quarta-feira, 3 de outubro de 2012

A América Não Foi Descoberta! (A Invasão Européia do Novo Mundo segundo Todorov)


buscado na casa de vidro

A AMÉRICA NÃO FOI DESCOBERTA!

Reflexões sobre “A Conquista da América – A questão do Outro”
de Tzvetan Todorov (Ed. Martins Fontes, 4ªed, 2011)


* * * * * *

 por Eduardo Carli de Moraes

 Uma das primeiras coisas que colocamos sob suspeita quando começamos a estudar mais a fundo a “Descoberta da América” é a própria denominação do evento histórico, esta curiosa expressão que batiza a ocorrência colossal – “descoberta”. Será este o termo mais adequado? Melhor que “invasão”, que “choque de civilizações”, que “limpeza étnica”? Será que dizer “descobrir” não serve para mascarar e esconder todos os horrores colossais da guerra de conquista que empreenderam as potências européias contra o Novo Mundo? Não é este um eufemismo criado pelo invasor, destinado a ser engolido sem reclamo pelos cordeirinhos submissos dos colonizados?
Será que dizer que nos “descobriram” não intenta, sub-repticiamente, fazer com que nos esqueçamos de toda a pilhagem, todo o roubo de recursos naturais, que ocorreu por aqui (todo o ouro surrupiado de Vila Rica/Ouro Preto, toda a prata saqueada de Potosí…)? Não querem esconder debaixo de tapetes sírios todo o sangue índigena que correu sob a espada e as armas estrangeiras? Aonde, dentro da palavra “descoberta”, estão todas as vidas escravizadas, subjugadas, maltratatas, coisificadas e massacradas pelos (tsk tsk tsk…) “descobridores”? Para ficar só no exemplo do México: ora, 24 milhões de índios mexicanos assassinados merecem algo melhor do que o edulcorado conto-de-fadas da “Descoberta (idílica e doce) do Eldorado”!
 Bastante asséptica e higiênica, a palavra “descoberta” parece remeter a um processo limpo de desvelamento, um mero retirar das cobertas, algo que traz à luz o que antes estava na escuridão. “Descoberta”, termo de tonalidade positiva, parece referir-se mais a um ato de encontrar um território novo – que só é “novo”, é claro, quando enxergado a partir da perspectiva daqueles que antes o desconheciam, os europeus que aqui aportaram lá por 1.500.
 Só que as terras “descobertas” não eram desabitadas, e nelas floresciam diversas sociedades que ali haviam vivido por milênios: como lembra Pierre Clastres, “a América do Sul é um continente cuja imensa superfície, com raríssimas exceções (como o deserto do Atacama no extremo norte do Chile), era inteiramente ocupada pelos homens no momento do descobrimento da América no final do século XV – ocupação, aliás, bastante antiga, de cerca de 30 MILÊNIOS, como o atestam os estudos da pré-história” (CLASTRES, Arqueologia da Violência, p. 91). De modo que a chegada dos europeus, longe de poder ser descrita como a chegada a uma terra virgem, representou muito mais uma invasão estrangeira em um continente previamente habitado, por milênios, por milhões de seres humanos. A palavra “descoberta”, predileta dos colonizadores e seus escritores da História Oficial, não serviria pois para esconder as chagas que se escondem por trás do impacto catastrófico da conquista européia do Novo Mundo no que isso acarretou de genocídio e etnocídio, escravização e racismo, micróbios e epidemias, dentre outros inúmeros males?
 Ora, ora! A atitude recorrente do conquistador europeu é se auto-proclamar “superior”, “civilizado”, devoto do Deus verdadeiro; ao Outro, este desconhecido, este estranho, este diferente, lança-se o rótulo fácil de inferior, bárbaro, idólatra de falsos deuses. O nome disso em ética é “arrogância” ou “presunção”; em psicologia, “narcisismo”; em política, “tirania”. Quão facilmente se tornam tirânicos os que se sentem arrogantemente “superiores” ao resto, com direito a subjugar e manter o outro sob seu jugo! Ou pior: os que se julgam “eleitos”, os “altamente meritórios”, os “filhos prediletos do Todo-Poderoso”, estes se permitem os massacres mais inacreditavelmente sangrentos – e tudo por “amor a Deus” e fidelidade à “boa Causa” (Stirner explica!).
 “A guerra contra os infiéis é justificada, pois abre caminho para a difusão da religião cristã e facilita o trabalho dos missionários”, diz o espanhol Sepúlveda, assecla da Coroa Real desejoso de submeter o novo continente ao Cristianismo, ainda que ele tivesse que ser imposto pela força bruta, pelos assassinatos em massa, pelo genocídio indígena. É que, conta-nos também este pio cristão a serviço do Rei, “é legítimo banir o crime abominável que consiste em comer carne humana” (TODOROV: 2011, pg. 224).
 Ora, os espanhóis, brancos e cristãos, que atravessaram o Atlântico à serviço de Vossa Majestade o Rei e Vossa Santidade O Papa, eles que faziam pose de “hiper-civilizados” e desdenhavam os costumes bárbaros dos astecas, conseguiram, em meio século, somente no México, exterminar mais de 20 milhões de seres humanos. A “descoberta” da América, como Todorov nos relata, ou seja, a partir de uma perspectiva bem mais interessante e verídica do que aquela da “história oficial”, foi uma catástrofe inimaginavelmente trágica para as populações que aqui viviam. O genocídio perpetrado na América pelos cristãos europeus, embevecidos de imperialismo evangelizador, superam em número o nosso atual “paradigma do Mal Absoluto”: o holocausto hitlerista de mais de 6 milhões de judeus. A sinistra maquinaria de massacre sistemático que os europeus impuseram aos humanos americanos, segundo Todorov, resume-se assim:
 “Em 1500, a população do globo era de aproximadamente 400 milhões, dos quais 80 milhões habitam as Américas. Em meados do século XVI, desses 80 milhões… restam 10 milhões. Se nos restringirmos somente ao México: às vésperas da conquista, sua população é de aproximadamente 25 milhões; em 1600, é de 1 milhão.” (pg. 191)
 Nós, nascidos em épocas já distanciadas por séculos da invasão das metrópoles absolutistas européias, esquecemos muito facilmente de fatos como este: entre o Popol Vuh, livro religioso dos astecas, e a Bíblia, livro-base da civilização dos conquistadores, a relação é de um livro autóctone e de um livro estrangeiro. A Bíblia é uma coisa importada, aporte dos invasores, trazida junto às caravelas dos invasores, massacradores de índios e escravizadores de negros. Na Inglaterra, outro “centro imperial da Europa”, destinado a grandes “aventuras” colonizadoras na “Nova Inglaterra”, mitos também circulavam sobre a vinda da Nova Jerusalém, sobre a responsabilidade dos cristãos de erguê-la, uma vez que a Jerusalém “oficial” estava em mãos muçulmanas. A América era vista como terra “virgem” onde edificar, erigir, monumental e sublime, um esplendoroso Reino servindo ao Império da Cristandade!
 “I will not cease from mental fight
nor shall my sword sleep in my hand

