quarta-feira, 23 de junho de 2010

MULHERES QUE FORAM À LUTA ARMADA


Luiz Maklouf Carvalho

[ Revista Marie Claire - setembro de 1996 ]

Vão bem, obrigado, as guerrilheiras do Brasil. Têm lá seus problemas, como todo mundo, mas felizmente estão bem, senhoras ou quase na faixa dos 50, às vezes mais, o que mostra o quanto eram jovens à época em que foram à luta armada contra o regime militar. Lá se vão 28 anos - as ações violentas das organizações comunistas vieram a público em 1968 - e, quem diria, aí estão elas de novo, dessa vez desarmadas, participando da releitura pós-moderna de seu papel na história.

"Agora estamos na moda", diz a vovozinha de todas elas, Dulce Maia, 68 anos. Dulce, irmã da unanimidade nacional Carlito Maia, foi das primeiras mulheres a pegar em armas - em ações de absoluto atrevimento - e é hoje, recém-emigrada para a deliciosa Cunha (SP), uma prova viva de que esse tempo horrível, como definiu o presidente Fernando Henrique Cardoso, realmente existiu.

Quando diz "agora estamos na moda" - com uma saborosa pitada de ironia - Dulce constata o fato recente de que a guerrilha está aí, revisitada, e desta vez na ofensiva, cobrando do Estado reparações morais e indenizações por conta de seus mortos e desaparecidos, entre eles quase meia centena de mulheres.

A Lei 9.140, que propiciou essa virada de página, foi sancionada no ano passado por um presidente da República que algumas vezes viu de perto, visitando presos políticos, o estado degradante a que os torturadores da ditadura reduziam os "terroristas" presos, reservando, às mulheres, requintes de crueldade sexual.

Dulce Maia, um misto de agitadora cultural e guerrilheira urbana da organização Vanguarda Popular Revolucionária (VPR) foi uma das presas a receber a visita do sociólogo Fernando Henrique Cardoso nos idos de 1969.

Como nem tudo são dores - "guerrilha também é cultura", poderia dizer Carlito Maia - nossas guerrilheiras, as vivas e as mortas, acabaram na literatura, na telinha, no cinema e no teatro. Primeiro foram os livros testemunhais, como "O que é isso companheiro", do guerrilheiro e agora deputado federal Fernando Gabeira, ex-marido da "loura dos assaltos", a terrorista mais procurada durante uma determinada época.

O livro de Gabeira, agora relançado (Companhia das Letras), está fresquinho nos cinemas, na superprodução (U$ 3 milhões) do premiado diretor Bruno Barreto. Uma das estrelas é a atriz Cláudia Abreu, que protagonizou, na série pionera "Anos Rebeldes" (TV Globo), a guerrilheira mais charmosa da televisão.

Estão aí, também, nas melhores livrarias da praça, os recém-lançados "Não és tu, Brasil", de Marcelo Rubens Paiva (sobre a guerrilha do capitão Carlos Lamarca no Vale da Ribeira); "Viagem à luta armada", do guerrilheiro radical Carlos Eugênio Sarmento; e "Mulheres, militância e memória", da antropóloga Elizabeth Fernandes Xavier Ferreira. Neste último, o primeiro específico sobre a militância feminina, 13 ex-presas políticas detalham o que era ser mulher naquela barra pesada de então. Ainda há, de recentes, os filmes "Lamarca", de Sérgio Rezende e "Que bom te ver viva", da cineasta e também guerrilheira Lúcia Murat.

As mulheres que foram literalmente à luta estão presentes em todos eles. Amando, sofrendo, guerreando, participando, às vezes na linha de frente, às vezes nos bastidores. Foram apenas alguns anos - as ações estão diluídas entre 1968 e 1974 - mas em nenhuma outra época o Brasil viu tanta mulher pegar em armas. Pegar e usar, é claro.

Atentados, assaltos a bancos, sequestros de diplomatas e de aviões, assassinatos de policiais e militares, justiçamentos, guerrilha urbana e rural - há quase sempre uma ou mais mulheres nas ações mais e menos espetaculares com que as organizações armadas tentaram reagir à violência da ditadura militar. É difícil fazer as contas redondas - as estatísticas ainda são precárias - nas nossas guerrilheiras, somadas, chegam a quase 100. O levantamento mais recente - "Dossiê dos mortos e desaparecidos políticos a partir de 1964", editado pelo Grupo Tortura Nunca Mais - dá conta de que 24 foram mortas e 20 estão desaparecidas. Marie Claire levantou que pelo menos 40 estão aí para contar a história.

Uma delas - talvez a mais famosa - entrou para a memória coletiva por conta de uma façanha: o sequestro do embaixador dos Estados Unidos da América, Charles Burcke Elbrick, a 4 de setembro de 1969. Era, então, a Dadá, da Dissidência Comunista da Guanabara, mais conhecida como MR-8, e atendia, para a mídia e para a repressão política, pelo apelido de "Loura dos assaltos", justo a que viria a ser mulher de Fernando Gabeira. Pode ser vista no filme de Bruno Barreto, ora representada por Fernanda Torres, ora por Cláudia Abreu.

