direito Ibmec/RJ. Porém, nesta entrevista
ao Viomundo, ele fala a partir de sua percepção como pesquisador do autoritarismo no sistema de justiça criminal.
Segue a íntegra da nossa íntegra.
Viomundo – Qual a sua percepção do julgamento da Ação Penal 470 até o momento?
Rubens Casara –
Antes, um parêntese. O Estatuto da Magistratura, que é uma lei cunhada
em período autoritário, impede que os juízes se manifestem sobre casos
em julgamento. Portanto, falo em tese, em especial a partir do que tenho
observado na mídia, em minhas pesquisas e como professor de Direito
Processual Penal.
Sobre a sua pergunta, a minha
percepção é de que a Ação Penal 470, que a grande mídia chama de
“julgamento do mensalão”, ilustra bem a encruzilhada em que se encontra o
Poder Judiciário.
De um lado, sua origem
aristocrática; um poder conservador, distante do povo, comprometido com
quem detém o poder e o capital, e que historicamente sempre foi
utilizado para manutenção do status quo, ou seja, como
obstáculo à transformação social. Não se pode esquecer que, para parcela
considerável dos que sempre detiveram o poder econômico e político, o
chamado “caso do mensalão” passou a ser encarado como espécie de
vingança pelas derrotas eleitorais impostas pelo Partido dos
Trabalhadores.
De outro lado, uma tendência que
tem sido chamada de “tentação populista”. Ela se traduz em decisões que
buscam agradar a opinião pública, que muitas vezes não passa da opinião
publicada pelas grandes corporações que controlam os principais meios
de comunicação de massa.
Agora, a tensão entre a
origem aristocrática e essa tendência populista está presente em vários
julgamentos e não só na Ação Penal nº 470. De igual sorte, existem no
seio do Poder Judiciário muitos conflitos, que por vezes permanecem
velados. Enfim, a magistratura é plural, diversas ideologias se fazem
presentes. Existem, por exemplo, magistrados que atuam a partir de uma
epistemologia e de um instrumental autoritário e outros que adotam
posturas e modelos adequados à democracia.
Viomundo — Qual o risco dessa tentação populista?
Rubens Casara – É que as decisões passem a ser produzidas ad hoc.
Viomundo – O que significa?
Rubens Casara
– São decisões casuísticas, formuladas para atender às expectativas do
que é vendido pelos meios de comunicação de massa como opinião pública.
Quando isso acontece é grave, pois princípios e teorias que existem para
assegurar o respeito aos direitos e garantias fundamentais, que são
conquistas de todos, forjados durante a caminhada da humanidade, acabam
esquecidos ou afastados para a produção de decisões direcionadas a dar
respostas simbólicas à sociedade.
Os direitos e
garantias fundamentais sempre foram trunfos contra maiorias de ocasião,
limites à opressão estatal, o que, em última análise, caracteriza o
Estado Democrático de Direito. Só há democracia, em seu sentido
substancial, se os direitos e garantias fundamentais são respeitados.
Decisões judiciais que afastam, relativizam ou violam os direitos e
garantias fundamentais corporificam, portanto, sérias ameaças ao Estado
Democrático de Direito.
Viomundo — O que a Ação Penal 470 vai representar mais adiante?
Rubens Casara –
Como toda decisão do Supremo Tribunal Federal, a tendência é de que as
teses acolhidas durante esse julgamento passem a influenciar a
jurisprudência de todos os órgãos do Poder Judiciário. Essa
jurisprudência é o que será chamado de legado jurídico desse julgamento.
Se,
como sustentam alguns, a Ação Penal nº 470 é um “julgamento de
exceção”, uma decisão casuística produzida para agradar parcela da
sociedade brasileira, em detrimento de direitos e garantias que
normalmente seriam reconhecidos pelo Supremo Tribunal Federal, o risco à
democracia é muito grande, uma vez que se está diante de um ato, de
ampla repercussão, produzido pela maior Corte de Justiça do Brasil, o
Supremo Tribunal Federal (STF).
