sexta-feira, 17 de junho de 2011

O Código Florestal e a violência no campo

Via Comitê Central Popular-JF

Em média, por ano, 2.709 famílias são expulsas de suas terras e 63 pessoas são assassinadas no campo brasileiro na luta por um pedaço de terra A violência é parte essencial da história dos pobres da terra: índios, negros, camponeses. Ela, por sua vez, é alimentada pela impunidade – fenômeno sócio-político conscientemente assimilado pela nossa instituição judiciária.
Dom Tomás Balduíno
No mês de maio deste ano, desabaram sobre a sociedade brasileira cenas de uma dupla violência: a aprovação do Código Florestal pela maioria da Câmara dos Deputados, tratando do desmatamento, e os assassinatos de líderes camponeses que se opunham ao desmatamento na Amazônia.
A ninguém escapa o protagonismo da bancada ruralista pressionando a votação deste Código por meio de mobilizações de pessoal contratado em Brasília e através de sessões apaixonadas na Câmara dos deputados. Por outro lado, as investigações dos assassinatos vão detectando poderosos ruralistas por trás destas e de outras mortes de camponeses.
O Código tem, de ponta a ponta, um objetivo maior inegável: ampliar o desmatamento em vista do aumento da produção. Um estudo técnico sobre as mudanças aprovadas em Brasília assinala que elas permitem o desmatamento imediato de 710 mil km², mais que o dobro do território do Estado de Goiás.
É impressionante a fúria com que este instrumento legal avança sobre as áreas de preservação dos mananciais destinadas a criar uma esponja à beira dos rios, defendendo-os das enxurradas e impedindo o seu assoreamento. A legislação anterior, embora tímida, exigia uma faixa de 30 metros de cada lado. A atual legislação a reduz para ridículos 10 metros.
A reserva legal, religiosamente mantida pelas pequenas e médias propriedades, é o que ainda hoje dá uma visível cobertura de vegetação nativa em nossos diversos biomas, em razão do grande número de médios e pequenos estabelecimentos. Isso também desaparece. Aliás, o Código não cuida da agricultura familiar que é responsável por cerca de 70% dos alimentos que chegam à mesa do brasileiro.
O Código se ajusta muito mais às áreas desmatadas a perder de vista e destinadas a gigantescas monoculturas. A grande expectativa com relação a esse Código é que se consolidasse a proposta já transformada em lei, de recuperação das áreas devastadas. Para nossa decepção, deixa-as como estão. Nós, do Centro Oeste, estávamos sonhando com a recuperação das áreas de preservação permanente do rio Araguaia, nosso Pantanal, sobretudo das suas nascentes, desmatadas em 44,5%. O sonho virou pesadelo. Com efeito, a nova Lei deixa tudo como está.
Até hoje, a grande queixa com relação aos desmatamentos no Cerrado e na Amazônia se prendia à falta de fiscalização. Entretanto, é justo reconhecer que muito esforço se fez buscando garantir a lei. Por exemplo, a varredura das áreas via satélite. Infelizmente, tornou-se uma prática nefasta na Amazônia os proprietários aguardarem dias nublados para procederem à queima das árvores. Ao se abrir o céu, o desmatamento já é fato consumado.
Em um dos Fóruns do Cerrado foram ouvidos depoimentos de camponeses denunciando outro tipo de crime: o desmatamento rápido à noite de importantes áreas de Cerrado com o uso de máquinas possantes, sem o risco de fiscalização.
Agora, com a flexibilização do novo Código, não há mais necessidade de fiscalização. Mais ainda, alguns proprietários, sabendo com antecedência das permissividades e anistias a serem introduzidas por este código nas áreas devastadas ilegalmente, partiram logo para a criação de fatos consumados derrubando a cobertura verde. O título do brilhante artigo de Washignton Novais em “O Popular”, de 02 de junho, na página 7, é o seguinte: “Código de florestas ou sem?”. A nova lei foi apelidada também de “Código da desertificação”.
País do latifúndio
O que estaria por trás de tanta devastação e de tanta lenha acumulada? É o seguinte: apesar da apregoada excelência dos avanços técnicos e econômicos do agronegócio brasileiro, os dados da FAO (Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação), referentes ao ano de 2009, em relação à produção por hectare, puseram a nu o fato, por exemplo, de que o Brasil está na sofrível 37ª posição na produção de arroz, atrás de países como El Salvador, Peru, Somália e Ruanda.
