A AMÉRICA NÃO FOI DESCOBERTA!
Reflexões sobre “A Conquista da América – A questão do Outro”
de Tzvetan Todorov (Ed. Martins Fontes, 4ªed, 2011)
de Tzvetan Todorov (Ed. Martins Fontes, 4ªed, 2011)
* * * * * *
por Eduardo Carli de Moraes
Uma das primeiras coisas que colocamos
sob suspeita quando começamos a estudar mais a fundo a “Descoberta da
América” é a própria denominação do evento histórico, esta curiosa
expressão que batiza a ocorrência colossal – “descoberta”. Será este o
termo mais adequado? Melhor que “invasão”, que “choque de civilizações”,
que “limpeza étnica”? Será que dizer “descobrir” não serve para
mascarar e esconder todos os horrores colossais da guerra de conquista
que empreenderam as potências européias contra o Novo Mundo? Não é este
um eufemismo criado pelo invasor, destinado a ser engolido sem reclamo
pelos cordeirinhos submissos dos colonizados?
Será que dizer que nos
“descobriram” não intenta, sub-repticiamente, fazer com que nos
esqueçamos de toda a pilhagem, todo o roubo de recursos naturais, que
ocorreu por aqui (todo o ouro surrupiado de Vila Rica/Ouro Preto, toda a
prata saqueada de Potosí…)? Não querem esconder debaixo de tapetes
sírios todo o sangue índigena que correu sob a espada e as armas
estrangeiras? Aonde, dentro da palavra “descoberta”, estão todas as
vidas escravizadas, subjugadas, maltratatas, coisificadas e massacradas
pelos (tsk tsk tsk…) “descobridores”? Para ficar só no exemplo do
México: ora, 24 milhões de índios mexicanos assassinados merecem algo
melhor do que o edulcorado conto-de-fadas da “Descoberta (idílica e
doce) do Eldorado”!
Bastante asséptica e higiênica, a palavra “descoberta” parece remeter a um processo limpo de desvelamento, um mero retirar das cobertas,
algo que traz à luz o que antes estava na escuridão. “Descoberta”,
termo de tonalidade positiva, parece referir-se mais a um ato de
encontrar um território novo – que só é “novo”, é claro, quando
enxergado a partir da perspectiva daqueles que antes o desconheciam, os
europeus que aqui aportaram lá por 1.500.
Só que as terras
“descobertas” não eram desabitadas, e nelas floresciam diversas
sociedades que ali haviam vivido por milênios: como lembra Pierre
Clastres, “a América do Sul é um continente cuja imensa superfície, com
raríssimas exceções (como o deserto do Atacama no extremo norte do
Chile), era inteiramente ocupada pelos homens no momento do
descobrimento da América no final do século XV – ocupação, aliás,
bastante antiga, de cerca de 30 MILÊNIOS, como o atestam os estudos da
pré-história” (CLASTRES, Arqueologia da Violência, p. 91). De
modo que a chegada dos europeus, longe de poder ser descrita como a
chegada a uma terra virgem, representou muito mais uma invasão
estrangeira em um continente previamente habitado, por milênios, por
milhões de seres humanos. A palavra “descoberta”, predileta dos
colonizadores e seus escritores da História Oficial, não serviria pois
para esconder as chagas que se escondem por trás do impacto catastrófico
da conquista européia do Novo Mundo no que isso acarretou de genocídio e
etnocídio, escravização e racismo, micróbios e epidemias, dentre outros
inúmeros males?
Ora, ora! A atitude
recorrente do conquistador europeu é se auto-proclamar “superior”,
“civilizado”, devoto do Deus verdadeiro; ao Outro, este desconhecido,
este estranho, este diferente, lança-se o rótulo fácil de inferior,
bárbaro, idólatra de falsos deuses. O nome disso em ética é “arrogância”
ou “presunção”; em psicologia, “narcisismo”; em política, “tirania”.
