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Via Epoca
Na
floresta amazônica, um homem confronta sua solidão quando um filho seu é
picado por uma cobra, o outro por escorpião. Como salvá-los sem nenhum
acesso à saúde? O dia a dia dos protetores da Terra do Meio, onde não
morrer é um golpe de sorte
ELIANE BRUM
Eliane Brum, jornalista, escritora e documentarista. Autora de um romance - Uma Duas (LeYa) - e de três livros de reportagem: Coluna Prestes – O avesso da lenda (Artes e Ofícios), A vida que ninguém vê (Arquipélago, Prêmio Jabuti 2007) e O olho da rua - uma repórter em busca da literatura da vida real (Globo).
Twitter: @brumelianebrum
(Foto: Lilo Clareto/ Divulgação)
Prostrado
diante dos dois filhos agonizantes, Antonio da Rocha se descobre só.
Sua brasilidade é de papel. À beira de um rio da Amazônia, ele está à
margem da Constituição. Na Terra do Meio, no oeste do Pará, Antonio
parece o personagem de um quadro de Portinari, um homem da cor do tronco
das árvores, por volta de seus 40 e poucos anos, feito só de músculos.
Está cercado pela mulher e por filhos que não o chamam “meu” pai, mas
“o” pai. Antonio é o pai impotente que chora na noite do mundo.
É
quinta-feira, 28 de março. E agora vamos precisar voltar algumas horas
no tempo. Avistamos Antonio e os filhos mais velhos movendo-se como
gatos humanos na mata. Nas costas eles trazem o jamanxim, um cesto
trançado em palha para carregar os frutos da floresta. Estão embrenhados
na selva para catar patauá, de cuja semente se extrai óleo, e açaí,
para fazer vinho para a Sexta-Feira Santa. São homens que não estão na
floresta – são floresta. É por gente como eles, que é onde muitos apenas
estão, que a Terra do Meio ainda resiste.
A
tragédia acontecerá daqui a alguns minutos, mas vale a pena nos
afastarmos do quadro enquanto eles evolucionam pela floresta. Agora há
só verde a perder de vista, um verde quase opressor, um verde que uma
vida inteira não é suficiente para esquecer. A Terra do Meio é assim
chamada por se estender entre dois grandes maciços de terras indígenas, e
entre dois rios, o Xingu e o Iriri. Essa geografia dificultou a
devastação oficial, promovida pela ditadura militar nos anos 70, e
retardou a devastação não oficial, promovida pelos grileiros ao longo
das décadas – e ainda neste exato momento. Mas se a Terra do Meio é hoje
uma das regiões amazônicas mais preservadas, com cerca de 90% da
floresta em pé, é ao mesmo tempo o centro de um sangrento conflito por
terras que a hidrelétrica de Belo Monte só fez piorar.
Agora
falta apenas um minuto para a tragédia. Pode parecer uma banalidade
aqueles homens coletando frutos numa tarde de quinta-feira. Mas a
banalidade é uma ilusão. Antonio pertence a uma comunidade formada por
descendentes de soldados da borracha arrancados do Nordeste quando o
preço do látex estava em alta e abandonados na mata quando o preço caiu.
Esses ribeirinhos extrativistas firmaram resistência quando os
grileiros tentaram sangrar a floresta no início dos anos 2000, rasgando
estradas, queimando casas, expulsando e matando gente como eles. Sem
documentos, o Povo do Meio sequer existia para o Brasil oficial. Mas se
fez enxergar e, ao fazê-lo, construiu um épico escrito por analfabetos.
Conquistou a primeira reserva extrativista da Terra do Meio, a Resex
Riozinho do Anfrísio, assinada por Lula em 2004. Com essa certidão de
nascimento, o Brasil reconhecia o Brasil.
Agora
não há mais tempo para o passado. São 17h30. Antonio e seus filhos
movem-se pela floresta como parte, não como fora. Valdeci, de 19 anos,
sente a fisgada. Nem vê a cobra. “Viu de viagem, não deu pra conhecer”,
explicaria depois Lindomar, de 20. Quase ao mesmo tempo Francenildo, de
13, dá um grito. Tinha sido ferroado por um escorpião. Um “lacrau preto
ovado” que Lindomar mata com o terçado. A Valdeci é dada a única dose de
Específico Pessoa, um elixir contra veneno de cobra, aranha e escorpião
que trazem sempre consigo. Não há mais Específico Pessoa para
Francenildo. Ele mesmo ainda não sabe que está quase morto e faz questão
de carregar seu jamanxim nas costas até o rio.
