terça-feira, 1 de junho de 2010

O fotografo e a moça

Marco Albertim *

Sob o oitizeiro, a moça levantou-se sobressaltada; não se pôs de pé, como das vezes em que ouvira o grito do polícia; sentou-se com uma das mãos segurando a barra da curta saia, na parte da frente, inda que sabendo de seus poucos dotes de mulher.

O fotógrafo mirara-a no corpo inteiro, flagrando-a entregue aos talos da grama, ao viço da flor do flamboiã, vermelha, fazendo pouco da palidez do rosto da moça. Ele a mirou com insistência, nos olhos afundados pelo susto, abrigada na vegetação familiar a seus instintos. Comparou-a, o fotógrafo, ao raro sabiá, atento à hostilidade dos pardais, catando um galho ermo para, dali, assobiar sem ser ouvido.

Os ônibus, cheios, fazendo a curva ao lado da praça, da Câmara de Vereadores, do outro lado. Ninguém das janelas punha os olhos na moça, posto que a moça, de tanto juntar-se ao tronco do oitizeiro, acinzentara-se feito um lagarto. Ela fez do lençol um pacote retangular, pôs sob o braço, atravessou o cruzamento rumo à Câmara. O fotógrafo seguiu-a, queria flagrar seus sustos, fazer a crônica de seus gestos, ajuizar a perda do Recife por tê-la como filha exclusa; as perdas dela, estas ela expunha com arremedos de alegria.

Olhou para a câmara, assustou-se mais com o guarda de uniforme azul, arma na cintura, sob o pórtico de linhas estranhas a seus olhos. Também ele, zeloso no ofício, nunca soubera que José Mariano, primeiro presidente da Câmara do Recife, fora abolicionista junto com Joaquim Nabuco. Não tinha nas pernas, grilhetas, a moça; tinha-as soltas para não ter aonde ir. Tem quinze anos, pensou o fotógrafo. O Recife tem 472 anos, maturou-se sem maturar os filhos das várzeas.

Olhou para trás, ela; não viu o fotógrafo oculto no tronco do oitizeiro em frente à Faculdade de Direito. Ele viu o busto de Castro Alves, adivinhando-o na arcada do prédio. Podia desistir dali, moveu-o para a frente um verso ou outro do Navio Negreiro. Na rua da União, a moça parou em frente à casa de Manuel Bandeira. Olhou para dentro, sem se dar conta do verso sobre a moça nua banhando-se no Capibaribe, vista pelo poeta. Não tinha nudez para mostrar, a moça, cevando-se na história de cada uma das ruas do Recife.

Olhou mais para trás, não viu o fotógrafo mirando-a com a máquina, nos fundos do centro musical, àquela hora - dez da manhã - com moços soprando sax e trombones. Bem que podia estar ali, inteirando-se do ofício de dançar, de tocar. Estugou o passo para a Riachuelo. O cheiro do Capibaribe a atraiu, correu dando mostras de ser a dona das margens do rio; podia afundar na lama, limpar-se nas águas, fundir-se com o “fio da vida” entrevisto por João Cabral. Sempre foi assim o Recife, aliviou-se o fotógrafo, com a riqueza desdenhando o rio; a pobreza sujando-o, sorvendo-se, numa vindita quase insana.

Quando atingiu a ponte da Boa Vista, entrou no primeiro corredor do lado; com habilidade de acrobata, subiu no batente, galgou o primeiro degrau de ferros cruzados. Por cima de transeuntes, não viu o fotógrafo. Ele estava do outro lado, no corredor paralelo, clicando o equilíbrio da moça nos ferros. Parece a namorada do Recife, pensou. Ela correu travessa, misturando medo e vadiagem.

No parapeito do rio, olhou para o mangue. O Recife, às suas costas, zurzia, zurzia-se no aprendizado de 472 anos; agora sem açoite nas costas dos negros, mas com os pés nus, inchados, da namorada sem tenções de namoro. Viu no outro lado um leito vazio de água, de lama, com lama endurecida; na sombra, sob o oitizeiro vasto. Urdiu um barraco ali, sem pensar no incômodo de doenças; sem pensar que “...é do sonho dos homens que uma cidade se inventa.”

O fotógrafo clicou-a sentado, apoiado à estátua de Joaquim Nabuco. Saiu correndo, ela, quase se esquecendo do homem que insistira em capturar-lhe o rosto, talvez para por seu nome num cadastro de reformatório. Na Casa da Cultura, parou para ver a preta velha assando tapiocas, uma outra com acarajés na frigideira. A fome fixou-a num só lugar, com as pernas cruzadas, o ombro firmado na ruína do muro. Deu-se conta só do cheiro vindo do braseiro; deu mais dois, três passos. Não resistiu, ficou em frente, pidona, da velha cozinheira.

Do outro lado da rua, o fotógrafo capturou-a na tenção de meter a mão no prato e sair correndo com a tapioca numa das mãos.

- Que é que tu quer, menina!? – desconfiou a velha.

Ficou calada, a moça, com uma mão na cintura e outra na boca, escondendo a fome, mostrando-a.

- Pega, leva uma tapioca pra comer... – A velha impacientou-se, com cismas, lembrando-se de sua própria pobreza.

A moça correu, crendo-se namorada do Recife; correu sem saber para onde, posto que tinha arrumado um par.

O fotógrafo clicou-a correndo, seu perfil feliz, de saltimbanco. Perdeu-a de vista, tendo-a nos sentidos e na máquina.

* Menção honrosa dos Prêmios Literários da Cidade do Recife, com o livro Um presente para o papa e outros contos. Integra as antologias de contos Recife conta o Natal e Panorâmica do conto em PE.

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