Por Raphael Martinelli* (recebi por e-mail do Instituto João Goulart – pauta importante e muito pouco abordada pela mídia)
Quando a oposição ao atual governo era governo, e a RFFSA foi entregue nas mãos da iniciativa privada para que esta sucateasse de vez o que restava agonizante do setor ferroviário federal e se refestelasse com o lado lucrativo da empresa, ninguém ouviu a pergunta “o que é prioritário para o país?”. Ou seja: os mesmos que jamais viram nas ferrovias a alternativa mais adequada às necessidades de crescimento do país (a não ser quando para benefícios próprios) são os menos indicados para determinar o que seriam prioridades de Estado.
Mais ainda: contrariando a oportunista assertiva do jornalista Gabriel Brito de que “trem-bala não é o projeto mais conveniente à retomada de autêntica política ferroviária”, quero crer que para que algo seja efetivamente retomado, esse algo tem de ter existido. Não é o caso de tal política ferroviária no país (nem autêntica e nem falsa). O que sempre houve foi uma política de acomodação de empresários, interessados em transportar seus produtos (primitivamente café, látex e produtos agrícolas), aliados a empreendedores gananciosos e governantes inescrupulosos – rapinando, juntos, o que era possível com investimentos pontuais e oportunos – estes nunca viram nas ferrovias um meio de vida para quem nelas trabalha e para delas se gerar menos desigualdade para o povo brasileiro. Mesmo nos anos 30, com Getúlio Vargas no poder, jamais houve uma política ferroviária no Brasil, apesar de alguns historiadores divagarem sobre o tema com fumaças de otimismo ferroviarista à época.
O que mais excita a oposição é a oportunidade de falar em números astronômicos, e com eles exercer o inflamado ofício de “ser do contra responsavelmente”, assustando os desavisados com cifras e com o aparente bom senso de monges tibetanos abancados no Congresso Nacional. Mas, ao se referir aos estimados R$ 34,6 bilhões para a construção do trem-bala, os oposicionistas (e a imprensa escoteira, “sempre-alerta” às novas do Palácio do Planalto) esquecem-se, por exemplo, do quanto o governo FHC repassou do erário público aos bancos nacionais à beira da bancarrota, através do PROER (Programa de Estímulo à Reestruturação e ao Fortalecimento do Sistema Financeiro Nacional), para salvar a honra e o sono dos banqueiros, com a justificativa de que “o mesmo foi um instrumento necessário ao impedimento de um colapso do sistema financeiro nacional”. Segundo o jornal O Globo de 21/01/2010, no período de1995 a aproximadamente 2000, foram destinados em títulos de longo prazo “mais de R$ 30 bilhões a bancos brasileiros, aproximadamente 2,5% do PIB. A valores de 2005, a quantia equivaleria a aproximadamente R$ 44,23 bilhões”. Prioridades!
Estes mesmos senhores que sobem à tribuna do Parlamento em Brasília para açodadamente esfrangalhar um projeto do governo são herdeiros diretos de um esboço de país que há mais de meio século privilegia os automóveis e as carretas, em detrimento dos trens para transportar passageiros e cargas. O propósito é a sistemática renovação de frota dos meios de transporte rodoviário – que têm vida útil relativamente curta -, a frenética necessidade de troca de pneus e o contínuo consumo seja petróleo, seja de etanol. A Volkswagen, a Volvo, a Scania agradecem! A Pirelli, a Michelin e a Bridgestone agradecem! As distribuidoras de petróleo, de etanol e de gás natural agradecem! As empreiteiras de pavimentação e recapeamento asfáltico agradecem e o rodoviarismo exulta!
Segundo a Agência Vale, o navio Log-In Jacarandá, primeiro porta-contêiner construído no Brasil nos últimos 15 anos, lançado no último dia 6 de maio nas águas da Baía de Guanabara-RJ, tem a capacidade de 2.800 TEUS – (1 TEU corresponde a 1 contêiner de 20 pés) A cada viagem, o navio pode retirar das estradas cerca de 2800 caminhões.
E sempre bom ressaltar que a marinha mercante brasileira recompõe-se neste momento, após sua quase total liquidação durante o Regime pós-64. No período, mais de 100 mil marítimos perderam seus postos de trabalho. Independentemente das razões objetivas pelas quais os governos Lula/Dilma estejam festejando a reabertura da indústria naval brasileira, não podemos negar que esse é um passo positivo para a retomada deste setor para uma plataforma de desenvolvimento na área de transportes que não privilegie tão-somente os veículos automotores.
Em entrevista à revista Plenitude de abril de 2011, Rodrigo Vilaça, diretor-executivo da Associação Nacional dos Transportadores Ferroviários (ANFT), ao comparar o transporte ferroviário com o rodoviário, afirma que “o primeiro benefício se refere à emissão de poluentes na atmosfera: a ferrovia consome 20% menos combustível por tonelada de carga transportada e emite 66% menos monóxido de carbono. É também o modal mais econômico para o transporte de grandes volumes em médias e longas distâncias. Para se ter uma idéia, uma composição com 100 vagões substitui 357 caminhões com capacidade para 27 toneladas”.