Till we have built Jerusalem

In england’s green and pleasant land.”
WILLIAM BLAKE
O fato de muitos desses assassinos, genocidas e escravocratas se declararem homens de Deus, homens de fé, servidores da santa causa do cristianismo, deveria nos bastar para começar – como recomendava Wittgeinstein – a colocar os pontos-de-interrogação bem lá no fundo, ou seja, abismando-nos na indagação perigosa e herética: o “amor a Deus”, se pôde gerar tamanha hecatombe e destruição, deve ser inocentado? A História não seria menos convulsionada por violências infindas e cabeças rolando caso a arrogância dos eleitos fosse sobrepujada pela abertura-de-espírito daquele que enxerga a Diferença e a Alteridade como oportunidade de diálogo, de aprendizado, de intercâmbio, de mescla? Em outros termos: se a História nos mostra tanto sangue derramado por puritanos e puristas, crentes em sua própria superioridade moral e religiosa, não seria mais sadio, mais sábio e mais feliz aderirmos a uma concepção das relações humanas que privilegiasse mais a mescla fecunda de diversos vetores e o júbilo de ser impuro?…


II. COLOMBO: QUIXOTE DA VIDA REAL… 
A Conquista da América é filha de “grandes esperanças de lucro” (Cristóvão Colombo, Diário, 1492, p. 11): “Os mandatários da expedição, os Reis de Espanha, não se teriam envolvido na empresa se não fosse a promessa de lucro… o ouro era uma espécie de chamariz para que os reis aceitassem financiá-la” (TODOROV: p. 11). Mas há mais: a alucinada religiosidade militante de Colombo, para quem “a expansão do cristianismo é bem mais importante que o ouro”: numa carta ao Papa, ele diz que sua próxima viagem será “para a glória da Santíssima Trindade e da santa religião cristã”; “espero em Nosso Senhor poder propagar seu santo nome e seu Evangelho no Universo” (p. 13).
Nosso aventureiro idealista, Cristóvão Colombo, era animado por ideais bem mais sublimes do que somente roubar todo o ouro e as pedras preciosas que encontrasse pelo caminho, enfiando todas as riquezas em caravelas destinadas à Espanha. Colombo, conforme a brilhante descrição de Todorov, também tinha a “ambição espiritual”, que ele mesmo deveria considerar pia e sublime, de ali espalhar a “doutrina sagrada” do Deus único, representado pelo Papa romano, ungidor dos Reis de Castela, e que exige (Deus furibundo e exclusivista…) a submissão da Terra toda à Cruz. Como sintetiza Todorov,
 “A vitória universal do cristianismo é o que anima Colombo, homem profundamente piedoso (nunca viaja aos domingos), que justamente por isso considera-se eleito, encarregado de uma missão divina, e que vê por toda parte a intervenção divina, seja no movimento das ondas ou no naufrágio de seu barco. (…) A necessidade de dinheiro e o desejo de impor o verdadeiro Deus não se excluem. Os dois estão até unidos por uma relação de subordinação: um é meio, e o outro é fim. (…) Qual um Dom Quixote atrasado de vários séculos em relação a seu tempo, Colombo queria partir em cruzada e liberar Jerusalém! (…) Espera encontrar ouro ‘em quantidades suficientes para que os Reis possam, em menos de 3 anos, preparar e empreender a conquista da Terra Santa.” (p. 13-14)
 Pobres dos povos que estavam no caminho desta sanha imperialista travestida de “missão divina”! Sabemos que Colombo trombou por engano com o “Novo Mundo” (depois batizado de América em homenagem a Vespúcio…) quando pensava estar indo saquear as Índias. Cristóvão Colombo, embevecido com a ideia de ser um eleito da Providência, destinado por decreto divino a reconquistar Jerusalém para a Cristandade e fundar o Paraíso terrestre, não enxerga nos novos continentes somente riquezas a extrair, saciando a ambição desenfreada dos nobres ibéricos, mas uma chance de ampliar as sombras que fazem sobre a Terra o símbolo supremo do messias da Cruz.
O ideal de Colombo, aquilo que o enchia de “orgulho” por uma ação grandiosa e pia, era estar expandindo a penetração global dos santos Evangelhos, “curando” os indígenas de suas cegueiras de pagãos, iniciando-os na verdadeira doutrina e na verdadeira verdade: descem das caravelas os espanhóis, a serviço dos reis de ultra-mar, com o espírito das Cruzadas medievais ainda pulsando em seus peitos fanáticos.
Colombo, delirante, quase tão quixotesco quanto o Dom Quixote de Cervantes, sai atrás das Índias, pensa estar se dirigindo à Ásia, e acaba trombando… com a América. É isso que eu chamo de errar feio o caminho, meu chapa. Colombo se assemelha a alguém que, chegando em Tóquio, perguntasse a um transeunte: “É aqui o Rio de Janeiro?” Ele aportou nas praias da Jamaica, do Haiti e de Cuba convictíssimo (e redondamente enganado…) de estar chegando lá na Conchinchina.
 Mas o mais chocante de tudo é que este Dom Quixote da vida real pôde ser um dos iniciadores de um dos maiores genocídios da História. Tudo fez em seu arrebatado afã de agradar aos reis de Castela e de contribuir para a expansão da Cristandade (“Pela vontade divina, pus deste modo um outro mundo sob a autoridade do Rei e da Rainha e assim a Espanha, que diziam ser tão pobre, tornou-se o mais rico dos reinos”, escreve Colombo em novembro de 1500 – pg. 62).