Quão facilmente se tornam tirânicos os que se sentem arrogantemente
“superiores” ao resto, com direito a subjugar e manter o outro sob seu
jugo! Ou pior: os que se julgam “eleitos”, os “altamente meritórios”, os
“filhos prediletos do Todo-Poderoso”, estes se permitem os massacres
mais inacreditavelmente sangrentos – e tudo por “amor a Deus” e
fidelidade à “boa Causa” (Stirner explica!).
“A guerra contra os
infiéis é justificada, pois abre caminho para a difusão da religião
cristã e facilita o trabalho dos missionários”, diz o espanhol
Sepúlveda, assecla da Coroa Real desejoso de submeter o novo continente
ao Cristianismo, ainda que ele tivesse que ser imposto pela força bruta,
pelos assassinatos em massa, pelo genocídio indígena. É que, conta-nos
também este pio cristão a serviço do Rei, “é legítimo banir o crime
abominável que consiste em comer carne humana” (TODOROV: 2011, pg. 224).
Ora, os espanhóis,
brancos e cristãos, que atravessaram o Atlântico à serviço de Vossa
Majestade o Rei e Vossa Santidade O Papa, eles que faziam pose de
“hiper-civilizados” e desdenhavam os costumes bárbaros dos astecas,
conseguiram, em meio século, somente no México, exterminar mais de 20
milhões de seres humanos. A “descoberta” da América, como Todorov nos
relata, ou seja, a partir de uma perspectiva bem mais interessante e
verídica do que aquela da “história oficial”, foi uma catástrofe
inimaginavelmente trágica para as populações que aqui viviam. O
genocídio perpetrado na América pelos cristãos europeus, embevecidos de
imperialismo evangelizador, superam em número o nosso atual “paradigma
do Mal Absoluto”: o holocausto hitlerista de mais de 6 milhões de
judeus. A sinistra maquinaria de massacre sistemático que os europeus
impuseram aos humanos americanos, segundo Todorov, resume-se assim:
“Em 1500, a população do globo era de
aproximadamente 400 milhões, dos quais 80 milhões habitam as Américas.
Em meados do século XVI, desses 80 milhões… restam 10 milhões. Se nos
restringirmos somente ao México: às vésperas da conquista, sua população
é de aproximadamente 25 milhões; em 1600, é de 1 milhão.” (pg. 191)
Nós, nascidos em épocas
já distanciadas por séculos da invasão das metrópoles absolutistas
européias, esquecemos muito facilmente de fatos como este: entre o Popol
Vuh, livro religioso dos astecas, e a Bíblia, livro-base da civilização
dos conquistadores, a relação é de um livro autóctone e de um livro
estrangeiro. A Bíblia é uma coisa importada, aporte dos invasores,
trazida junto às caravelas dos invasores, massacradores de índios e
escravizadores de negros. Na Inglaterra, outro “centro imperial da
Europa”, destinado a grandes “aventuras” colonizadoras na “Nova
Inglaterra”, mitos também circulavam sobre a vinda da Nova Jerusalém,
sobre a responsabilidade dos cristãos de erguê-la, uma vez que a
Jerusalém “oficial” estava em mãos muçulmanas. A América era vista como
terra “virgem” onde edificar, erigir, monumental e sublime, um
esplendoroso Reino servindo ao Império da Cristandade!
“I will not cease from mental fight
nor shall my sword sleep in my hand
Till we have built Jerusalem
In england’s green and pleasant land.”
nor shall my sword sleep in my hand
Till we have built Jerusalem
In england’s green and pleasant land.”