Havemos que lembrar ainda que os governos civis-militares, não bastando sua sanha contra as ferrovias nacionais (e seus trabalhadores), temos que observar o quanto em prejuízo para a economia os anos de governo de exceção causaram por não auferirem ao setor ferroviário a importância que este tem para um projeto de nação.
Vê-se logo que as respostas ao decantado desenvolvimento nacional não trafegam sobre pneumáticos. Ferrovias e hidrovias, sim, são prioridade.
Em momento algum, quero desprezar os argumentos, alguns deles bastante interessantes, contra o projeto do trem-bala. Mas hei sempre de me surpreender quando qualquer investimento de monta for atacado por conta das eternas prioridades nas áreas da saúde, educação, segurança pública etc. Por quê? Primeiro porque o terreno mais usado pelos detratores de qualquer iniciativa deste tipo é a comparação com “o que seria melhor para o país”. Todavia, exatamente em razão de quê todos estes especialistas em dados comparativos nunca se lembram que estes problemas crônicos do país existem há séculos e a classe dominante jamais ensaiou resolvê-los? Por que tirar recursos de um empreendimento que pode e deve melhorar as condições viárias entre as duas maiores metrópoles do país para repassá-los a outros setores que, por si, precisam eventualmente é de decência em suas respectivas gestões, mais do que necessariamente recursos “transferidos” (os quais nem sempre teremos garantia de sua aplicabilidade plena apenas porque repercutem maior apelo social, portanto aparentemente de uso mais nobre aos olhos do povo)? E, segundo, porque estes setores, ditos prioritários, são calada e obedientemente pisoteados pelas elites, as quais recebem gordos subsídios para seus investimentos nas áreas da educação particular e da saúde paga. Então, por que esta dotação orçamentária para os colégios e hospitais dos privilegiados não é, efetivamente, repassada às escolas e hospitais públicos? Inclusive para assegurar preceitos constitucionais, que, hoje, seguramente não passam de preceitos.
O trem-bala não é um brinquedo para turistas estrangeiros, para a classe média brasileira – cada vez mais enfatuada, e para os ricos brasileiros – cada vez mais ricos; por mais que assim pareça. O TAV (trem de alta velocidade, assim oficialmente chama-se o veículo) é um investimento que pode – no médio e longo prazos – mostrar-se fundamental para o transporte terrestre das próximas décadas nesta região já tão densamente povoada (além de principais centros financeiros do país). A ideia não é apenas desafogar os aeroportos das cidades por ele atendidas, nem tampouco diminuir o fluxo de ônibus na via Dutra, mas, apontar para uma nova perspectiva de transporte no país. Quer queira quer não, empreendimentos desta envergadura tendem a ter algum impacto positivo na forma como o brasileiro enxerga a si mesmo. A política rodoviarista ganhou espaço no imaginário nacional, desde a década de 50, de tal forma que para boa parcela da população, andar de trem é sinônimo de ser excluído (o que infelizmente não chega a ser um exagero).
A distância total a ser percorrida pelo TAV deverá ser de 511 km, sendo que o trecho principal (Rio – São Paulo) teria 412 km. O tempo mínimo de viagem entre Rio e São Paulo seria de 1 hora e 33 minutos, caso venha a ser possível atingir velocidade máxima de 300 km por hora e sem paradas. A viagem do Rio a Campinas, com paradas, levaria 2 horas e 27 minutos. A freqüência dos trens – 1 a cada 15 minutos e sua capacidade – 855 passageiros. Pense-se neste veículo daqui a vinte anos e não se verão tantos obstáculos a sua atual viabilização, e não se pode acreditar que ele é apenas um investimento para um evento só (no caso, as Olimpíadas do Rio em 2016).) Com a Copa do Mundo em 2014 – que provavelmente ainda não contará com o atendimento do TAV – o fluxo de turismo no país deve aumentar exponencialmente já a partir de meados desta década. Há outras alternativas? Sempre haverá, mas uma obra realizada sempre será maior do que possiveis obras não realizadas por causa de hesitações e limitações – sejam elas políticas, técnicas ou financeiras.
Com relação a questões de impacto ambiental, a proposta é certamente mais limpa do a maioria das outras – inclusive no quesito poluição sonora e queima de combustíveis fósseis ou revováveis. O país cresce em população e em riquezas, portanto cada vez mais precisará levar e trazer sua gente e seus bens através de seu território; daí afirmo, como sempre afirmei, que o setor de transporte é estratégico para e economia e para soberania nacionais.
E, como ferroviário que sou, percebo que está na hora de colocar o Brasil nos trilhos (com perdão do trocadilho), porque o transporte ferroviário é reconhecidamente – em todo o mundo – mais barato, mais seguro, menos poluente e menos estressante.
Se para isso se tornar uma realidade é necessário fazer primeiro um trem-bala, que por ele comecemos. Na verdade, meu sonho de consumo patriótico é ver trens-bala trafegando de norte a sul do país, sem me importar com os oposicionistas de plantão, inclusive porque, creio, usufruirão muito mais dos modernos meios de transporte do que eu.
*Raphael Martinelli foi líder ferroviário e amigo pessoal de Jango. Perseguido e torturado pela ditadura, nunca deixou de lutar pela classe dos ferroviários e hoje é advogado e um tenaz militante dos direitos humanos.
Buscado no Quem tem medo da democracia ?
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