“Dom Quixote” por José Guadalupe Posada

III. EM BUSCA DE OURO E CONVERSÕES… 
Mas o que interessa mais aos conquistadores espanhóis, se são as riquezas ou as “almas a ganhar para a Cristo”, é difícil decidir: eles parecem igualmente entusiasmados por roubar o ouro e espalhar a cruz. E uma das coisas mais curiosas e bizarras da personalidade de Colombo, como diz Todorov, é que ele “age como se entre as duas ações se estabelecesse um certo equilíbrio: os espanhóis dão a religião e tomam o ouro” (pg. 62).
 Todo o ouro de Ouro Preto, toda a prata de Potosí, foram-se nas caravelas; e o que ficou da chegada “gloriosa” do Cristianismo a estas terras foi o massacre indígena e o início da escravidão neste continente antes intocado por ela. Se Colombo pôde se tornar um ardoroso defensor da ideologia escravagista, convicto de que os índios eram seres inferiores em relação aos cristãos europeus, foi também por este egocentrismo de que o livro de Todorov traz tantos exemplos. Colombo é a re-encarnação de Narciso, deslumbrado diante do espelho, embevecido com a ideia da glória, deleitando-se com os aplausos que imaginava que lhe votavam, nos palácios, o Rei, a Rainha e o Papa, os cardeais e os nobres…
 Distingue os índios do continente entre os “cristãos em potencial” e os “incuravelmente pagãos”; a estes últimos, a solução é exterminar. Para os primeiros, bem… ser cristão em potencial, vocês sabem, não é o mesmo que ser cristão por inteiro… Logo (raciocínio de toupeira!) “aqueles que ainda não são cristãos só podem ser escravos” (pg. 64).
 Cristóvão Colombo têm, pois, a “brilhante” ideia que haverá de revolucionar toda a História posterior da América, da Europa, da África – enfim, do mundo. “Imagina então que os navios que transportam rebanhos de animais de carga no sentido Europa-América sejam carregados de escravos no caminho de volta, para evitar que retornem vazios e enquanto não se acha ouro em quantidade suficiente…” (idem).



Como excelente linguista que é, Todorov tem um olhar todo especial para os fenômenos da comunicação humana. Percebe no interagir entre os homens os defeitos de comunicação, as incapacidades de ouvir e entender o outro, a dificuldade tremenda de transpor os abismos da alteridade. Ele aplica estas reflexões sobre a questão do Outro aos eventos históricos com rara lucidez, realizando uma vasta pesquisa sobre o material histórico-documental que evidencia os massacres, as chacinas, os banhos-de-sangue que impuseram os Cortezes e os Cabrais e os Colombos que invadiram o continente em fins do século XV.
 Lembra-nos, por exemplo, da origem da palavra “bárbaro” – uma curiosidade etimológica fascinante: os gregos taxavam de “bárbaros” todos os povos cujo idioma não compreendiam e que por isso pareciam só falar um incompreensível blá-blá-blá. A impossibilidade de conhecer realmente a identidade do outro, devido em parte ao abismo de idiomas radicalmente diferentes, é uma das “condições necessárias” para que a guerra e o massacre ocorressem. Uma das sensações que fica da leitura desta obra inquietante de Todorov é um certo ceticismo obstinado em relação aos que se presumem “eleitos”.
 Batalho para tentar ler nas entrelinhas, em tudo aquilo que Todorov não disse, em toda a imensidão que está escrita em elipse nesta obra fervilhante, tentando perceber que tipo de relação humana, de intercâmbio com o outro, seria digno da Humanidade. Todorov diz, por exemplo, esta verdade simples e tão veraz: “Um diálogo não é uma somatória de dois monólogos”. Chacrinha tinha razão: “quem não comunica se estrumbica”. Pior: quem se comunica mal, pode acabar… na guerra. Conflitos de força bruta podem ocorrer quando a comunicação é falha, ou quando um dos lados recusa-se a ouvir o outro, ou quando um arroga-se possuidor da verdade ou “naturalmente superior” e conclui: “nada tenho o que conversar com essa racinha, com esses selvagens, com essa ralé, com essa gentinha de estirpe degradada…”