Hoje, aos 48, é a charmosa, chique e irreverente socióloga e economista Vera Sílvia Magalhães, lotada na sala 518 da Secretaria de Planejamento e Controle do Estado do Rio, onde exerce a função de planejadora urbana. Vera conversou com Marie Claire num apartamento amplo da Praia do Flamengo, onde mais uma vez estava se recuperando dos problemas de saúde que atribui ao tiro que levou quando foi capturada (a 6 de março de 1970) e às torturas que sofreu nos três meses em que amargou a condição de presa política. Ela ainda vibra por dentro quando lembra uma resposta que deu aos torturadores em plena aflição, pendurada no pau-de-arara e tomando choque elétrico: "Minha profissão é ser guerrilheira".

— Minha primeira ação foi uma expropriação de armas no gasômetro do Leblon, com o Cláudio Torres e o Cid Queiroz Benjamim. Eu fui de peruca loura e pedi pro segurança acender meu cigarro. O cara era tão ingênuo que depositou a metralhadora no chão. O Cláudio veio, pegou a arma, mas aí o outro segurança que estava na guarita começou a atirar em cima da gente. Foi o maior tiroteio. O Cid veio dar cobertura e o cara acabou ferido. Levamos duas metralhadoras Ina e dois revólveres 38.

Bem nascida, na zona sul do Rio de Janeiro, Vera Sílvia abraçou a causa, como então se dizia, ali pelos 16, na militância secundarista do Colégio Andrews. O tio era do Partido Comunista do Brasil. O pai simpatizava. Leu O Manifesto Comunista aos 11. Entrou na Universidade (Economia da Federal Fluminense) em 67 e logo passou a integrar a Dissidência da Guanabara (DG) - mais um racha saído do pacifista Partido Comunista Brasileiro, o chamado Partidão. Destacou-se logo, passando a integrar o Comitê Central, órgão maior da direção partidária.

— Eu era a única mulher no meio de sete homens. Fiz um puta esforço para chegar lá. A minha militância política foi uma batalha, porque, além de tudo, havia o preconceito machista.

No começo de 1969 - quando a DG opta pela violência política - Vera Sílvia, a bela que torturava corações, passou a integrar a Frente de Trabalho Armado (FTA).

— A gente treinava tiro na Quinta da Boa Vista e em Búzios. Não tinha nem bala sufiiciente, mas, diante da crescente da violência da ditadura, a determinação era grande.

Depois da primeira ação, a do gasômetro do Leblon, em 68, a "Loura dos assaltos" e seu inseparável 38 expropriou legal: supermercado Disco, carro forte, banco, carros.

— Carro era um por semana. Uma vez, em Ipanema, demos azar. O cara era militar e resolveu resistir. Atirou na gente. Eu e o Torres tivemos que reagir. Nós só atirávamos em última instância, quando éramos atacados. Que eu saiba nunca matamos ninguém.

A 19 de agosto de 69 - quinze dias antes do grande sequestro - Vera Sílvia e sua troupe da FTA participaram de uma ação brancaleônica: o assalto ao apartamento de cobertura do deputado federal Edgar Guimarães de Almeida.

— O cofre do deputado deu trabalho. Nós fizemos um bom trabalho de levantamento. Eu era uma moça bonitinha e entramos lá como repórteres da revista Realidade. Levamos todos aqueles troços do equipamento fotográfico, e de repente aparecemos com metralhadoras, saindo para a ação. Era um apartamento imenso, com muita gente dentro. A conversa inicial foi chamar todo mundo pra sala, pra tirar fotografia.

Recolhemos, dinheiro, jóias, e quadros, alguns do Portinari. Mas na hora H o cara teve um problema grave no coração. O comandante da ação, João Lopes Salgado, que estava no terceiro ano de Medicina, interrompeu tudo para atender o deputado. Deu remédio, fez ele se acalmar. Demorou coisa de quatro horas - mas o resultado foi bom. Foi uma ação bombástica de propaganda armada.

O sequestro do embaixador americano visava marcar posição, assustar a ditadura e, principalmente, libertar os presos políticos, entre eles os líderes estudantis Vladimir Palmeira e José Dirceu. Vera foi responsabilizada pelo levantamento de tudo o que cercava o embaixador Elbrick.

— Quinze dias antes eu fui na Embaixada, vestida de empregada doméstica, com mini-saia e tudo. Eu, Deus e uma arma na bolsa, o que aliás foi loucura. Não tinha sentido levar a arma. Cheguei lá, me aproximei da guarita de segurança e disse que queria visitar os jardins. O chefe da segurança ficou a fim de me conquistar e saiu me mostrando tudo. Eu utilizei esse aspecto psicológico e fui fazendo perguntas entremeadas, conseguindo informações sobre horários, carros, segurança. Fazia isso com sangue frio, com desenvoltura total. Tirava tão de letra que ele chegou a me dizer: "Eu vou tirar essa bandeira da embaixada, porque tem muito terrorista agindo por aí". Ele não sacou nada.

