domingo, 22 de julho de 2012

Heróis da direita: Lacerda, o corvo golpista

buscado no História e Política

por Gustavo Moreira


            É comum encontrarmos nas ruas do Rio de Janeiro, em especial nos bairros que cultivam uma auto-imagem aristocrática, conservadores e liberais que enaltecem a memória de Carlos Lacerda (1914-1977).  Antigo militante comunista, ainda jovem Lacerda se bandeou para as forças que compuseram a União Democrática Nacional (UDN), partido do qual seu pai, Maurício de Lacerda (1888-1959), foi um dos fundadores.  Tornou-se em pouco tempo o líder incontestável da direita na capital do país.     
           Mais do que as obras de engenharia realizadas por Carlos Lacerda durante seu governo no estado da Guanabara (1960-1965), como a construção da estação de tratamento de águas do Guandu, dos túneis Santa Bárbara e Rebouças, e a urbanização do Aterro do Flamengo, os lacerdistas reverenciam a disposição implacável para o combate retórico e prático aos trabalhistas e comunistas, bem como a todos os dirigentes contrários às suas cruzadas supostamente moralizantes. 
          Relega-se ao esquecimento o caráter ardiloso e truculento de Lacerda, que lhe valeu o apelido de Corvo do Lavradio, logradouro carioca em que funcionava A Tribuna da Imprensa, jornal de sua propriedade.  Carlos Lacerda foi uma das figuras mais antidemocráticas da política brasileira do terceiro quartel do século XX.  Na ânsia de chegar à Presidência da República, fez o que esteve ao seu alcance para desestabilizar as gestões de Getúlio Vargas, Jânio Quadros e João Goulart, além de conspirar contra a posse de Juscelino Kubitschek.  Para isto, recorreu aos numerosos contatos que estabelecidos com elementos golpistas das Forças Armadas.          
           A exposição de todas as patifarias de Lacerda, mesmo que sucinta, poderia formar um robusto livro.  Fica a sugestão, para quem dispuser de tempo para a tarefa.  Por ora, apresento um breve roteiro, o bastante para delinear o perfil de um político que aliava a índole reacionária à incoerência e a um feroz oportunismo.  

Agosto de 1953- Carlos Lacerda publica n'A Tribuna da Imprensa um documento falso para denegrir João Goulart, então ministro do Trabalho:

A Tribuna da Imprensa acusava-o ora de corrupção ora de aliar-se aos comunistas, o que muitos candidatos da UDN também fizeram sem que ninguém por isto os criticasse.  E Lacerda chegou ao ponto de divulgar uma carta falsa, atribuída ao deputado argentino Antonio Brandi, procurando comprometer Goulart com um suposto plano de "coordenação sindical entre o Brasil e a Argentina", criação de "brigadas operárias de choque" e contrabando de material bélico pela fronteira de Uruguaiana.  O inquérito realizado pelo general Emílio Maurell Filho concluiu que a carta era "incontestavelmente falsa", forjada por dois falsários argentino, conhecidos como Mestre Cordero e Malfussi, conforme depois se comprovaria.  E não seria demais supor que a CIA também estivesse envolvida no caso.  Joaquim Miguel Vieira Ferreira, secretário-geral da Cruzada Brasileira Anticomunista e agente do Serviço de Informações da Marinha, vangloriou-se certa vez de ter inspirado a famosa Carta Brandi.  Esse homem, conhecido pelo pseudônimo de Victor, recebia Cr$ 300.000,00 do serviço secreto norte-americano e, em 1958, falsificaria outros documentos, como um acordo do PTB com os comunistas e um memorial de militares, reclamando a renúncia de Kubitschek e Goulart, bem como a paralisação das obras de Brasília. (BANDEIRA, Luiz Alberto Moniz.  O governo João Goulart: as lutas sociais no Brasil, 1961-1964.  Rio de Janeiro: Revan; Brasília: UnB, 2001, p. 58)  




24 de agosto de 1954- Carlos Lacerda festeja uma suposta renúncia de Getúlio Vargas para depois simular consternação com o suicídio do presidente: 

Ainda no dia 24 de agosto, O Dia, em edição extra, precipitadamente anunciava que Getúlio Vargas havia renunciado.  Na primeira página, sob o título "Calma na Cidade", dizia:

"O desfecho da crise não surpreendeu o carioca, que, desde as últimas horas de ontem aguardava, com impaciência, a renúncia do chefe da Nação.  Absoluta calma em todos os setores da cidade, que despertou sem ter notado a mais leve alteração em sua habitual fisionomia.  Apenas mais policiamento nos edifícios públicos e um movimento um tanto fora do comum na órbita do Catete."

