quarta-feira, 10 de abril de 2013

À margem do pai


buscado no Gilson Sampaio 

 

Via Epoca



Na floresta amazônica, um homem confronta sua solidão quando um filho seu é picado por uma cobra, o outro por escorpião. Como salvá-los sem nenhum acesso à saúde? O dia a dia dos protetores da Terra do Meio, onde não morrer é um golpe de sorte

ELIANE BRUM

Eliane Brum, jornalista, escritora e documentarista. Autora de um romance - Uma Duas (LeYa) - e de três livros de reportagem: Coluna Prestes – O Avesso da Lenda (Artes e Ofícios), A Vida Que Ninguém Vê (Arquipélago, Prêmio Jabuti 2007) e O Olho da Rua  -  (Foto: Lilo Clareto/Divulgação)Eliane Brum, jornalista, escritora e documentarista. Autora de um romance - Uma Duas (LeYa) - e de três livros de reportagem: Coluna Prestes – O avesso da lenda (Artes e Ofícios), A vida que ninguém vê (Arquipélago, Prêmio Jabuti 2007) e O olho da rua - uma repórter em busca da literatura da vida real (Globo).




Twitter: @brumelianebrum


(Foto: Lilo Clareto/ Divulgação)


Prostrado diante dos dois filhos agonizantes, Antonio da Rocha se descobre só. Sua brasilidade é de papel. À beira de um rio da Amazônia, ele está à margem da Constituição. Na Terra do Meio, no oeste do Pará, Antonio parece o personagem de um quadro de Portinari, um homem da cor do tronco das árvores, por volta de seus 40 e poucos anos, feito só de músculos. Está cercado pela mulher e por filhos que não o chamam “meu” pai, mas “o” pai. Antonio é o pai impotente que chora na noite do mundo. 

É quinta-feira, 28 de março. E agora vamos precisar voltar algumas horas no tempo. Avistamos Antonio e os filhos mais velhos movendo-se como gatos humanos na mata. Nas costas eles trazem o jamanxim, um cesto trançado em palha para carregar os frutos da floresta. Estão embrenhados na selva para catar patauá, de cuja semente se extrai óleo, e açaí, para fazer vinho para a Sexta-Feira Santa. São homens que não estão na floresta – são floresta. É por gente como eles, que é onde muitos apenas estão, que a Terra do Meio ainda resiste.

A tragédia acontecerá daqui a alguns minutos, mas vale a pena nos afastarmos do quadro enquanto eles evolucionam pela floresta. Agora há só verde a perder de vista, um verde quase opressor, um verde que uma vida inteira não é suficiente para esquecer. A Terra do Meio é assim chamada por se estender entre dois grandes maciços de terras indígenas, e entre dois rios, o Xingu e o Iriri. Essa geografia dificultou a devastação oficial, promovida pela ditadura militar nos anos 70, e retardou a devastação não oficial, promovida pelos grileiros ao longo das décadas – e ainda neste exato momento. Mas se a Terra do Meio é hoje uma das regiões amazônicas mais preservadas, com cerca de 90% da floresta em pé, é ao mesmo tempo o centro de um sangrento conflito por terras que a hidrelétrica de Belo Monte só fez piorar.

Agora falta apenas um minuto para a tragédia. Pode parecer uma banalidade aqueles homens coletando frutos numa tarde de quinta-feira. Mas a banalidade é uma ilusão. Antonio pertence a uma comunidade formada por descendentes de soldados da borracha arrancados do Nordeste quando o preço do látex estava em alta e abandonados na mata quando o preço caiu. Esses ribeirinhos extrativistas firmaram resistência quando os grileiros tentaram sangrar a floresta no início dos anos 2000, rasgando estradas, queimando casas, expulsando e matando gente como eles. Sem documentos, o Povo do Meio sequer existia para o Brasil oficial. Mas se fez enxergar e, ao fazê-lo, construiu um épico escrito por analfabetos. Conquistou a primeira reserva extrativista da Terra do Meio, a Resex Riozinho do Anfrísio, assinada por Lula em 2004. Com essa certidão de nascimento, o Brasil reconhecia o Brasil. 