A arrogância, a prepotência, a soberba, o narcisismo, o egocentrismo: razões para a guerra. As tragédias de Ésquilo, por exemplo, a todo momento mostram as catástrofes que decorrem do excesso de orgulho demonstrado pelos homens. A ponto dos gregos terem em seu panteão politeísta uma certa deusa Nêmesis, responsável por punir as elefantíases do orgulho humano.
 E a religião, em tudo isso? A religião, como discurso fabricado por homens a fim de que dissessem a si mesmos o que mais queriam que fosse verdade, tende quase sempre a fazer agrados ao ego, inflar a vaidade humana, contar contos-de-fada reconfortantes e otimistas, fabricar genealogias gloriosas onde estaríamos inseridos em posições de prestígio: você está entre as criaturas “eleitas” pelo Criador, você é o máximo dos máximos, você é em essência imortal e inapodrecível, você tem lugar cativo garantido no Paraíso Celestial, você é o supra-sumo da Criação, a razão pela qual tudo existe; o Sol foi ali posto para te iluminar e aquecer; os mares e oceanos, para que você neles nadasse ou os singrasse nos navios; as árvores, para que você as derrubasse e fizesse casas, móveis e papéis; e os animais, para serem comida…
Quanto mais o homem se ilude com doutrinas auto-reconfortantes, agradáveis ao seu narcisismo, mais fechado se torna ao verdadeiro encontro com o Outro. “A ideia que os europeus fazem dos índios, segundo a qual estes lhes são inferiores, ou seja, estão a meio caminho entre os homens e os animais, é a premissa essencial, sem a qual a destruição não poderia ter ocorrido” (p. 211). Quanto mais, em sua vaidade, um povo pretende ser o eleito, o maioral, o predileto dos deuses, mais arreganha os dentes e empunha a espada para exterminar aqueles que julga os não-eleitos, os idólatras, os que adoram falsos deuses, os que não crêem nas “verdades sagradas” (“Quem pode negar que usar pólvora contra os pagãos é oferecer incenso a Nosso Senhor?”, escreve Oviedo [p. 219], “fonte rica de julgamentos xenófobos e racistas”).
 Quanto mais uma civilização é dominada por este narcisismo dos povos a que os antropólogos dão o nome de “etnocentrismo”, mais choques e guerras ocorrem: é sempre antipático para um povo ouvir seu vizinho dizer: “eu sou o tal, Deus me escolheu, somos os donos da verdade, temos o direito de imperar sobre o mundo e espalhar a nossa doutrina…”.
 As “raízes psicológicas” que estariam por trás da imensa tragédia histórica seriam, portanto, esta neurose comuníssima que consiste em, no encontro entre culturas e pessoas, julgar sempre que a diferença e a alteridade implica uma relação de superioridade/inferioridade. Os europeus, egocêntricos e narcísicos, justificaram todos os horrores que perpetraram com o argumento de que eles, europeus, eram superiores, já que andavam vestidos, conheciam a Bíblia e tinham fé no únido deus verdadeiro, enquanto os índios pelados eram quase animais, certamente sem alma, idolatradores de falsas divindades, cuja escravização e extermínio agradava ao Papai-do-Céu, que certamente tem imensa predileção por branquelos ambiciosos famintos por ouro.
 O saldo negativo, não só em milhões de vidas perdidas, mas em culturas inteiras dizimadas, chega a ser inimaginável de tão imenso: “os espanhóis queimarão os livros dos mexicanos para apagar a religião deles; destruirão os monumentos, para fazer desaparecer qualquer lembrança de uma grandeza antiga….” (p. 83) (…) “Quando Cortez deve dar sua opinião acerca da escravização dos índios, encara o problema de um único ponto de vista: o da rentabilidade do negócio…” (p. 189). Quanto às doenças trazidas pelos europeus, e que foram uma das causas maiores de mortes massivas de índios, os espanhóis assim pensavam: “por que combater uma doença, se ela foi enviada por Deus para punir os descrentes?” Revoltante!
 