Dadá era mulher de Corisco - o guerrilheiro José Roberto Spigner. Se amavam muito, moravam juntos no bairro da Penha, e pertenciam à mesma organização. Ocorre que Corisco atuava na Frente das Camadas Médias - o que, a rigor, o impedia, por uma questão de segurança, de ter conhecimento sobre o sequestro do embaixador.

Na véspera, exatamente na véspera, os dois se encontraram em frente ao Hotel Copacabana Palace:

— Passeamos, namoramos, conversamos. Eu não podia contar nada sobre o que iria ocorrer no dia seguinte. Só disse que ia me envolver numa barra pesada e sumir por uns 20 dias. Pedi que ele ouvisse o rádio e que tomasse precauções. Ele insistiu que marcássemos um ponto (um encontro) inorgânico (sem conhecimento da organização) dali a dois dias. Eu disse que era contra as normas de segurança e não concordei. Fiquei de procurá-lo logo que pudesse. Intimamente eu não avaliava bem as consequências de uma ação desse porte a nível pessoal.

— Com a fina ironia que cultivava, Zé Roberto se despediu de mim com o refrão de uma música da Gal: "É preciso estar atento e forte/Não temos tempo de temer a morte". Cantarolou, também, uma música do Noel Rosa: "Ai que mulher indigesta/Merece um tijolo na testa". Depois disse: "Essa estanquização não tem nada a ver com o amor. Se a gente se ama a gente segura a barra juntos".

— Ele me chamava de Nenê. E disse: "Vai, Nenê, pra tua ação clandestina. Vocês nunca vão saber o que é o amor. Essa estanquiização é ridícula. Me põe aí no teu bando".

Veio o sequestro:

— Eu fiquei no esquema de segurança, na esquina da padaria. Era tão desajeitada que fiz uma bomba enorme. Era pra fazer do tamanho de uma lata de leite condensado e eu fiz uma de leite ninho tamanho família. Quer dizer: se eu acionasse aquilo explodia o Botafogo inteiro. Felizmente não houve confronto, nem polícia, o e sequestro foi um sucesso.

— O sequestro foi um marco, um ato espetacular. Uma idéia em si mesma brilhante, que detonou um processo de repressão que a gente não conseguiu conter. Foi feito aos trancos e barrancos - um exército de Brancaleone fazendo uma ação de proporções políticas enormes. Eu mantenho o orgulho por ter participado. Mas o fato é que nós perdemos. Avaliamos mal a conjuntura, não tínhamos o povo do nosso lado e não houve uma dimensão maior na perspectiva da tomada de poder.

Dadá entrou imediatamente na clandestinidade - mas um dia, com saudades de Corisco, mandou a segurança às favas. Voltou ao Copacabana Palace, produziu-se toda no cabeleleiro, atravessou disfarçada de madame na barca para Niterói, onde ele estava.

Voltaram a viver juntos - ela perseguidíssima, mas ainda participando de ações armadas. Corisco realmente não teve tempo de temer a morte: foi assassinado a 17 de fevereiro de 1970 durante um tiroteio com agentes do DOI-CODI (RJ). Dadá foi presa em ação - dando e levando tiro num cerco da polícia no Jacarezinho. Um deles lhe acertou a cabeça.

— Eu não me rendi. Saí correndo e atirando. O tiro entrou e saiu da minha cabeça.

Mas num tiroteio você não sente dor. É uma emoção tão impressionante que você não sente nada, a não ser o grande desejo de sobreviver. Eles eram dezenas. Eu saí com o 38 na mão e eles saíram me dando porrada, coronhada, tudo. De repente chegou um policial, me levantou no colo e disse: "A minha filha tem a sua idade. Por que você está fazendo isso?"

— O tempo urgia. Nós vivíamos atrás do tempo. Tinha que dar tempo pra lutar e pra amar, senão daqui a pouco o amor acabava. A gente fazia tudo. A gente acreditava que a revolução era longa, mas na prática fazia tudo muito rápido.

Vera Sílvia sobreviveu, a duras penas, ao tiro e à tortura. Foi banida do Brasil a 15 de junho de 1970 - como um dos quarenta presos políticos trocados pelo embaixador alemão, von Holleben, sequestrado a 4 de junho. Diversos países (incluindo Cuba, onde treinou guerrilha), muitas doenças (dois cânceres) e três casamentos depois - Fernando Gabeira, Carlos Eduardo Maranhão (com quem tem um filho de 18 anos) e Emir Sader - Vera está só, mas cercada de amigos.

— Eu faço hoje a micropolítica do afeto. Esse é o maior resgate da minha militância.

Ilustração: AIPC - Atrocious International Piracy of Cartoons

PressAA

Copiado do blog Assaztroz



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