artigo de Rogério Almeida
[EcoDebate] Batista Afonso é um militante dos direitos humanos numa explosiva região da Amazônia, o sudeste do Pará, onde é o coordenador da Comissão Pastoral da Terra (CPT) no município de Marabá, cidade pólo da região. Afonso é advogado e integra o colegiado nacional da CPT, instituição ligada à Igreja Católica alinhada na defesa da reforma agrária. A disputa pela terra na região sudeste do Pará imortalizou a mesma como a mais sangrenta do país. Capítulo escrito com grande violência na década de 1980, com o registro estimado em quase 800 casos de mortes contra camponeses, com quase cem por cento de impunidade.
Na última década, contada a partir do Massacre de Eldorado do Carajás, fez com que a região experimentasse profundas transformações. Modificações indicadas a partir do reconhecimento de inúmeras áreas ocupadas como projetos de acampamentos, avanço da exploração mineral tendo como sujeito a Vale, implantação de grandes frigoríficos, como o do grupo Bertin, a “compra” massiva de várias fazendas pela Agropecuária Santa Bárbara, integrada pelo banqueiro Daniel Dantas, suspeito de um mundo de crimes no sistema financeiro. No entanto, a efetivação de projetos de assentamentos não fez com que a atividade pecuária sofresse algum refluxo.
Ao mesmo tempo o pólo de gusa se amplia em Marabá, imensas obras de infra-estrutura do governo federal ativam a migração e inchaço das cidades pólos e pequenas cidades onde os projetos de mineração germinam, como no caso de Ourilândia do Norte, Tucumã, Canaã de Carajás, Floresta do Araguaia e São Félix do Xingu. Se na década de 1980 o fazendeiro aplacava a diferença sobre o domínio da terra contra o camponês a partir do 38, vivencia-se hoje um processo de criminalização a partir de condenações de dirigentes e advogados por conta das ações de ocupações. A exemplo do que ocorreu no caso do Batista Afonso e em seguida mais três dirigentes do MST e dos garimpeiros.
O capital se alastra sobre as terras amazônicas, advoga sua perspectiva de desenvolvimento da região em editoriais de grandes jornais, notas de primeira página em edições dominicais, em reportagens que indicam que fora de tal diapasão não há saída, como matéria publicada na revista Exame sobre os louros do projeto que explora bauxita no pequeno município de Juruti da multinacional do setor de alumínio, ALCOA. Os dias de hoje registram um outro momento de tensão no sul e sudeste do Pará e em outras áreas da Amazônia, com um radical avanço do interesse do capital sobre a terra e os recursos nela existentes. A cortina de tal teatro de destruição já foi erguida em anos distantes. A história de mortes, destruição da natureza, apropriação irregular de terra, corrupção pública, hegemonia do poder da grana deixam isso evidente. É sobre o complexo contexto vivenciado hoje no sudeste do Pará que Batista Afonso, reflete nesta entrevista concedida a Rogério Almeida, colaborador da rede Fórum Carajás.
Fórum Carajás (FC) – Qual o contexto atual no sul e sudeste do Pará?