WILLIAM BLAKE
O fato de muitos desses
assassinos, genocidas e escravocratas se declararem homens de Deus,
homens de fé, servidores da santa causa do cristianismo, deveria nos
bastar para começar – como recomendava Wittgeinstein – a colocar os pontos-de-interrogação bem lá no fundo,
ou seja, abismando-nos na indagação perigosa e herética: o “amor a
Deus”, se pôde gerar tamanha hecatombe e destruição, deve ser
inocentado? A História não seria menos convulsionada por violências
infindas e cabeças rolando caso a arrogância dos eleitos fosse
sobrepujada pela abertura-de-espírito daquele que enxerga a Diferença e a
Alteridade como oportunidade de diálogo, de aprendizado, de
intercâmbio, de mescla? Em outros termos: se a História nos mostra tanto
sangue derramado por puritanos e puristas, crentes em sua própria
superioridade moral e religiosa, não seria mais sadio, mais sábio e mais
feliz aderirmos a uma concepção das relações humanas que privilegiasse
mais a mescla fecunda de diversos vetores e o júbilo de ser impuro?…
II. COLOMBO: QUIXOTE DA VIDA REAL…
A Conquista da América é
filha de “grandes esperanças de lucro” (Cristóvão Colombo, Diário, 1492,
p. 11): “Os mandatários da expedição, os Reis de Espanha, não se teriam
envolvido na empresa se não fosse a promessa de lucro… o ouro era uma
espécie de chamariz para que os reis aceitassem financiá-la” (TODOROV:
p. 11). Mas há mais: a alucinada religiosidade militante de Colombo,
para quem “a expansão do cristianismo é bem mais importante que o ouro”:
numa carta ao Papa, ele diz que sua próxima viagem será “para a glória
da Santíssima Trindade e da santa religião cristã”; “espero em Nosso
Senhor poder propagar seu santo nome e seu Evangelho no Universo” (p.
13).
Nosso aventureiro
idealista, Cristóvão Colombo, era animado por ideais bem mais sublimes
do que somente roubar todo o ouro e as pedras preciosas que encontrasse
pelo caminho, enfiando todas as riquezas em caravelas destinadas à
Espanha. Colombo, conforme a brilhante descrição de Todorov, também
tinha a “ambição espiritual”, que ele mesmo deveria considerar pia e
sublime, de ali espalhar a “doutrina sagrada” do Deus único,
representado pelo Papa romano, ungidor dos Reis de Castela, e que exige
(Deus furibundo e exclusivista…) a submissão da Terra toda à Cruz. Como
sintetiza Todorov,
“A vitória universal do
cristianismo é o que anima Colombo, homem profundamente piedoso (nunca
viaja aos domingos), que justamente por isso considera-se eleito,
encarregado de uma missão divina, e que vê por toda parte a intervenção
divina, seja no movimento das ondas ou no naufrágio de seu barco. (…) A
necessidade de dinheiro e o desejo de impor o verdadeiro Deus não se
excluem. Os dois estão até unidos por uma relação de subordinação: um é
meio, e o outro é fim. (…) Qual um Dom Quixote atrasado de vários
séculos em relação a seu tempo, Colombo queria partir em cruzada e
liberar Jerusalém! (…) Espera encontrar ouro ‘em quantidades suficientes
para que os Reis possam, em menos de 3 anos, preparar e empreender a
conquista da Terra Santa.” (p. 13-14)
Pobres dos povos que
estavam no caminho desta sanha imperialista travestida de “missão
divina”! Sabemos que Colombo trombou por engano com o “Novo Mundo”
(depois batizado de América em homenagem a Vespúcio…) quando pensava
estar indo saquear as Índias. Cristóvão Colombo, embevecido com a ideia
de ser um eleito da Providência, destinado por decreto divino a
reconquistar Jerusalém para a Cristandade e fundar o Paraíso terrestre,
não enxerga nos novos continentes somente riquezas a extrair, saciando a
ambição desenfreada dos nobres ibéricos, mas uma chance de ampliar as
sombras que fazem sobre a Terra o símbolo supremo do messias da Cruz.