Antonio
da Rocha já nasceu sabendo que não se pode aguar a picada, que se a
ferida molha a vítima pode sentir uma sucessão de choques no corpo que
levam à morte. Ele atravessa o charco até a canoa carregando o filho
agonizante nos braços. Francenildo vem logo atrás. Num repente, o menino
dá um único gemido e cai espumando. Antonio da Rocha tinha acabado de
depositar o primeiro filho na canoa quando corre até o segundo, enfia as
duas mãos na boca do menino e só tira de lá espuma. A ferida está
molhada. Lindomar junta o jamanxim dos irmãos e carrega-os penosamente.
“Fiquei esperando por Deus o que ia acontecer.”
Uma
tempestade cai sobre eles. Ser alcançado por uma borrasca numa canoa no
meio de um rio da Amazônia é como testemunhar uma convulsão do mundo,
um princípio e um fim. Antonio da Rocha carrega dois filhos que morrem e
sua alma ruge em uníssono com o temporal. Já não há mais dentro e fora,
o encerado que cobre a canoa não é capaz de protegê-los. Quando
alcançam o porto, a casa e a família, eles viraram água. É água doce,
mas Antonio, que tem sobrenome de rocha, chora sal.
É
preciso fazer um minuto de silêncio antes de continuar a ler para
compreender a solidão de um pai, impotente diante dos filhos que
agonizam, no coração não metafórico da floresta amazônica.
(um minuto de silêncio)
Não
é possível alcançar a dor de Antonio, porque não a conhecemos. Ou, pelo
menos, a maioria de nós tem a fortuna de não a conhecer.
Um
dia antes, ele havia dito: “Sou um homem de sorte. Tenho 14 filhos, só
perdi um. E todos vivem comigo”. Seis mulheres e sete homens vivos, uma
sétima filha morta por “vento caído” ainda bebê. No dia seguinte, ele
dirá: “A sorte acabou”.
Há postos de saúde na Terra do Meio, três, construídos por meio de um termo de cooperação entre o Instituto Socioambiental
(ISA) e a prefeitura de Altamira. Mas estão vazios. Não há auxiliares
de enfermagem, nem equipamentos ou remédios, não há nada nem ninguém. A
explicação da prefeitura à imprensa é que não consegue gente qualificada
para trabalhar porque a Norte Energia, responsável por Belo Monte,
oferece salários muito mais altos, a do governo do estado do Pará é de
que essa assistência é atribuição da prefeitura e a do governo federal é
de que repassou recursos à prefeitura. Não há postos de saúde,
portanto, nem no Riozinho do Anfrísio, nem nas outras reservas
extrativistas da Terra do Meio. Quem protege a floresta não é protegido –
nem tem assegurado seus direitos constitucionais.
Antonio
da Rocha está só de mais de uma maneira. À meia-noite, quando a
quinta-feira vira Sexta-Feira Santa, Francenildo morre. Com 13 anos
presumidos, aparentando menos de 10, botando sangue pelo nariz e pela
boca. A mãe e as irmãs enrolam seu corpo franzino em trapos. Uma fralda
com bichinhos, um lençol listrado, um pano branco, uma camiseta amarela.
Como se fosse uma múmia egípcia, com as mãos cruzadas sobre o peito. Ou
um menino ninja, só com os olhos de fora. Referências do mundo de lá,
porque de fato ele é um menino da floresta com a mortalha possível,
porque sem mortalha acreditam que não se encontra a porta do céu.