Carlos Lacerda, logo ao saber da renúncia do presidente às 4 horas da madrugada, dirigiu-se à residência do sr. Café Filho e, muito sorridente e caloroso, cumprimentou-o efusivamente.

                                                          (...)

Os jornais também recuaram diante dos acontecimentos.  A Tribuna da Imprensa, ainda no dia 24, declarava na primeira página: "Seu sacrifício serve de lição e advertência.  Paz à alma de Getúlio Vargas.  E paz, na terra, ao Brasil e ao seu atribulado povo".
Carlos Lacerda, na mesma página, dizia:
"Inclino-me diante do corpo do Presidente e imploro à misericórdia de Deus perdão para o seu gesto de desespero.  (...) Com seu suicídio, Getúlio Vargas repudiou os mandantes do crime, que agora se escondem na emoção de sua morte (...).  Traíram-no os falsos amigos.

( FERREIRA, Jorge.  O carnaval da tristeza: os motins urbanos do 24 de agosto.  In: Vargas e a crise dos anos 50/Angela de Castro Gomes [org.],  Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1994, pp. 93/94)


Novembro de 1955- O general Henrique Lott, para assegurar a posse do presidente eleito, Juscelino Kubitschek, depõe o presidente interino, Carlos Luz.  Carlos Lacerda se esconde em um navio da Marinha e depois na embaixada da Cuba de Fulgencio Batista:

O que importa ressaltar é que, do ponto de vista militar, o golpe foi um sucesso.  O Rio de Janeiro ficou inteiramente sob controle e os comandos de Minas Gerais, Mato Grosso e Paraná enviaram tropas para São Paulo, onde se esperava uma reação, devido à partida do Brigadeiro Eduardo Gomes, entrincheirado em Cumbica com 40 aviões da FAB.  Mas o governador Jânio Quadros permanece indiferente e o General Falconiere aí assume o comando pró-legalidade.  Frustra-se a reação de Carlos Luz que, em companhia de alguns ministros, vários oficiais e políticos como Carlos Lacerda (que mais tarde se refugiaria na embaixada de Cuba) embarca no Cruzador Tamandaré, na esperança de um desembarque vitorioso em Santos. (BENEVIDES, Maria Victoria de Mesquita.  A UDN e o udenismo.  Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1981, pp. 98/99) 


Carlos Lacerda, em suas memórias, admite que a postura de seu partido, a UDN, de negar a legitimidade da eleição de Juscelino e Jango, em 1955, com o argumento de que a chapa não obteve maioria absoluta, foi uma tentativa fracassada de enganar o eleitorado:

A maioria absoluta, defendida principalmente pela "Banda de Música" e seu principal orador, Aliomar Baleeiro, não teve a mesma repercussão que em 1950, quando da eleição de Getúlio Vargas.  O desgaste do recurso era inevitável, como reconheceria Carlos Lacerda em suas memórias: "vamos dizer a verdade, o povo sentiu que era uma manobra em cima da eleição, para mudar as regras do jogo, depois do jogo começado.  E, evidentemente, não pegou" (1978, p. 102).  (A UDN e o udenismo, p. 97)

1961- O corvo se junta aos porcos:

Anteriormente, ocorreu o episódio em que o embaixador dos Estados Unidos, Moors Cabot, fora ao palácio entrevistar-se com Jânio para protestar contra a política externa independente de seu governo.  Como a conversa ficara ríspida, Jânio levantou-se e ordenou que o embaixador se retirasse.  O presidente John Kennedy enviara seu emissário especial, Adolf Berle Jr., para sondar sobre possível invasão a Cuba com forças internacionais das quais o Brasil participaria.  Recebeu forte negativa de Jânio.  Mais tarde, essa invasão se daria pela baía dos Porcos, rechaçada por Fidel.  O governador da Guanabara, Carlos Lacerda, saúda a invasão e recebe muitos anticastristas no Rio.  
(BARBOSA, Vivaldo.  A Rebelião da Legalidade: documentos, pronunciamentos,noticiário, comentários.  Rio de Janeiro: FGV, 2002, p. 17)  


Agosto de 1961- Renunciando Jânio, Lacerda é figura de proa nas articulações golpistas para impedir a posse do vice João Goulart, prevista pela Constituição:

Enquanto Ranieri Mazzilli desenvolve essas articulações, os ministros militares, por seu lado, tomaram providências na área militar e procuraram contatos políticos.  Não encontram grande ressonância no Congresso, apenas o respaldo de alguns deputados e senadores que com eles passaram a manter contatos frequentes, embora raramente utilizem a tribuna para demonstrar alinhamento com o golpe.  Só encontram mesmo um eco forte: o governador Carlos Lacerda, da Guanabara, estado em que foi transformada a cidade do Rio de Janeiro, antigo Distrito Federal, por ocasião da mudança da capital para Brasília, em 1961, feita pelo presidente Juscelino Kubitschek.  Esse engajamento do governador Carlos Lacerda ficou evidenciado pelas articulações e contatos que desenvolveu junto à direita no setor político e na área militar, pela forte repressão que desencadeou às manifestações populares que aconteciam no Rio, talvez as maiores no país depois de Porto Alegre, como parte da Rebelião da Legalidade, e pela censura a rádios, jornais e à incipiente televisão.  Machado Lopes assim descreve a forte participação de Lacerda no golpe:

Na Guanabara, o governador Carlos Lacerda reunia em palácio alguns governadores filiados à UDN e políticos influentes do mesmo partido, e propunha lançar um manifesto à nação, com teor que podia ser assim resumido:

1- impedir a posse do sr. João Goulart na presidência da República;
2- apoio incondicional à ação dos três ministros militares;    
3-eleição indireta, pelo Congresso Nacional, do sr. Juracy Magalhães para a presidência da República

(A Rebelião da Legalidade,, pp. 93/94)

Outubro de 1962- Durante a Crise dos Mísseis em Cuba, Lacerda ordena repressão selvagem aos manifestantes anti-EUA:

Houve comícios em todo o país, realizados pelos sindicatos e associações estudantis.  As manifestações evidenciaram, pelo seu vigor, o acirramento do antiamericanismo.  Alguns dirigentes comunistas, que tentavam conter a exaltação dos ânimos, nem sempre alcançaram êxito.  E, no Rio de Janeiro, os líderes do CGT, moderados, não conseguiram evitar que uma concentração de massas, em frente da antiga Câmara dos Deputados, se convertesse em passeata de protesto e marchasse contra a Embaixada dos EUA, tendo que enfrentar bombas de gás lacrimogêneo, jatos d'água e outras violências da polícia do governo Lacerda. (O governo João Goulart, p. 91)


1964- Carlos Lacerda forma com a linha dura do golpismo e clama por mais cassações:

Carlos Lacerda opunha-se às iniciativas do presidente Castello Branco quanto à antecipação da Constituinte Nacional, e, sobretudo, quanto à prorrogação do mandato.  Esta prorrogação se daria através de uma emenda, dos senadores udenistas João Agripino e Afonso Arinos, vista por Lacerda como "um instrumento contra sua vitória certa nas eleições de 65".  A verdade é que Lacerda se aproximara da "linha dura", anti-Castello, e passara a contar com a oposição dos setores mais liberais dentro da própria UDN, como Afonso Arinos, João Agripino, Milton Campos e Daniel Krieger, para quem Lacerda, se eleito, "seria um ditador" (cit. por Viana Filho, 1975, p. 103).  Em dezembro de 1964, por exemplo, Lacerda chega a pedir o expurgo do Supremo Tribunal Federal e a continuação do Ato primeiro, "contra o legalismo de Castello Branco (Carlos Castello Branco, 1977, p. 169).  (A UDN e o udenismo, pp. 130/131)    


1966/1967- Frustrado em suas pretensões de ser conduzido à Presidência da República pela ditadura, Lacerda busca o apoio dos que sempre ofendeu e repudiou:

A radicalização e o aguçamento do autoritarismo militar, com a decretação do Ato Institucional n. 2, terminaram por desintegrar a frente política que apoiara o golpe de Estado em 1964.  Carlos Lacerda, cuja ambição consistia em suceder Castelo Branco na Presidência da República, frustrou-se, ao ver que o caminho para realizá-la se lhe fechara, primeiro com a prorrogação do mandato de Castelo Branco até 15 de março de 1967 e, em seguida, com a virtual escolha do marechal Artur da Costa e Silva, ministro da Guerra, para sucedê-lo no governo, a partir de 15 de março de 1967.  Como o jornalista Carlos Heitor Cony observou, Lacerda "ficara no vácuo, na posse de direitos políticos que não lhe davam direito nem à política (que deixara de haver em seu escalão civil) nem a mais nada, a não ser ruminar a frustração de não ser aquilo que podia ter sido".  E, em tais circunstâncias, ele rompeu com Castelo Branco, de quem disse ser "mais feio por dentro do que por fora", debandou para a oposição, com o propósito de conquistar-lhe a liderança, e passou a atacar violentamente o regime militar, ao mesmo tempo em que tratava de compor uma Frente Ampla com seus antigos adversários, Kubitschek e Goulart, bem como com Brizola e Miguel Arraes, o ex-governador de Pernambuco, e até os comunistas, visando à redemocratização do Brasil.  (O governo João Goulart, p. 191)  

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