O ideal de Colombo,
aquilo que o enchia de “orgulho” por uma ação grandiosa e pia, era estar
expandindo a penetração global dos santos Evangelhos, “curando” os
indígenas de suas cegueiras de pagãos, iniciando-os na verdadeira
doutrina e na verdadeira verdade: descem das caravelas os espanhóis, a
serviço dos reis de ultra-mar, com o espírito das Cruzadas medievais
ainda pulsando em seus peitos fanáticos.
Colombo, delirante, quase
tão quixotesco quanto o Dom Quixote de Cervantes, sai atrás das Índias,
pensa estar se dirigindo à Ásia, e acaba trombando… com a América. É
isso que eu chamo de errar feio o caminho, meu chapa. Colombo se
assemelha a alguém que, chegando em Tóquio, perguntasse a um transeunte:
“É aqui o Rio de Janeiro?” Ele aportou nas praias da Jamaica, do Haiti e
de Cuba convictíssimo (e redondamente enganado…) de estar chegando lá
na Conchinchina.
Mas o mais chocante de tudo é que este
Dom Quixote da vida real pôde ser um dos iniciadores de um dos maiores
genocídios da História. Tudo fez em seu arrebatado afã de agradar aos
reis de Castela e de contribuir para a expansão da Cristandade (“Pela
vontade divina, pus deste modo um outro mundo sob a autoridade do Rei e
da Rainha e assim a Espanha, que diziam ser tão pobre, tornou-se o mais
rico dos reinos”, escreve Colombo em novembro de 1500 – pg. 62).
III. EM BUSCA DE OURO E CONVERSÕES…
Mas o que interessa mais aos
conquistadores espanhóis, se são as riquezas ou as “almas a ganhar para a
Cristo”, é difícil decidir: eles parecem igualmente entusiasmados por
roubar o ouro e espalhar a cruz. E uma das coisas mais curiosas e
bizarras da personalidade de Colombo, como diz Todorov, é que ele “age
como se entre as duas ações se estabelecesse um certo equilíbrio: os
espanhóis dão a religião e tomam o ouro” (pg. 62).
Todo o ouro de Ouro Preto, toda a prata
de Potosí, foram-se nas caravelas; e o que ficou da chegada “gloriosa”
do Cristianismo a estas terras foi o massacre indígena e o início da
escravidão neste continente antes intocado por ela. Se Colombo pôde se
tornar um ardoroso defensor da ideologia escravagista, convicto de que
os índios eram seres inferiores em relação aos cristãos europeus, foi
também por este egocentrismo de que o livro de Todorov traz tantos
exemplos. Colombo é a re-encarnação de Narciso, deslumbrado diante do
espelho, embevecido com a ideia da glória, deleitando-se com os aplausos
que imaginava que lhe votavam, nos palácios, o Rei, a Rainha e o Papa,
os cardeais e os nobres…
Distingue os índios do continente entre
os “cristãos em potencial” e os “incuravelmente pagãos”; a estes
últimos, a solução é exterminar. Para os primeiros, bem… ser cristão em
potencial, vocês sabem, não é o mesmo que ser cristão por inteiro… Logo
(raciocínio de toupeira!) “aqueles que ainda não são cristãos só podem
ser escravos” (pg. 64).
Cristóvão Colombo têm, pois, a
“brilhante” ideia que haverá de revolucionar toda a História posterior
da América, da Europa, da África – enfim, do mundo. “Imagina então que
os navios que transportam rebanhos de animais de carga no sentido
Europa-América sejam carregados de escravos no caminho de volta, para
evitar que retornem vazios e enquanto não se acha ouro em quantidade
suficiente…” (idem).
Como excelente linguista que é, Todorov
tem um olhar todo especial para os fenômenos da comunicação humana.