No milho, ocupamos a 64ª posição. No trigo, um vexame, na 72ª posição. Na soja, o badalado carro-chefe do agronegócio brasileiro um modesto 9º lugar, atrás do Egito, da Turquia e da Guatemala. Com relação ao boi, motivo de tanta soberba, de ostentação, de riqueza nas festas agro-pecuárias, ocupamos a humilde 48ª posição, atrás do Chile, do Uruguai e do Paraguai. (Confiram mais dados no substancioso artigo de Gerson Teixeira, Brasília, 19.05.11, “As Mudanças no Código Florestal: Alternativa para a ineficiência produtivista do agronegócio”).
A produção agropecuária sofre pelos altos gastos devido ao viciado uso do fertilizante e do agrotóxico. Os dados da FAO atestam que, a partir de 2007, nos transformamos no principal país importador de agrotóxico do mundo. Como essa tecnologia, em geral, tem se revelado ainda ineficaz na sonhada superprodução, pensou-se logo na liberação de áreas cada vez maiores de terras destinadas à produção. Se não vencemos em tecnologia, somos imbatíveis no latifúndio. E, para a tranqüilidade deste avanço predatório sobre o que resta de cobertura verde, buscou-se um instrumento garantido: justamente esse tal Código Florestal.
Apesar da complexidade deste tema, de pesadas conseqüências para o futuro da nossa terra, da nossa biodiversidade, dos recursos hídricos, da vida sustentável do solo, causou muita estranheza o fato destes legisladores não terem convidado em momento algum a nossa SBPC (Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência) a ABC, (Academia Brasileira de Ciências) o FBM (Fórum Brasileiro de Mudanças Climáticas) para os debates. Pois bem, aí está o desastroso resultado: saiu um código elaborado por ruralistas a serviço de seus colegas ruralistas. Restou-nos, como disse Paulo Afonso Lemos, “um código que não é claro, não é preciso, não é seguro”.
Mortes no campo
Em dezembro de 1988 caiu Chico Mendes, tal como uma pujante seringueira cortada pela raiz. No início de 2005, caiu a irmã Dorothy Stang, atirada pelas costas com a sua Bíblia na mão, sua pomba mensageira da Paz. Na manhã do dia 24 de maio deste ano, derrubaram o casal Maria do Espírito Santo da Silva e José Cláudio Ribeiro da Silva, cuja orelha foi cortada pelos pistoleiros como prova do serviço feito. Logo em seguida, foi assassinado Eremilton Pereira, na mesma área. Supõe-se que tenha sido queima de arquivo por estar presente na hora do primeiro crime. Foi morto também Adelino Ramos, em Rondônia, um sobrevivente de Corumbiara.
Há uma lógica perversa por trás destas e de outras mortes, desde a morte de Zumbi dos Palmares e de Antônio Conselheiro de Canudos, até a morte de José Cláudio da Silva, de Nova Ipixuna. Esta lógica consiste na eliminação seletiva de lideranças vistas como obstáculo aos grandes projetos do agronegócio. A senadora Kátia Abreu, arvorando-se em advogada dos criminosos, declarou no mesmo dia 24 que estas mortes se devem à invasão de terras. A senadora ou é desinformada ou foi leviana na sua fala. Ao contrário, eles são legítimos assentados do Incra. Mais ainda, são dois heróicos pioneiros da criação da reserva extrativista do Assentamento Praia Alta Piranheira, em 1997.
Fazendo coro conivente com a parlamentar ruralista, alguns deputados vaiaram o deputado José Sarney Filho quando este leu no plenário da Câmara a chocante notícia das mortes destes camponeses. A nota da Comissão da CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil) para o serviço da Caridade, da Justiça e da Paz, faz justiça aos assassinados, fornecendo-nos uma preciosidade, a saber, a declaração de José Cláudio, em um plenário de 400 pessoas reunidas para estudarem a qualidade de vida do planeta:
“Vivo da floresta, protejo ela de todo jeito, por isso vivo com a bala na cabeça a qualquer hora porque vou pra cima, eu denuncio. Quando vejo uma árvore em cima do caminhão indo pra serraria me dá uma dor. É como o cortejo fúnebre levando o ente mais querido que você tem, porque isso é vida pra mim que vivo na floresta e pra vocês também que vivem nos centros urbanos”.