Batista Afonso (BA)- A reflexão que os movimentos da região fazem hoje é que a região está vivendo uma nova investida do capital, que na verdade não é nova, existe desde 1960, quando se descobre a reserva de minério de Carajás. Mas, a tensão antes residia na ação do latifúndio contra os camponeses e assessores. Foi isso que tornou a região conhecida mundialmente. A questão do minério estava concentrada no município de Parauapebas. Recentemente o capital da atividade minerária avançou sobre outros municípios, triplicando ou quadruplicando os investimentos. Isso impulsiona outras atividades, como a produção de gusa. A produção de gusa alavanca a exploração de irregular madeira, a produção de carvão baseada na mão obra escrava e a monocultura de eucalipto. A mineração impacta hoje não apenas Parauapebas, mas também Canaã dos Carajás, com a exploração de níquel através do projeto Sossego e o Salobo. Há ainda a ampliação do pólo de gusa de Marabá e o anúncio da aciaria da Vale para a produção de liga de ferro. Os municípios próximos a Marabá sofrerão grandes impactos com essa nova frente. Tem os casos ainda de Ourilândia do Norte, Tucumã, Água Azul do Norte, São Feliz do Xingu através da mineração da Onça Puma do grupo Vale e vários outros projetos, como em Floresta do Araguaia. Há outras mineradoras internacionais em Xinguara e Rio Maria. A investida do capital a partir da mineração acarreta uma série de situações de conflitos contra os posseiros, os assentados, contra os trabalhadores que residem nessa área de interesse das mineradoras. Há inúmeros projetos de assentamentos em áreas de interesse do setor da mineração. Tais projetos de mineração tendem a atrair uma forte migração para a região. Em municípios como Marabá, Parauapebas, Ourilândia e vários outros há uma projeção de crescimento populacional, salve em engano, calculada numa margem acima de 8% ao ano. Não há emprego para toda essa população que migra, que acaba por engrossar as populações marginais nas periferias. Marabá registra hoje inúmeras ocupações urbanas. A situação é marcada pela precariedade, sem apoio das prefeituras locais. A situação é de pobreza. As questões ambientais dos grandes projetos de minerais são graves e não são fiscalizadas, como a poluição dos rios e do ar. A atividade da mineração anima a tensão tanto no campo como na cidade.
FC- Como é o caso da Mineração Onça Puma (MOP) no município de Ourilândia do Norte?
BA – O caso é uma expressão do poder que possui a Vale e outras empresas de mineração que se implantam aqui na região. As empresas são indiferentes às comunidades que residem aqui. O poder econômico se impõe sobre qualquer outro direito da população local. A MOP decide implantar um gigantesco projeto de mineração onde vivem oitocentas famílias assentadas somente no raio de abrangência do projeto. A lei é clara, a empresa tem a licença de pesquisa e o alvará de exploração do minério. Mas, para a mina funcionar necessita resolver o problema das pessoas que vivem na área, posseiros, proprietários, etc. A empresa não pode passar por cima das pessoas, abrir o buraco que quiser e expulsar as pessoas. Pelo código de mineração o projeto só pode ser implantado depois a resolução do problema dos que moram na área. A MOP saiu comprando lotes da reforma agrária ignorando que não podia fazer negócio com os assentados e destruir o patrimônio público ali encontrado.
FC – Em que pé se encontra a questão hoje?
BA- Sobre os abusos da empresa a gente ingressou no Ministério Público Federal (MPF). O MPF decidiu protocolar ação civil pública na justiça federal de Marabá para requerer que a MOP cessasse os abusos e pagasse aquilo fosse de direito dos trabalhadores que tiveram de sair da área. Só que, antes do MPF a Procuradoria do Incra de Brasília interpôs a ação. Não avaliamos de forma positiva a ação da Procuradoria. O correto seria a Procuradoria do Incra ter procurado o MPF para combinar uma ação única. Assim teremos uma ação com mais peso. O MPF tem dois caminhos, ingressar na ação com novas denúncias e documentos ou não ingressar e ficar como fiscal da lei. A nossa expectativa é que o MPF ingresse como membro da ação. Isso trará mais legitimidade e melhores condições na defesa dos interesses dos trabalhadores. A gente necessita entrar com outras ações.
FC – O movimento já possui uma avaliação sobre os reais interesses do grupo do senhor Daniel Dantas na região?