Percebe no interagir entre os homens os defeitos de comunicação, as
incapacidades de ouvir e entender o outro, a dificuldade tremenda de
transpor os abismos da alteridade. Ele aplica estas reflexões sobre a
questão do Outro aos eventos históricos com rara lucidez, realizando uma
vasta pesquisa sobre o material histórico-documental que evidencia os
massacres, as chacinas, os banhos-de-sangue que impuseram os Cortezes e
os Cabrais e os Colombos que invadiram o continente em fins do século
XV.
Lembra-nos, por exemplo, da origem da
palavra “bárbaro” – uma curiosidade etimológica fascinante: os gregos
taxavam de “bárbaros” todos os povos cujo idioma não compreendiam e que
por isso pareciam só falar um incompreensível blá-blá-blá. A
impossibilidade de conhecer realmente a identidade do outro, devido em
parte ao abismo de idiomas radicalmente diferentes, é uma das “condições
necessárias” para que a guerra e o massacre ocorressem. Uma das
sensações que fica da leitura desta obra inquietante de Todorov é um
certo ceticismo obstinado em relação aos que se presumem “eleitos”.
Batalho para tentar ler nas entrelinhas,
em tudo aquilo que Todorov não disse, em toda a imensidão que está
escrita em elipse nesta obra fervilhante, tentando perceber que tipo de
relação humana, de intercâmbio com o outro, seria digno da Humanidade.
Todorov diz, por exemplo, esta verdade simples e tão veraz: “Um diálogo
não é uma somatória de dois monólogos”. Chacrinha tinha razão: “quem não
comunica se estrumbica”. Pior: quem se comunica mal, pode acabar… na
guerra. Conflitos de força bruta podem ocorrer quando a comunicação é
falha, ou quando um dos lados recusa-se a ouvir o outro, ou quando um
arroga-se possuidor da verdade ou “naturalmente superior” e conclui:
“nada tenho o que conversar com essa racinha, com esses selvagens, com
essa ralé, com essa gentinha de estirpe degradada…”
A arrogância, a prepotência, a soberba, o
narcisismo, o egocentrismo: razões para a guerra. As tragédias de
Ésquilo, por exemplo, a todo momento mostram as catástrofes que decorrem
do excesso de orgulho demonstrado pelos homens. A ponto dos gregos
terem em seu panteão politeísta uma certa deusa Nêmesis, responsável por
punir as elefantíases do orgulho humano.
E a religião, em tudo isso? A religião,
como discurso fabricado por homens a fim de que dissessem a si mesmos o
que mais queriam que fosse verdade, tende quase sempre a fazer agrados
ao ego, inflar a vaidade humana, contar contos-de-fada reconfortantes e
otimistas, fabricar genealogias gloriosas onde estaríamos inseridos em
posições de prestígio: você está entre as criaturas “eleitas” pelo
Criador, você é o máximo dos máximos, você é em essência imortal e
inapodrecível, você tem lugar cativo garantido no Paraíso Celestial,
você é o supra-sumo da Criação, a razão pela qual tudo existe; o Sol foi
ali posto para te iluminar e aquecer; os mares e oceanos, para que você
neles nadasse ou os singrasse nos navios; as árvores, para que você as
derrubasse e fizesse casas, móveis e papéis; e os animais, para serem
comida…
Quanto mais o homem se ilude com
doutrinas auto-reconfortantes, agradáveis ao seu narcisismo, mais
fechado se torna ao verdadeiro encontro com o Outro. “A ideia que os
europeus fazem dos índios, segundo a qual estes lhes são inferiores, ou
seja, estão a meio caminho entre os homens e os animais, é a premissa
essencial, sem a qual a destruição não poderia ter ocorrido” (p. 211).
Quanto mais, em sua vaidade, um povo pretende ser o eleito, o maioral, o
predileto dos deuses, mais arreganha os dentes e empunha a espada para
exterminar aqueles que julga os não-eleitos, os idólatras, os que adoram
falsos deuses, os que não crêem nas “verdades sagradas” (“Quem pode
negar que usar pólvora contra os pagãos é oferecer incenso a Nosso
Senhor?”, escreve Oviedo [p. 219], “fonte rica de julgamentos xenófobos e
racistas”).
