quinta-feira, 26 de julho de 2012

Ser chefe de índio é arriscado

Buscado no Cirandeiras

 

por Sérgio Domingues em Pílulas diárias

Ainda aprendendo com os índios, continuamos citando o livro “Convite à Filosofia”, de Marilena Chauí:
As sociedades indígenas são tribais ou comunais. Nelas, não há propriedade privada nem divisão social do trabalho, não havendo, portanto, classes sociais nem luta de classes. A propriedade é tribal ou comum e o trabalho se divide por sexo e idade. São comunidades no sentido pleno do termo, isto é, são internamente homogêneas, unas e indivisas, possuindo uma História e um destino comuns. São sociedades do cara-a-cara, onde todos se conhecem pelo nome e são vistos uns pelos outros diariamente.
Por isso mesmo, nelas o poder não se destaca nem se separa, não forma uma instância acima dela (como na política), nem fora dela (como no despotismo). A chefia não é um poder de mando a que a comunidade obedece. O chefe não manda; a comunidade não obedece. A comunidade decide para si mesma, de acordo com suas tradições e necessidades.
Se não tem poder,o que faz o chefe? O texto diz que ele exerce “três funções: doar presentes,fazer a paz e falar”. Segundo Marilena:
A doação de presentes é a maneira deliberada que a comunidade inventou para impedir que alguém possa concentrar bens e riquezas, tornar-se proprietário privado, criar desigualdade econômica e social, de onde surgem a luta de classes e a necessidade do poder do Estado.
Quanto à fala, o chefe a usa para manter a paz. Como a comunidade não dispõe de leis para resolver conflitos, o chefe apela ao bom senso, aos costumes, à memória e à tradição.Mas há outra função para a fala. É a Grande Palavra:
Todas as tardes, o chefe se dirige a um local distante da aldeia, mas visível e de onde possa ser ouvido, e ali discursa. Embora ouvido, ninguém deve dar-lhe atenção e o que ele diz não é ordem ou comando obrigando à obediência. Que diz ele? Diz a palavra do poder: canta sua força e coragem, seu prestígio, sua relação com os deuses, seus grandes feitos. Mas ninguém lhe dá atenção. Ninguém o escuta.
A Grande Palavra tem significado simbólico: a comunidade lembra a si mesma,diariamente, o risco e o perigo que correria se possuísse um chefe que lhe desse ordens e ao qual devesse obedecer. A Grande Palavra simboliza a maneira pela qual a comunidade impede o advento do poder como algo separado dela e que a comandaria pela coerção da lei e das armas. Com a cerimônia da Grande Palavra, a sociedade se coloca contra o surgimento do Estado.
Segundo o texto,se o chefe tenta usar suas funções para criar uma forma separada de poder, ele é morto pela comunidade.
É, parece que esses povos têm muito a nos ensinar.

Aos mestres indígenas, com carinho

Grande parte das pessoas ainda encara os indígenas como povos ingênuos, que têm muito a aprender e evoluir. Espécie de crianças a serem educadas. Algo bastante conveniente para o poder econômico, que está de olho em suas terras.
Sobre isso, vejamos um trecho do livro “Convite à Filosofia”, de Marilena Chauí. Referindo-se aos povos ameríndios que não estavam organizados em grandes impérios, a filósofa diz que:
…os conquistadores encontraram as demais nações americanas organizadas de maneira incompreensível para os padrões europeus. Transformaram o que eram incapazes de compreender em inferioridade dos americanos. Considerando-os selvagens e bárbaros, justificavam a escravidão, a evangelização e o extermínio.
A esta visão dá-se o nome de etnocentrismo. Isto é, uma concepção que considera como corretos apenas padrões e valores dos brancos. O atraso dos povos indígenas estaria no fato de não terem mercado, escrita, história e Estado. Não é bem assim, explica Marilena:
O antropólogo francês Pierre Clastres estudou essas sociedades por um prisma completamente diferente, longe do etnocentrismo costumeiro. Mostrou que possuem escrita, mas que esta não é alfabética nem ideográfica ou hieroglífica (isto é, não é a escrita conhecida pelos ocidentais e orientais), mas é simbólica, gravada nos corpos das pessoas por sinais específicos, inscrita com sinais específicos em objetos determinados e em espaços determinados. Somos nós que não sabemos lê-la.
Mostrou também que possuem memória – mitos e narrativas dos povos -, transmitida oralmente de geração em geração, transformando-se de geração em geração. Mostrou, pelas mudanças na escrita e na memória, que tais sociedades possuem História, mas que esta é inseparável da relação dos povos com a Natureza,diferentemente da nossa História, que narra como nos separamos da Natureza e como a dominamos. Mas, sobretudo, mostrou por que e como tais sociedades são contra o mercado e contra o Estado. Em outras palavras, não são sociedades sem comércio e sem Estado, mas contrárias a eles.
Diante disso, é bem duvidoso que sejamos nós os que têm algo a ensinar. Basta ver o que estamos fazendo com o ambiente e o que é o Estado sob o qual vivemos. Amanhã, continuaremos a aprender com os índios.

2 comentários:

Fernando disse...

Jader, meu caro: quem são os selvagens, os iletrados? Quem são os conscientes? Quem tem a visão de longo prazo? Nos seriados antigos - Zorro, Bat Masterson, entre outros - os "selvagens" tinham que ser massacrados. Quando criança e tínhamos o FORTE APACHE, o senso de dominação era forte o bastante até nesses brinquedos "inocentes" com direito a muros altos e tudo o mais. Interiorizamos essa neura e hoje moramos em celas, gastamos uma grana preta com muros, cercas e alarmes. Uma situação ridícula que tem que desmoronar. Afinal, somos eres da mesma espécie. E o mundo tem recurso para todos! Grande abraço!

jader resende disse...

Fernando, os métodos de aliciamentos mentais principalmente nas crianças ainda são os mesmos e bem mais sofisticas, além de passarem a ser taxados de consumidores de grande potencial.
É lamentável Fernando.

Um grande abraço