sexta-feira, 11 de junho de 2010

O dia em que aviões de combate lançaram poemas e não bombas


A história, emocionante, foi narrada no último Sarau Plural, cujo tema foi "Caminhando e cantando: no tempo da utopia".

O pintor pernambucano Cícero Dias (1907-2003) foi morar em Paris em 1937, onde arranjou um emprego no setor comercial da embaixada do Brasil na França, tornando-se amigo de um grupo de intelectuais, como o pintor Pablo Picasso, o poeta Paul Éluard, o escritor André Breton, entre muitos outros.

Em 1942, após o rompimento de relações diplomáticas entre Brasil e Alemanha, é preso com outros brasileiros, inclusive o escritor e diplomata Guimarães Rosa, e enviado para a cidade germânica de Baden Baden. Eles foram libertados depois de negociações entre os dois governos envolvendo a troca de prisioneiros (espiões alemães presos no Brasil pelos brasileiros detidos na Alemanha).

Ao ser libertado, Cícero vai morar em Lisboa, onde casa com a francesa Raymonde. Tempos depois, retorna à França clandestinamente e passa a viver em Vichy, quando recebe uma incumbência de Paul Éluard , pseudônimo de Eugène Emile Paul Grindel (1895-1952): conseguir fazer chegar às mãos do comando francês na Inglaterra o poema "Um só pensamento".
Muitos anos depois, em entrevista, Cícero contou que seguiu de trem para Lisboa, levando os versos, de onde tinha riscado a última palavra (que era a chave do poema), temendo ser interceptado pelos nazistas, preso e fuzilado, reescrevendo-a ao chegar ileso a Portugal. Na capital portuguesa, entregou o texto ao secretário da embaixada inglesa, mister Marshall, que o encaminhou a Londres. Traduzido pelo poeta inglês Rolland Penthouse, o poema impresso em milhares de panfletos foi jogado por aviões de combate sobre as tropas aliadas no 'front'. Por esse ato, Cícero virou oficialmente herói francês em 1998, ao ser condecorado com a Ordem Nacional do Mérito da França, maior honraria concedida pelo Estado francês.

Para mim, aviões de guerra distribuindo poema em vez de bombas é uma imagem marcante, a mostrar que, apesar de tudo, há sempre uns dez réis de esperança, como diria o português António Gedeão (em outro poema já referido antes nesse blogue).

O célebre poema de Éluard que, segundo consta, ajudou a manter o moral de soldados e civis no território francês invadido pelos nazistas, é o que segue:


UM SÓ PENSAMENTO

Paulo Éluard



Nos meus cadernos de escola
Nesta carteira, nas árvores
Nas areias e na neve
Escrevo teu nome

Em toda página lida
Em toda página branca
Pedra sangue papel cinza
Escrevo teu nome

Nas imagens cor de ouro
Da armadura dos guerreiros
E na coroa dos reis
Escrevo teu nome

Nas florestas e no deserto
Nos ninhos e nas giestas
No eco da minha infância
Escrevo teu nome

Nas maravilhas das noites
No pão branco da jornada
Nas estações enlaçadas
Escrevo teu nome

Nos meus farrapos de azul
No tanque, no sol mofado
No lago, na lua viva
Escrevo teu nome

Nas campinas, no horizonte
Nas asas dos passarinhos
E no moinho das sombras
Escrevo teu nome

Em cada sopro de aurora
Na água do mar, nos barcos
Na serrania demente
Escrevo teu nome

Até na espuma das nuvens
No suor das tempestades
Na chuva grossa e insípida
Escrevo teu nome

Nas formas resplandecentes
Nos sinos das sete cores
E na verdade concreta
Escrevo teu nome

Nas veredas acordadas
E nos caminhos abertos
Nas praças que regurgitam
Escrevo teu nome

Na lâmpada que se acende
Na lâmpada que se apaga
Em minhas casas reunidas
Escrevo teu nome

No fruto partido em dois
de meu espelho e meu quarto
Na cama, concha vazia
Escrevo teu nome

Em meu cão guloso e meigo
Em suas orelhas erguidas
Em suas patas inábeis
Escrevo teu nome

No trampolim desta porta
Nos objetos comuns
Na vaga do fogo bento
Escrevo teu nome

Em toda carne tocada
Na fronte de meus amigos
Em cada mão que se estende
Escrevo teu nome

Na vidraça das surpresas
E nos lábios desejados
Bem acima do silêncio
Escrevo teu nome

Em meus refúgios destruídos
Em meus faróis arruinados
Nas paredes do meu tédio
Escrevo teu nome

Na ausência sem desejos
Na solidão desnudada
E nos cortejos da morte
Escrevo teu nome

Na saúde recobrada
No perigo dissipado
Na esperança sem memórias
Escrevo teu nome

E pelo poder de uma palavra
Recomeço minha vida.
Nasci pra te conhecer
E te chamar

LIBERDADE.

Fonte: Bolg do Homero Fonseca

Publicado no blog Cidadã do Mundo


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