Agora não há mais tempo para o passado. São 17h30. Antonio e seus filhos movem-se pela floresta como parte, não como fora. Valdeci, de 19 anos, sente a fisgada. Nem vê a cobra. “Viu de viagem, não deu pra conhecer”, explicaria depois Lindomar, de 20. Quase ao mesmo tempo Francenildo, de 13, dá um grito. Tinha sido ferroado por um escorpião. Um “lacrau preto ovado” que Lindomar mata com o terçado. A Valdeci é dada a única dose de Específico Pessoa, um elixir contra veneno de cobra, aranha e escorpião que trazem sempre consigo. Não há mais Específico Pessoa para Francenildo. Ele mesmo ainda não sabe que está quase morto e faz questão de carregar seu jamanxim nas costas até o rio. 

Antonio da Rocha já nasceu sabendo que não se pode aguar a picada, que se a ferida molha a vítima pode sentir uma sucessão de choques no corpo que levam à morte. Ele atravessa o charco até a canoa carregando o filho agonizante nos braços. Francenildo vem logo atrás. Num repente, o menino dá um único gemido e cai espumando. Antonio da Rocha tinha acabado de depositar o primeiro filho na canoa quando corre até o segundo, enfia as duas mãos na boca do menino e só tira de lá espuma. A ferida está molhada. Lindomar junta o jamanxim dos irmãos e carrega-os penosamente. “Fiquei esperando por Deus o que ia acontecer.”

Uma tempestade cai sobre eles. Ser alcançado por uma borrasca numa canoa no meio de um rio da Amazônia é como testemunhar uma convulsão do mundo, um princípio e um fim. Antonio da Rocha carrega dois filhos que morrem e sua alma ruge em uníssono com o temporal. Já não há mais dentro e fora, o encerado que cobre a canoa não é capaz de protegê-los. Quando alcançam o porto, a casa e a família, eles viraram água. É água doce, mas Antonio, que tem sobrenome de rocha, chora sal.

É preciso fazer um minuto de silêncio antes de continuar a ler para compreender a solidão de um pai, impotente diante dos filhos que agonizam, no coração não metafórico da floresta amazônica.

(um minuto de silêncio)

Não é possível alcançar a dor de Antonio, porque não a conhecemos. Ou, pelo menos, a maioria de nós tem a fortuna de não a conhecer.

Um dia antes, ele havia dito: “Sou um homem de sorte. Tenho 14 filhos, só perdi um. E todos vivem comigo”. Seis mulheres e sete homens vivos, uma sétima filha morta por “vento caído” ainda bebê. No dia seguinte, ele dirá: “A sorte acabou”.

Há postos de saúde na Terra do Meio, três, construídos por meio de um termo de cooperação entre o Instituto Socioambiental (ISA) e a prefeitura de Altamira. Mas estão vazios. Não há auxiliares de enfermagem, nem equipamentos ou remédios, não há nada nem ninguém. A explicação da prefeitura à imprensa é que não consegue gente qualificada para trabalhar porque a Norte Energia, responsável por Belo Monte, oferece salários muito mais altos, a do governo do estado do Pará é de que essa assistência é atribuição da prefeitura e a do governo federal é de que repassou recursos à prefeitura. Não há postos de saúde, portanto, nem no Riozinho do Anfrísio, nem nas outras reservas extrativistas da Terra do Meio. Quem protege a floresta não é protegido – nem tem assegurado seus direitos constitucionais.

Antonio da Rocha está só de mais de uma maneira. À meia-noite, quando a quinta-feira vira Sexta-Feira Santa, Francenildo morre. Com 13 anos presumidos, aparentando menos de 10, botando sangue pelo nariz e pela boca. A mãe e as irmãs enrolam seu corpo franzino em trapos. Uma fralda com bichinhos, um lençol listrado, um pano branco, uma camiseta amarela. Como se fosse uma múmia egípcia, com as mãos cruzadas sobre o peito. Ou um menino ninja, só com os olhos de fora. Referências do mundo de lá, porque de fato ele é um menino da floresta com a mortalha possível, porque sem mortalha acreditam que não se encontra a porta do céu. 