Viomundo — Por quê?
Rubens Casara
— Porque há uma tendência de reprodução, pelas instâncias inferiores,
das decisões que são produzidas no Supremo Tribunal Federal. A esse
fenômeno, típico da burocratização judicial, o professor e ministro da
Corte Suprema da Argentina Raúl Zaffaroni chama de “comodismo crônico”.
Explico:
a melhor maneira de se fazer uma carreira rápida no Judiciário é não
contrariar a opinião daqueles que têm o poder de anular ou reformar as
suas decisões. Os juízes reproduzem as decisões dos seus tribunais e dos
tribunais superiores para não terem dores de cabeça na carreira, serem
aceitos na classe e conseguirem promoções.
Assim,
se, por exemplo, o Supremo Tribunal Federal adotar as teses da
“inversão do ônus da prova em matéria penal” ou da “possibilidade de
condenação a partir de presunções contrárias aos réus”, estaremos dando
passos vigorosos em direção ao Estado Penal.
Por
quê? Porque essas teses estão em franca oposição ao princípio
constitucional da presunção de inocência, e o Supremo deixará de atuar
como garantidor dos direitos e garantias fundamentais.
Se,
de fato, isso acontecer, essas teses vão ser reproduzidas e acolhidas
em outros casos a serem julgados por diversos juízes e tribunas
brasileiros. A porta para os decisionismos e as perversões
inquisitoriais estará aberta.
Viomundo — Isso significa que as teses aceitas pelo STF na Ação Penal 470 acabarão atingindo os cidadãos comuns?
Rubens Casara
— Com certeza. São os ‘clientes’ preferenciais do nosso sistema penal
que privilegia os que têm posses e condena os sem condição financeira.
Viomundo – Em função do julgamento, juristas têm usado muito a expressão “atos de ofício”. O que significa exatamente?
Rubens Casara
– Atos de ofício do juiz são os produzidos sem a provocação de qualquer
das partes. Eles se originam da tradição inquisitorial. No sistema
processual inquisitivo, o juiz acusava, produzia as provas e, depois,
também julgava a pessoa a quem ele já tinha atribuído a prática de um
delito.
E qual é o risco dessa atuação de
ofício? O fenômeno que o professor italiano Franco Cordero chama de
“primado da hipótese sobre fato”.
O que é esse
primado da hipótese sobre o fato? O juiz assume a hipótese da acusação
como verdadeira e passa o processo tentando demonstrar que está
correto. Essa atuação de ofício traduz uma antecipação de seu
julgamento, consubstanciada na aceitação da hipótese a partir da qual
orienta a sua busca.
O problema é que, ao partir
de uma hipótese falsa, o julgador que adota essa postura inquisitorial,
não raro, chega a uma conclusão falsa, mas que ele acredita ser
verdadeira, mais precisamente, chega a uma “verdade” que ele construiu, a
partir do senso comum ou de distorções, por vezes inconscientes, do
próprio conjunto probatório.
Isso compromete a
imparcialidade, ou seja, viola a equidistância que o julgador deve
manter das versões postas pelas partes. Isso acaba por levar ao que
Cordero chamou de “quadro mental paranoico”, já que o juiz decide antes,
ao assumir como verdadeira a hipótese da acusação, e, depois, sai em
busca de material probatório para “confirmar” essa sua versão.
Viomundo – É um risco da Ação Penal 470?
Rubens Casara
– É um risco de todos os processos nos quais o juiz quer assumir o
protagonismo probatório. Ele pratica atos de ofício na tentativa de
demonstrar a veracidade da hipótese que aceitou como verdadeira. Não
comprovar essa versão significa fracassar e ninguém gosta de fracassar.
Há
uma discussão muito grande sobre essa questão na doutrina brasileira.