Quanto mais uma civilização é dominada
por este narcisismo dos povos a que os antropólogos dão o nome de
“etnocentrismo”, mais choques e guerras ocorrem: é sempre antipático
para um povo ouvir seu vizinho dizer: “eu sou o tal, Deus me escolheu,
somos os donos da verdade, temos o direito de imperar sobre o mundo e
espalhar a nossa doutrina…”.
As “raízes psicológicas” que estariam
por trás da imensa tragédia histórica seriam, portanto, esta neurose
comuníssima que consiste em, no encontro entre culturas e pessoas,
julgar sempre que a diferença e a alteridade implica uma relação de
superioridade/inferioridade. Os europeus, egocêntricos e narcísicos,
justificaram todos os horrores que perpetraram com o argumento de que
eles, europeus, eram superiores, já que andavam vestidos, conheciam a
Bíblia e tinham fé no únido deus verdadeiro, enquanto os índios pelados
eram quase animais, certamente sem alma, idolatradores de falsas
divindades, cuja escravização e extermínio agradava ao Papai-do-Céu, que
certamente tem imensa predileção por branquelos ambiciosos famintos por
ouro.
O saldo negativo, não só em milhões de
vidas perdidas, mas em culturas inteiras dizimadas, chega a ser
inimaginável de tão imenso: “os espanhóis queimarão os livros dos
mexicanos para apagar a religião deles; destruirão os monumentos, para
fazer desaparecer qualquer lembrança de uma grandeza antiga….” (p. 83)
(…) “Quando Cortez deve dar sua opinião acerca da escravização dos
índios, encara o problema de um único ponto de vista: o da rentabilidade
do negócio…” (p. 189). Quanto às doenças trazidas pelos europeus, e que
foram uma das causas maiores de mortes massivas de índios, os espanhóis
assim pensavam: “por que combater uma doença, se ela foi enviada por
Deus para punir os descrentes?” Revoltante!
Todorov, pensador audaz que não se intimida diante do horror (seu livro sobre os campos de concentração, Em Face do Extremo, é outro excelente estudo sobre as raízes do Mal…), escreveu em A Conquista da América
uma obra acabrunhante, assustadora, que revela os sórdidos submundos da
História Real deste que foi, talvez, o maior genocídio de que se tem
notícia no caminhar de nossa espécie:
“Lembraremos que em 1500 a população do
globo deve ser da ordem de 400 milhões, dos quais 80 milhões habitam as
Américas. (…) Se a palavra genocídio foi alguma vez aplicada com
precisão a um caso, então é esse. É um recorde, parece-me, não somente
em termos relativos (uma destruição da ordem de 90% ou mais), mas também
absolutos, já que estamos falando de uma diminuição da população
[nativa] estimada em 70 milhões de seres humanos. Nenhum dos grandes
massacres do século XX pode comparar-se a esta hecatombe.” (p. 192)
Destes horrores repelentes e chocantes,
fica somente a aspiração por um outro mundo possível (“um pouco de
possível, ou então sufoco!”) onde haja convivência e coexistência da
diferença, pleno respeito à alteridade, diálogo fecundo e aberto com o
Outro, sem que jamais o fato da diversidade degenere em presunções de
superioridade/inferioridade. Em prol, enfim, do júbilo de ser impuro, da
alegria expansiva do diálogo mutuamente iluminador, de um
cosmopolitismo que nos enxergue não como cindidos em etnias e
nacionalidades, mas como passageiros do mesmo barco, conviventes no
mesmo planeta rodopiante que viaja pela galáxia…
(por Eduardo Carli de Moraes
Mestrando em Filosofia/UFG
Goiânia, Setembro de 2012)
Mestrando em Filosofia/UFG
Goiânia, Setembro de 2012)
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