Francenildo é velado sem vela, o que causa imensa aflição ao pai e à mãe. Sem luz também não se encontra a porta do céu. Colocam duas lamparinas, mas é preciso velas para velar direito. Há algum tempo eles se converteram evangélicos, mesmo sem desacreditar nem de rezas de outra tradição, nem de visagens que lhes dão notícias do além. Então alguém coloca uma daquelas Bíblias baratas de capa colorida sobre o corpinho mirrado de Francenildo. De tempos em tempos um dos meninos menores vai lá, resgata a Bíblia e fica folheando o livro fingindo ler. Como Antonio, o pai, todos são analfabetos. Francenildo morre sem letras. E para esta escuridão nada mais poderá ser feito.

Enquanto tudo isso acontece, Valdeci agoniza. 

Os vizinhos chegam para o velório em rabetas ou remando suas canoas. Ser vizinho na Terra do Meio é estar a horas de distância, quando muito perto, a um dia quando perto, a alguns dias quando meio perto. Para Valdeci tudo está longe demais, especialmente Altamira, nesta época do ano a dois dias de rio na voadeira, o barco mais veloz, a cinco dias na seca. Longe demais para Valdeci viver. Mas Antonio da Rocha ainda é um homem de sorte, embora possivelmente ele não ouse mais se definir deste modo. Um dia antes haviam passado pela região uma procuradora da República, Thais Santi, que investigava as condições de saúde e de educação na Terra do Meio, e dois pesquisadores a serviço da Associação de Moradores do Riozinho do Anfrísio, Maurício Torres e Daniela Alarcon. Ainda estão nas redondezas, a quatro horas de rabeta, quando são avisados do acontecido. Testemunham o que Maurício assim definiria: “o triste dia a dia de uma gente para quem não morrer é um golpe de sorte”.

Ao descobrir que um menino já tinha morrido e o outro morreria em breve, Thais e Daniela tentam contato com Altamira por rádio, em busca de socorro aéreo. Mesmo para uma procuradora leva horas para se conseguir um helicóptero, que pousa sobre um campo de futebol na terra indígena de Cachoeira Seca, no rio Iriri. É muitas vezes aos índios, que com muita luta conseguiram uma unidade de saúde capenga, que os ribeirinhos extrativistas vão pedir ajuda.

Antonio da Rocha nunca tinha se separado de um filho. Ele é como o seu barco que batizou de “Pai e filhos”, um todo indivisível navegando em águas brutais. Agora um homem-barco partido. Finca seu olhar bem dentro dos olhos de Maurício antes de entregar-lhe Valdeci. Não é um olhar que pode ser descrito. As palavras para descrever esse olhar ainda não foram inventadas. 

No alto do barranco homens, mulheres e crianças choram na despedida como se fosse morte. Com Valdeci vai Lindomar, encarregado de representar a família no mundo estrangeiro da cidade. Com um filho nas águas, o outro na terra, Antonio da Rocha soçobra. No velório as conversas dão conta do seu fracasso. “Deu Específico Pessoa para o filho errado”, diz um. “Deixou molhar”, emenda outro. Antonio parece só sentir uma culpa, e esta vai arrastar consigo verde afora. A de não ter braços em número suficiente para carregar dois filhos. Como ele poderia escolher que filho carregar em seus braços de pintura de Portinari? Como ele pôde deixar um enquanto carregava o outro? Como se vive depois de descobrir que apenas dois braços faz do pai um aleijado? 

Quando Valdeci alcança primeiro a Cachoeira Seca, depois o hospital de Itaituba e por fim o de Altamira, um médico ri ao saber que ele tinha recebido uma dose de Específico Pessoa. “Isso não adianta nada, é uma bobagem”, gargalha. Há um mundo inteiro que não se mede em quilômetros entre o médico e Antonio. Um mundo em que Específico Pessoa é a medicina possível, porque os médicos que riem das suas crenças preferem não ir tão longe. Lindomar traz uma lista de precisões para comprar na cidade e levar de volta para casa junto com Valdeci vivo, depois de três dias de internação. Nesta lista, uma tese de antropologia inteira: dois antibióticos e um anti-inflamatório, aguardente Alemã (que livra de todo mal), Pílula Contra tudo (contra tudo o que é ruim), Pílula de Vida. Específico Pessoa.

E velas para Francenildo achar seu caminho. 


(Eliane Brum escreve às segundas-feiras.)


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