Há quem defenda a possibilidade do juiz produzir provas de ofício, mas
há excelentes autores que dizem que não, que a gestão da prova deve
permanecer com as partes.A inércia do juiz seria, então, uma garantia de
sua imparcialidade.
Eu prefiro essa segunda
corrente que defende que o juiz, na medida do possível, deve ficar
equidistante das versões das partes. Ele deve receber as provas da
acusação e da defesa, para, no final, julgar a partir do conjunto
probatório produzido dialeticamente pelas partes.
Viomundo – O ministro Joaquim Barbosa estaria assumindo o protagonismo probatório?
Rubens Casara
– Na atuação do ministro Joaquim Barbosa, que vem dos quadros do
Ministério Público, órgão constitucionalmente encarregado de formular
hipóteses e produzir provas que a confirmem, muitos enxergam essa
tendência inquisitorial.
Confesso que não
estudei a fundo as decisões desse ministro, professor da Universidade do
Estado do Rio de Janeiro, que será o futuro presidente do Supremo
Tribunal Federal. Para além do que a mídia noticia, não conheço a
atuação do Ministro Joaquim Barbosa.
Veja bem.
Existem leis infraconstitucionais que autorizam a produção probatória
pelo juiz. A questão é saber se essas leis são adequadas ou não à
Constituição da República. Uma lei infraconstitucional contrária à
Constituição é imprestável e não deve ser aplicada.
O
ideal, portanto, é o modelo em que cabe ao juiz julgar, ao acusador
formular e provar a acusação e ao defensor a missão de defender o
acusado. O ideal é que o juiz não participe da produção probatória. O
ato de produzir provas é inerente à atividade de acusar e de defender.
Na verdade, um ônus de quem formula a acusação, porque no processo penal
brasileiro a carga probatória é todo do acusador. A defesa não precisa
provar nada, desde que a acusação fracasse na sua missão de comprovar os
fatos que constituem a acusação.
No modelo
brasileiro, o ônus da prova – aquele que tem o dever de fazer prova e
vai arcar com as conseqüências de não provar – é da acusação. Se o
acusador não consegue provar sua hipótese, o réu tem de ser absolvido. É
a dimensão probatória do princípio da presunção de inocência, o que se
expressa na máxima in dubio pro reo.
Então,
o juiz que assume o protagonismo probatório, o juiz-inquisidor, é uma
figura historicamente vinculada ao modelo inquisitivo, que não é a opção
constitucional feita em 1988 nem a da maioria dos Estados
democráticos.
Viomundo – O modelo inquisitorial surgiu quando?
Rubens Casara
– Do ponto de vista histórico, ele é posterior ao modelo acusatório que
já existia no regime ateniense. O sistema inquisitivo surge no século
XIII e se torna hegemônico na Europa continental até o século XVIII,
momento em que tem início a sua decadência. Curioso notar que o sistema
inquisitivo nasce em uma quadra histórica na qual se busca o
fortalecimento do Estado, mas ainda hoje é possível perceber sintomas
desse sistema nas mais diversas legislações.
Viomundo
– No julgamento do AP 470, tem se falado em inversão do ônus da prova,
flexibilização de conceitos jurídicos, condenação a partir de
presunções, indícios… Como é que fica a situação, professor?
Rubens Casara
— Indício é uma prova indireta. Indícios são fatos efetivamente
provados que permitem, por dedução, a certeza acerca de outro fato que
se quer provar. No nosso modelo processual, é possível uma condenação
com base em indícios, desde que eles sejam capazes de demonstrar
cabalmente a ocorrência dos fatos descritos na denúncia. Esse não é o
problema.
Por outro lado, os demais fenômenos
que você menciona representam sérios riscos a uma concepção minimamente
democrática de justiça penal, conforme já mencionei. Da mesma maneira, a
possibilidade de uma decisão ad hoc, voltada à satisfação dos
meios de comunicação de massa e de maiorias de ocasião forjadas na
desinformação, representa um risco ao Estado de Direito.