Todorov, pensador audaz que não se intimida diante do horror (seu livro sobre os campos de concentração, Em Face do Extremo, é outro excelente estudo sobre as raízes do Mal…), escreveu em A Conquista da América uma obra acabrunhante, assustadora, que revela os sórdidos submundos da História Real deste que foi, talvez, o maior genocídio de que se tem notícia no caminhar de nossa espécie:
 “Lembraremos que em 1500 a população do globo deve ser da ordem de 400 milhões, dos quais 80 milhões habitam as Américas. (…) Se a palavra genocídio foi alguma vez aplicada com precisão a um caso, então é esse. É um recorde, parece-me, não somente em termos relativos (uma destruição da ordem de 90% ou mais), mas também absolutos, já que estamos falando de uma diminuição da população [nativa] estimada em 70 milhões de seres humanos. Nenhum dos grandes massacres do século XX pode comparar-se a esta hecatombe.” (p. 192)
 Destes horrores repelentes e chocantes, fica somente a aspiração por um outro mundo possível (“um pouco de possível, ou então sufoco!”) onde haja convivência e coexistência da diferença, pleno respeito à alteridade, diálogo fecundo e aberto com o Outro, sem que jamais o fato da diversidade degenere em presunções de superioridade/inferioridade. Em prol, enfim, do júbilo de ser impuro, da alegria expansiva do diálogo mutuamente iluminador, de um cosmopolitismo que nos enxergue não como cindidos em etnias e nacionalidades, mas como passageiros do mesmo barco, conviventes no mesmo planeta rodopiante que viaja pela galáxia…

(por Eduardo Carli de Moraes
Mestrando em Filosofia/UFG
Goiânia, Setembro de 2012)

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