BA- A gente ainda não tem uma clareza. Mas, há indícios fortes de lavagem de dinheiro, como já noticiou a imprensa. Mas, isso necessita ser investigado pela justiça. Outra questão são os interesses do agronegócio a partir das monoculturas, como a soja e a cana, o dito agronegócio mais moderno. A gente acredita que esse setor deseje controlar áreas já devastadas pela pecuária. A soja e cana hoje gozam de bastante incentivo do governo por conta dos bio-combustíves. Há ainda a valorização das commodities no mercado internacional. O sul e o sudeste possuem grande interesse dessa frente. Aqui não há mais floresta. Tudo foi transformado em capim. Os nossos vizinhos Maranhão e Tocantins estão repletos de soja e eucalipto. A monocultura de eucalipto já ocupa boa parte das terras do oeste do Maranhão, nos municípios de São Pedro da Água Branca, Açailândia e Imperatriz. O cultivo já ultrapassou a fronteira. Hoje as regiões sul e sudeste do Pará já possuem uma imensa área plantada. Assim como o gado cruzou a fronteira tempos atrás, as monoculturas estão fazendo isso hoje.
FC – O movimento já conhece a quantidade de áreas controladas pelo grupo Santa Bárbara?
BA – O que a gente conhece é o que a imprensa divulgou, em torno de 500 mil hectares de terras. Considerando o curto espaço de tempo para a aquisição das áreas, a gente sugere que há algo de errado. Há muito dinheiro envolvido. Fazendo um paralelo com o caso da fazenda Cabaceiras, a família Mutran pediu 30 a 40 milhões para a desapropriação. As áreas comercializadas pelos Mutran não são inferiores a esses valores. Tem ainda o gado. Devem ter comprado porteira fechada. Isso tudo consolida a suspeita de lavagem de dinheiro.
FC – E sobre a questão da legalidade da comercialização da terra, não era apenas uma concessão do Estado para o extrativismo da castanha?
BA- Isso o governo federal e o estado do Pará devem investigar melhor. Não somente as áreas do grupo Santa Bárbara, mas também de outros casos, como do Grupo Rio Vermelho e Mutran, A nossa questão fundiária é bem delicada. As terras eram do Estado e depois foram aforadas e de uma hora outra para outra se tornaram título definitivos. Isso precisa ser investigado. Há uma margem de terras públicas incorporadas por esses grupos junto à faixa considerada legal. Uma triagem do governo federal e do estado vai encontrar várias irregularidades.
FC – Isso é o caso da fazenda Peruano dos Mutran ocupada pelo MST?
BA – Quando a Peruano foi ocupada a imprensa alardeou que a fazenda era exemplo de produtividade. Isso foi um estardalhaço geral. A imprensa defendia a propriedade como modelo, a mais produtiva do sudeste do Pará. Ao final da investigação realizada, conclui-se que mais da metade era irregular e foi devastada completamente para a implantação da pecuária e a reserva florestal acabada. A parte que é considerada legal não há reserva de floresta legal. A fazenda tinha anda registro de trabalho escravo em 2003. O conceito da propriedade produtiva é meramente ideológico. É uma forma de encobrir um festival de irregularidades. As áreas submetidas aos critérios previstos na Constituição Federal não resistem à primeira investigação para se concluir que de produtivo não tem nada.
FC- Qual a avaliação do movimento com relação à fazenda Maria Bonita, será desapropriada?
BA – A expectativa é que o Instituto de Terras do Pará (ITERPA) e o INCRA realizem a triagem sobre a área. Não resta dúvida que a triagem vai encontrar ali terra pública incorporada ilegalmente. Aquela área ali está numa localização estratégica, situada na beira da PA 150. É uma área propícia para a reforma agrária.
FC – E quanto aos atos da Justiça com relação às ações dos movimentos que defendem a reforma agrária na região?
BA – No caso da justiça estadual ela sempre manteve (juizes e promotores), relação estreita com o latifúndio local. Sem falar nas policias militar e civil. Aqui sempre foi comum a expedição de liminares de reintegração de posse, como se diz aqui na região, nas coxas. Não havia cuidado de averiguar se há posse de boa fé ou não ou crimes de grilagens. A partir da pressão dos movimentos sociais as varas agrárias foram efetivadas e o Tribunal de Justiça criou uma comissão de combate à grilagem de terras. A maioria das varas agrárias tem o cuidado de averiguar a legitimidade dos títulos de terras. Mas, infelizmente não temos juizes atuando sempre na vara agrária, Há casos de licenças e férias. Aí ocorre o caso dos cargos serem ocupados por juizes comuns, que não conhecem a questão. Quando isso ocorre muitos juizes repetem a mesma linha de atuação que existia antes das varas agrárias.