Por
quê? Porque o Poder Judiciário tem como sua principal característica o
fato de ser contramajoritário. Ou seja, ao contrário do Legislativo e do
Executivo, que dependem da votação popular, o Judiciário tem o dever de
julgar contra as maiorias, desde que isso seja necessário para
preservar os direitos fundamentais das minorias ou de um único cidadão.
Existem limites ao exercício do poder que, mesmo impopulares, devem ser
respeitados.
Isso significa que se, para
respeitar os direitos fundamentais do Fernandinho Beira-Mar ou do José
Dirceu, o magistrado tiver que desagradar toda a opinião pública, ele
tem que fazer isso. O Judiciário é, ou deveria ser o garantidor dos
direitos fundamentais, dos direitos inerentes à condição humana.
Sempre
que o Judiciário cede àquilo que, no início, chamei de “tentação
populista”, ele se aproxima da atuação do Executivo e do Legislativo e,
portanto, torna-se desnecessário. O Judiciário só se justifica para
assegurar a concretização do projeto constitucional e, para tanto, deve,
ou deveria, atuar como garantia dos direitos fundamentais de cada
indivíduo, criminosos ou não, inclusive aqueles selecionados pela grande
mídia para figurar como inimigos públicos da sociedade.
Viomundo – Por exemplo…
Rubens Casara
— Vamos imaginar uma sociedade racista. Se o Poder Judiciário não for
contramajoritário, as decisões vão ser racistas. Numa sociedade
sexista, se o Poder Judiciário não for contramajoritário, as decisões
vão ser sexistas. Numa sociedade homofóbica, as decisões vão ser
homofóbicas… Cabe ao Judiciário impor limites aos desejos e perversões
das maiorias.
Acho importante também frisar que
os juízes, como todo mundo, estão inseridos em uma tradição que acaba
por condicionar suas decisões. O problema no Brasil é que essa tradição é
extremamente autoritária. As pessoas recorrem ao sistema de justiça
criminal para resolver os mais diversos problemas. Acreditam no uso da
força para solucioná-los. Problemas sociais ou políticos, por exemplo,
são desqualificados, descontextualizados e redefinidos como se fossem
meros casos de polícia a serem resolvidos no sistema de justiça
criminal.
A sociedade brasileira é autoritária. A
ausência de rupturas históricas talvez explique porque ainda hoje
práticas típicas da ditadura, como a relativização de direitos
fundamentais, são naturalizadas. E essa natureza autoritária acaba
repercutindo em todas as decisões judiciais — da primeira instância à
Suprema Corte.
Viomundo – O ônus da prova cabe à acusação…
Rubens Casara – Nos modelos democráticos!!!
Viomundo – A partir do momento em que o Judiciário inverte esse papel, qual o risco para a sociedade?
Rubens Casara
— A inversão do ônus da prova em matéria penal é um sintoma nítido da
ausência de uma cultura democrática na sociedade brasileira. Em nome de
uma maior eficiência dos órgãos encarregados da repressão penal, da
busca por um maior número de condenações, direitos e garantias previstas
na Constituição da República são negados, e a sociedade brasileira
assiste a tudo isso calada porque se acostumou com o autoritarismo.
A
naturalização de posturas autoritárias impede a criação de uma cultura
verdadeiramente democrática, de respeito aos diretos fundamentais.
Nós,
por vezes, aplaudimos atos de autoritarismo. Há quem bata palmas para
condenações desassociadas de um suporte probatório robusto e confiável,
conforme os meios de comunicação de massa têm noticiado. Há também quem
concorde com a inversão do ônus da prova em matéria penal, sem perceber
que isso representa um risco à própria ideia de democracia processual.
Viomundo — Por quê?