Em média, por ano, 2.709 famílias são expulsas de suas terras pelo poder privado e 63 pessoas são assassinadas no campo brasileiro na luta por um pedaço de terra! 13.815 famílias são despejadas pelo Poder Judiciário e pelo Poder Executivo por meio de suas polícias! 422 pessoas são presas por lutar pela terra! 765 conflitos acontecem diretamente relacionados à luta pela terra! 92.290 famílias são envolvidas em conflitos por terra!
Carlos Walter Porto Gonçalves, professor do programa de pós-graduação da Universidade Federal Fluminense (UFF), ao analisar anualmente os Cadernos de Conflitos no Campo da CPT, introduziu a preocupação com a geografia dos conflitos. Comparando e ponderando o número de conflitos com o número de habitantes na zona rural de cada estado, trouxe à tona a importante constatação de que o aumento da violência acontece em função do desenvolvimento do agronegócio.
A violência não acontece, pois, só nas áreas do atraso, acontece, sobretudo, nos centros mais progressistas do país. “A violência”, diz ele, “é mais intensa nos estados onde a dinâmica sociogeográfica está fortemente marcada pela influência da expansão dos modernos latifúndios (autodenominados agronegócio). É no Centro oeste e no Norte que as últimas fronteiras agrícolas são conquistadas às custas do sofrimento e do sangue dos trabalhadores e dos que os apóiam” ( Caderno da CPT, 2005, pág. 185).
Diz ele: “O agronegócio necessita permanentemente incorporar novas terras e para isso lança mão de todos os mecanismos de que dispõe: os de mercado, os políticos e a violência”. A violência é parte essencial da história dos pobres da terra: índios, negros, camponeses. Ela, por sua vez, é alimentada pela impunidade, fenômeno sócio-político conscientemente assimilado pela nossa instituição judiciária.
A CPT tem a famosa tabela dos assassinatos e julgamentos de 1985 a 2011:
Assassinatos: 1580.
Casos julgados: 91
Executores condenados: 73
Executores absolvidos: 51
Mandantes absolvidos: 7
Mandantes condenados: 21
Mandantes hoje presos: 1
Conclusão: de 1580 assassinados, só um mandante condenado se encontra na prisão! Essa é a medida da impunidade!
Encerrando esta análise da dupla violência do agronegócio, consubstanciada na violência contra a terra e na violência contra a pessoa humana, não posso deixar de destacar a contrapartida deste modelo, a saber, a nova busca do “cuidado” como lição que nos é dada pelos povos tradicionais. As comunidades indígenas vivem isto como algo que está profundamente entranhado na alma, leva-as a se entrosarem harmoniosamente com a Mãe Terra, a se entrosarem pessoas com pessoas, com a memória dos antepassados e com o próprio Deus.
A Terra, como se diz, está doente e ameaçada. Hoje, felizmente, vai se desenvolvendo a cultura ecológica que consiste no cuidado não só com o ser humano, mas com o planeta inteiro. O planeta não cuidado, como ensina Leonardo Boff, pode entrar num processo de enfermidade, diminuir a biosfera com conseqüências de que milhares vão desaparecer, não excluída a própria espécie humana.
Uma outra luz nos vem destes povos e de suas culturas. É o “bem viver”. É uma vida voltada para os valores humanos e espirituais e não presa às coisas, às riquezas, ao consumismo.
Na minha juventude, tive a chance de conviver com um grupo indígena, bem primitivo, no coração da Amazônia. Fiquei encantado ao descobrir, entre outras jóias, que, na língua deles, não existe o verbo TER. Um povo que vive feliz e que, no entanto, não acumula. Gente que faz do necessário o suficiente. A melhor prova desta felicidade está na constatação da alegria espontânea das crianças. Elas são o melhor espelho do povo.
Dom Tomás Balduíno é assessor da Comissão Pastoral da Terra, teólogo e bispo dominicano.


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