FC- Foi o que ocorreu no caso da fazenda Maria Bonita?
BA- Isso. A orientação aqui na região é que antes da decisão da reintegração de posse deve haver uma audiência prévia e o debate entre o INCRA e o ITERPA. Só que a juíza expediu a liminar sem cumprir essa etapa. Ferindo diretrizes da vara agrária e acordos do Tribunal de Justiça e a Ouvidoria Agrária audiência a um mês atrás. Outro aspecto é a atuação da Justiça Federal. Aí entram os interesses dos grandes grupos de mineração, em particular a Vale. Quando se intensifica a luta dos movimentos sociais por conta da expansão da mineração, isso tem se transformado em processo e a decisão tem sido dura contra os movimentos sociais.
FC – E quanto à sua condenação de 2.5 de detenção?
BA- A minha condenação é um caso claro. A pena estabelecida de um a três anos o código diz que só pode se aproximar do máximo quando o acusado possuir péssimo antecedentes, responder a outros processos, possuir antecedentes que o desabonem na sociedade. Não é o meu caso. Não responde a outro processo, tenho ocupação definida, residência fixa, etc. Mesmo assim o juiz Carlos Haddad arbitrou ao máximo a pena. Além disso, em condenações estipuladas até quatro anos, cabe a pena alternativa, benefício que foi negado. Em tese a avaliação é que a intenção da justiça é impor um retrocesso ao movimento social da região.
FC – E a condenação dos militantes do MST e dos garimpos, segue a mesma linha?
BA- Ocorreu a condenação de três militantes do MST e dos garimpeiros pela obstrução da ferrovia de Carajás. Cada um foi condenado a pagar multa de cinco milhões de reais. No nosso ponto de vista é uma questão absurda ética e moralmente, sem falar no aspecto jurídico. As multas estabelecidas eram multas individuais para todos os ocupantes que desobedeceram à ordem da justiça. Os advogados da Vale calcularam que cerca de 700 pessoas ocuparam a ferrovia. Baseado nos valores calculados pelos advogados da Vale o juiz decidiu imputar a multa somente aos três dirigentes. A avaliação que a gente faz é que o sentido desse tipo de ato é criminalizar os movimentos sociais.
FC- Quantas são as ocupações que aguardam a desapropriação de terras para reforma agrária na região?
BA- Hoje no sul e sudeste a gente estima em cem ocupações com uma população aproximada em 12 mil famílias.
FC- Para finalizar, qual a perspectiva para região ante o cenário de expansão da produção mineral e do agronegócio?
BA- A avaliação é que as tensões irão continuar. Mas, com uma ligeira mudança. A expansão dessas frentes muda a relação com o camponês. O latifúndio antes resolvia os seus interesses com o 38. As frentes de mineração e do agronegócio não agem assim. Eles não sujam a mão desse jeito. Eles agem no sentido de criminalizar e difamar as ações do movimento social. Além da impunidade. O processo ocorre através da mobilização de vários advogados das grandes corporações que movem várias ações contra os dirigentes. A justiça que nós temos ainda mantém uma visão preconceituosa contra os movimentos sociais e considera que o poder econômico deve prevalecer. Hoje temos uma dezena de dirigentes sendo processados. Precisamos acompanhar isso com muito cuidado sob a pena desses dirigentes serem condenados e terem suas vidas inviabilizadas. Outro lado é a campanha realizada pelas grandes corporações nas empresas de comunicação através de reportagens parciais, enquanto os crimes por eles cometidos são omitidos.
FC – Qual a saída?
BA- Somar forças. A união entre indígenas, lavradores, quilombolas e trabalhadores em geral.
Rogério Almeida é colaborador da rede www.forumcarjas.org.br e articulista do IBASE e Ecodebate.
[EcoDebate, 14/08/2008]
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