Rubens Casara
— Por que o ônus da prova cabe ao Ministério Público? Porque o
Ministério Público é o Estado-Administração, a parte que tem as melhores
condições de provar as hipóteses que formula. O acusado é, nessa
relação, a parte mais fraca. Por mais poderoso que o acusado seja, do
outro lado está o Estado, o Leviatã, com sua estrutura e recursos.
Essa
é a dimensão probatória do princípio da presunção da inocência. Se o
indivíduo deve ser tratado como se inocente fosse, cabe ao Estado
afastar essa presunção, a única admitida, no Estado de Direito, em
matéria penal.
O sistema processual penal, como
instrumento de tutela da liberdade, permite constatar que ao Estado
também não interessa, e não deveria interessar aos seus agentes, a
condenação de um possível inocente, mesmo diante do risco da absolvição
de um culpado. Ao réu, basta a dúvida, que impõe, por força da
Constituição, a absolvição.
Ao adotar o
princípio da presunção de inocência e atribuir ao acusador o ônus de
provar a materialidade e a autoria dos delitos que o Estado pretende
punir, o legislador constituinte faz uma opção política que implica no
reconhecimento de que alguns culpados vão acabar absolvidos, mas que
isso é melhor do que condenar pessoas que podem ser inocentes.
Diante
desse quadro, o processo penal funciona e só se legitima como garantia
contra a opressão estatal. Assim, se o Estado quer punir quem pratica
uma ilegalidade, ele tem de demonstrar, de forma cabal, respeitados o
devido processo legal e os demais limites éticos e legais, que o acusado
praticou um delito.
Não se pode presumir que
alguém é culpado, por exemplo, que determinada pessoa é “o chefe da
quadrilha”, a não ser que exista prova concreta, segura e suficiente da
existência e da autoria do crime narrado na denúncia pelo acusador.
Para
alguém ser condenado, o Estado tem de afastar qualquer dúvida
razoável. Do contrário, fica-se muito próximo do existia no modelo
fascista italiano, no nazista alemão e no da extinta União Soviética.
Ninguém pode ser punido pelo que é, por ser antipático ou desagradar aos
detentores do poder, mas somente por aquilo que se demonstra que ele
fez.
Viomundo – Por que a ideia de atribuir o ônus da prova ao Ministério Público, portanto ao Estado?
Rubens Casara
— Para preservar o indivíduo da fúria persecutória do Estado,
respeitando-o como sujeito de direitos. Busca-se também evitar que se
onere em demasia a parte mais fraca da relação processual.
Sob
o prisma processual, somente a acusação é que alega a ocorrência de um
delito, atribuindo-o ao réu. A opção do nosso sistema é de que ao réu
sempre se atribuirá o benefício da dúvida, devendo a outra parte, o
Ministério Público, diante das prerrogativas e poderes que têm,
comprovar o que alegou na denúncia.
No Brasil,
nós temos uma visão simplista de achar que só quem responde a processo
criminal é bandido e que “bandido bom é bandido sem direitos”.
Isso
é falso. Tem pessoas com a ficha limpíssima que praticaram uma enorme
quantidade de crimes, enquanto outras, que respondem a vários processos,
são inocentes e podem acabar condenadas. O sistema penal é seletivo, de
todos aqueles que praticam crimes, poucos acabam julgados; e nem todos
que são julgados praticaram crimes.
O desafio é
garantir os direitos fundamentais a todos que respondam a processos
criminais, sejam eles inocentes ou culpados. Isso é que nos faz humanos e
qualifica o processo penal como um instrumento racional de garantia dos
direitos. O Estado, durante o processo criminal, não pode violar
direitos ou garantias do acusado, sob pena de perder a superioridade
ética que o distingue dos criminosos.
E se é
para desrespeitar os direitos fundamentais, não precisaríamos do
processo penal, nem do Judiciário. Bastava prender a pessoa, colocá-la
na cadeia, tirando-a do convívio social, sem maiores justificativas.
Insisto: o Judiciário existe para garantir os direitos fundamentais de
todos.