Francenildo
é velado sem vela, o que causa imensa aflição ao pai e à mãe. Sem luz
também não se encontra a porta do céu. Colocam duas lamparinas, mas é
preciso velas para velar direito. Há algum tempo eles se converteram
evangélicos, mesmo sem desacreditar nem de rezas de outra tradição, nem
de visagens que lhes dão notícias do além. Então alguém coloca uma
daquelas Bíblias baratas de capa colorida sobre o corpinho mirrado de
Francenildo. De tempos em tempos um dos meninos menores vai lá, resgata a
Bíblia e fica folheando o livro fingindo ler. Como Antonio, o pai,
todos são analfabetos. Francenildo morre sem letras. E para esta
escuridão nada mais poderá ser feito.
Enquanto tudo isso acontece, Valdeci agoniza.
Os
vizinhos chegam para o velório em rabetas ou remando suas canoas. Ser
vizinho na Terra do Meio é estar a horas de distância, quando muito
perto, a um dia quando perto, a alguns dias quando meio perto. Para
Valdeci tudo está longe demais, especialmente Altamira, nesta época do
ano a dois dias de rio na voadeira, o barco mais veloz, a cinco dias na
seca. Longe demais para Valdeci viver. Mas Antonio da Rocha ainda é um
homem de sorte, embora possivelmente ele não ouse mais se definir deste
modo. Um dia antes haviam passado pela região uma procuradora da
República, Thais Santi, que investigava as condições de saúde e de
educação na Terra do Meio, e dois pesquisadores a serviço da Associação
de Moradores do Riozinho do Anfrísio, Maurício Torres e Daniela Alarcon.
Ainda estão nas redondezas, a quatro horas de rabeta, quando são
avisados do acontecido. Testemunham o que Maurício assim definiria: “o
triste dia a dia de uma gente para quem não morrer é um golpe de sorte”.
Ao descobrir que um menino já tinha morrido e o
outro morreria em breve, Thais e Daniela tentam contato com Altamira
por rádio, em busca de socorro aéreo. Mesmo para uma procuradora leva
horas para se conseguir um helicóptero, que pousa sobre um campo de
futebol na terra indígena de Cachoeira Seca, no rio Iriri. É muitas
vezes aos índios, que com muita luta conseguiram uma unidade de saúde
capenga, que os ribeirinhos extrativistas vão pedir ajuda.
Antonio
da Rocha nunca tinha se separado de um filho. Ele é como o seu barco
que batizou de “Pai e filhos”, um todo indivisível navegando em águas
brutais. Agora um homem-barco partido. Finca seu olhar bem dentro dos
olhos de Maurício antes de entregar-lhe Valdeci. Não é um olhar que pode
ser descrito. As palavras para descrever esse olhar ainda não foram
inventadas.
No alto do barranco homens,
mulheres e crianças choram na despedida como se fosse morte. Com Valdeci
vai Lindomar, encarregado de representar a família no mundo estrangeiro
da cidade. Com um filho nas águas, o outro na terra, Antonio da Rocha
soçobra. No velório as conversas dão conta do seu fracasso. “Deu
Específico Pessoa para o filho errado”, diz um. “Deixou molhar”, emenda
outro. Antonio parece só sentir uma culpa, e esta vai arrastar consigo
verde afora. A de não ter braços em número suficiente para carregar dois
filhos. Como ele poderia escolher que filho carregar em seus braços de
pintura de Portinari? Como ele pôde deixar um enquanto carregava o
outro? Como se vive depois de descobrir que apenas dois braços faz do
pai um aleijado?
Quando Valdeci alcança
primeiro a Cachoeira Seca, depois o hospital de Itaituba e por fim o de
Altamira, um médico ri ao saber que ele tinha recebido uma dose de
Específico Pessoa. “Isso não adianta nada, é uma bobagem”, gargalha. Há
um mundo inteiro que não se mede em quilômetros entre o médico e
Antonio. Um mundo em que Específico Pessoa é a medicina possível, porque
os médicos que riem das suas crenças preferem não ir tão longe.
Lindomar traz uma lista de precisões para comprar na cidade e levar de
volta para casa junto com Valdeci vivo, depois de três dias de
internação. Nesta lista, uma tese de antropologia inteira: dois
antibióticos e um anti-inflamatório, aguardente Alemã (que livra de todo
mal), Pílula Contra tudo (contra tudo o que é ruim), Pílula de Vida.
Específico Pessoa.
E velas para Francenildo achar seu caminho.
(Eliane Brum escreve às segundas-feiras.)
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