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por Urariano Motta*
Recife (PE) - Em 29 de
janeiro, fez 10 anos a morte da advogada Mércia Albuquerque. Não
sei se foi por isso, mas nos últimos dias a sua presença voltou com
uma força que eu não imaginava. Tornou-se impossível fugir da sua
pessoa em cada linha ou leitura que eu fazia. Por isso lembro.
Rua Sete de Setembro,
197, Edifício Ouro. Na década de 70, era para lá que rumávamos.
Entrávamos no edifício sem olhar para trás, rápido, como se
ladrões fôssemos, como se fôssemos criminosos, como se já
estivéssemos no Chile de Pinochet e ali penetrássemos para nos
salvar em uma embaixada. Ali, no apartamento 52 do Edifício Ouro,
uma mulher de estatura média, de olhos abrasantes, nos atendia.
“Advogada Mércia
Albuquerque, presente”. Não eram essas as palavras, não era bem
assim que ela nos vinha, mas era exatamente esse o ar, que a sua
presença nos sugeria. “Descansem. Eu estou presente. Sim, eu
conheço esses milicos. Essa canalha do DOPS eu já sei como age.
Descansem, vocês estão em casa”. Não lembramos bem se essas eram
as palavras, se algum dia ela assim se expressou, mas sentimos que do
seu corpo frágil, agitado, andando pela sala do apartamento, sem se
sentar, vinha a insinuação delas. “Tranqüilizem-se, se fizermos
a denúncia, a vida dele está salva”. Elétrica, agitada, e no
entanto nos dava uma grande calma.
Agora que ela não mais
habita no Edifício Ouro, agora que seu corpo se acha definitivamente
ausente, agora que superamos a ditadura, nesta altura em que ficou
fácil ser democrata, ah, o factual, o seu currículo de advogada de
perseguidos políticos, de presos torturados, tudo isso tende a se
fundir em versões e esquecimento. Não sabemos se é sempre assim
quando a gente se ausenta, mas de Mércia fica uma impressão íntima,
uma forma de orquídea violeta que não sabemos de onde nem por que
nos vem. Agora mesmo, enquanto digito estas mal traçadas, a voz de
Bienvenido Granda me chega insistente aos ouvidos, embora em torno só
haja o tique-taque do relógio no silêncio da madrugada. “Egoísmo”
é o bolero que nos chega, não sabemos por quê.
E no entanto sabemos a
razão, ou pelo menos desconfiamos do porquê. A doutora Mércia
Albuquerque era um ser passional. É isto o que a violeta roxa, na
voz de Bienvenido Granda, quer me dizer. Mércia, mal saída da
universidade, resolveu defender Gregório Bezerra porque o viu
arrastado por uma corda ao pescoço em 1964, em Casa Forte. Mais
tarde, ao se tornar advogada de Abelardo da Hora, um comunista e
escultor fundamental, ela abrigou os filhos de Abelardo no
apartamento 52 do Edifício Ouro. Ao ser sequestrada por agentes do
DOPS, foi atirada de volta na Rua da Guia, que, à época, era a
última e mais miserável rua do bairro de putas do Recife antigo.
Ali, ela recordaria depois, recebeu dinheiro e solidariedade de uma
prostituta que atendia pelo nome de Biscuit. Defensora de radicais
materialistas, de jovens socialistas ou de jovens simplesmente
desesperados, sem saída, era, ela própria, católica, até meio
mística, e nisso não via nada que fosse obstáculo à defesa
daqueles “terroristas”, como os difamava a propaganda da ditadura
militar.
Ninguém passa imune
pela luta e drama desses jovens, até hoje. Em 29 de janeiro de 2003
a doutora Mércia foi ali e não voltou, vítima de um câncer que
lhe devastou o ovário. Ainda que esse câncer sintomático lhe tenha
minado a vida, traiçoeira e silenciosamente, não foi bem essa
infâmia que a matou. Pois foi a esta mulher, tantas vezes presente
nas aflições dos perseguidos políticos, que tanto perigo correu
por defender “terroristas”, que presa 12 vezes sem culpa, sem
inquérito, sem acusação formal, como de resto se continua a fazer
com os pobres e miseráveis do Brasil, que conviveu com a destruição
física e humana de militantes, e também com o heroísmo imenso
desses torturados, pois foi a esta mulher que parecia ter flertado
com a eternidade, porque tantas vezes esteve perto do fim e dele se
safou e o pulou como acrobata, pois foi a esta mulher que a morte
colheu numa mesa de operações! A causa mortis apontou parada
cardíaca.
Para uma advogada
passional, para uma mulher que lembrava a rara orquídea roxa, faz
sentido uma morte assim, de parada no coração. A vida da gente é
estúpida, é certo, mas ao fim sempre guarda algum sentido. Um
sentido que não sabemos se conseguimos realizar, doutora, neste
espaço curto, nesta lembrança curta de quem a viu uma vez, mas
jamais esqueceu de que seus olhos queimavam na gente feito urtiga.
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Urariano Motta*
é natural de Água Fria, subúrbio da zona norte do Recife. Escritor
e jornalista, publicou contos em Movimento, Opinião, Escrita, Ficção
e outros periódicos de oposição à ditadura. Atualmente, é
colunista do Direto da Redação e colaborador do Observatório da
Imprensa. As revistas Carta Capital, Fórum e Continente também já
veicularam seus textos. Autor de Soledad no Recife
(Boitempo, 2009) sobre a passagem da militante paraguaia Soledad
Barret pelo Recife, em 1973, e Os corações futuristas
(Recife, Bagaço, 1997).
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