Viomundo – Diz-se que o Supremo está sendo até pela mídia no julgamento do mensalão. O que acha?
Rubens Casara
– A influência midiática está intimamente ligada ao que chamei, para
utilizar um termo cunhado por Garapon, de “tentação populista”. O
populismo penal, aliás, toda forma de populismo, incorporado pelos
tribunais — eu não estou falando especificamente da Ação Penal 470 — é
um risco para a sociedade.
Agora, é um risco
esperado. Numa sociedade do espetáculo não é estranho que o Judiciário
queira chamar atenção para si e reproduzir o que já acontece em outras
esferas, transformando-se num judiciário espetacular. Cada juiz também
quer aparecer bem no espetáculo.
Não causa
surpresa, portanto, que o Poder Judiciário, do primeiro grau até os
tribunais superiores, procure agradar aos meios de comunicação de massa
através de decisões, ainda que contrárias à Constituição da República.
Percebe-se
que a esquerda tem uma culpa tremenda no atual quadro, porque nunca deu
importância ao Judiciário, sempre o considerou como um mero instrumento
de opressão e de manutenção das estruturas sociais.
Acontece
que no Estado Democrático de Direito o Judiciário é fundamental à
garantia dos direitos e à concretização do projeto constitucional.
E
o que fez o Partido dos Trabalhadores em relação ao Poder Judiciário?
Contribuiu para uma composição conservadora do órgão de cúpula do Poder
Judiciário brasileiro.
O exemplo do Supremo
Tribunal Federal é emblemático: foram indicados para ministros, salvo
raras exceções, pessoas conservadoras, sem compromissos com uma visão
progressista de Estado, alguns ligados a setores conservadores da Igreja
Católica ou a políticos historicamente contrários às lutas do próprio
Partido dos Trabalhadores.
Em suma, perdeu a
rara oportunidade de promover uma verdadeira revolução democrática no
Poder Judiciário brasileiro. Vale registrar, por oportuno, que os
movimentos sociais e os setores mais progressistas da sociedade civil
sequer foram ouvidos por ocasião das escolhas.
Há
um mito de que os juízes devem ser neutros. Isso não existe. Sob o
discurso da neutralidade e da técnica, juízes praticam, e sempre
praticaram, atos políticos a partir de suas visões de mundo. A
extradição de Olga Benário, grávida de Anita Prestes, para os nazistas
que a mataram, por exemplo, foi promovida a partir de uma decisão
política travestida da melhor técnica processual no Supremo Tribunal
Federal. Aliás, há um pouco de Eichemann em todos esses magistrados que
se afirmam neutros e meramente técnicos.
Acho
que, diante dos últimos acontecimentos, a própria esquerda que está no
governo federal acabará se conscientizando da necessidade de se pensar o
Poder Judiciário, de se criarem mecanismos de efetivo controle popular e
de se promoverem indicações para os tribunais superiores de pessoas
comprometidas com o projeto constitucional de vida digna para todos,
para além dos projetos pessoais de poder.
2 comentários:
Pelo que pude entender não se trata de um problema jurídico, se trata de um problema de caráter Com em toda organização existem os pulhas e no judiciário não seria diferente. O "mensalão" foi um crime? se foi que se aplique as penas da Lei, se não foi o judiciário nem deveria ter aceitado a representação, e entendo que é preciso desvincular o ânimo político-partidário que é dado ao caso pela imprensa ordinária, se o caso do mensalão é grave, o que dizer da "privataria" promovida pelo FHC?
Tibiriçá, obrigado por suas palavras, você tem razão.
São muitas coisas inexplicáveis acontecendo sem dar folga, confesso que é difícil entender o que se passa, o certo é que chegara o dia que não teremos mais recursos naturais, e aí?
Fiquei sem internet dois dias, ela sumiu e voltou sem dar a mínima. Procurei e ninguém sabia onde estava, o jeito foi esperar sem procurar entender.
Um grande abraço.
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