“Em
Santa Catarina, a atual luta pela terra une estes dois
grupos: os participantes dos assentamentos e acampamentos da reforma
agrária (descendentes de caboclos, remanescentes do movimento do
Contestado), e os colonos de origem europeia, que perderam suas
terras nas últimas décadas para bancos, comércio e agroindústria”,
aponta o historiador.
Confira a
entrevista.
O conflito social entre
fazendeiros e posseiros, ocorrido no planalto catarinense e paraense
há um século, conhecido como a Guerra
do Contestado, reflete ainda hoje no cotidiano das
populações remanescentes dos redutos do Contestado. De acordo com o
historiador Paulo Pinheiro Machado, que
pesquisa a história da região, os caboclos descendentes de pequenos
lavradores e posseiros “vivem em situação de extrema pobreza. “Os
núcleos e municípios onde vivem apresentam os Índices
de Desenvolvimento Humano – IDH (que
mensura educação, saúde e condições de vida, trabalho e moradia)
mais baixos de Santa Catarina”, informa em entrevista concedida
à IHU On-Linepor e-mail.
Os caboclos ocupam as
“periferias das grandes e médias cidades do Estado”, e muitos
dos que trabalham no campo “são peões ou agregados de grandes
fazendeiros, e raros são proprietários de lotes formalizados de
terra”, diz o historiador. Na entrevista a seguir, Machado detalha
o que foi a Guerra do Contestado e comenta o
processo de europeização dos estados de Santa
Catarina e Paraná. “Boa parte
da região onde viviam os
sertanejos antes da guerra foi, ao longo de 1930 a 1950,
objeto de ação de companhias particulares de colonização que,
agindo de acordo com as autoridades públicas, lotearam antigas
terras dos caboclos posseiros para descendentes de segunda e terceira
geração de imigrantes europeus provenientes do Rio Grande do Sul”.
Paulo Pinheiro
Machado (foto) leciona na Universidade Federal de Santa
Catarina – UFSC, onde coordena o curso de graduação em História.
É doutor em História pela Universidade Estadual de Campinas, com
pós-doutorado na Universidade Federal Fluminense e na Universitat
Autonoma de Barcelona.
Confira a
entrevista.
IHU On-Line – O que foi a Guerra do Contestado (1912-1916)? Em que contexto histórico e político ela aconteceu?
IHU On-Line – O que foi a Guerra do Contestado (1912-1916)? Em que contexto histórico e político ela aconteceu?
Paulo Pinheiro
Machado – A Guerra
do Contestado foi um conflito social, ocorrido nos
planaltos catarinense e paranaense entre 1912 e 1916, que colocou de
um lado Coronéis, grandes fazendeiros, governo e, de outro lado,
posseiros, pequenos lavradores, ervateiros, tropeiros e agregados. O
conflito teve início com a perseguição policial ao grupo de
sertanejos que se reunia em torno do curandeiro José Maria,
na comunidade de Taquaruçu.
Quando este grupo foge
da polícia catarinense e se dirige ao oeste, ao Irani,
então território contestado sob administração paranaense, os
sertanejos passam a ser objeto de desconfiança das autoridades
paranaenses, que interpretam sua chegada como uma "invasão
catarinense" no intuito de ocupação
do território contestado. A polícia do Paraná promoveu um
forte ataque que resultou na batalha do Irani, combate ocorrido em 22
de outubro de 1912, considerado o início da Guerra, onde morreram 11
sertanejos, entre eles o monge José Maria, e 10
soldados (inclusive o comandante do Regimento de Segurança do
Paraná, o coronel João Gualberto Gomes de Sá).
Os sertanejos enterraram José Maria com
tábuas, já que aguardavam por seu "retorno". Um ano após
este combate, uma menina de 11 anos, Teodora,
passou a relatar que tinha sonhos com José Maria e que este ordenava
a todos os seus seguidores a dirigirem-se para Taquaruçu.
Depois formam-se outras "cidades santas" ou redutos dos
sertanejos, como Caraguatá, Santo Antônio, Caçador Grande, Bom
Sossego, Santa Maria (a maior cidade, com mais de 20 mil habitantes),
Pedra Branca, São Miguel e São Pedro. A tropa federal chegou a
reunir mais de 7 mil soldados, associados às polícias de Santa
Catarina e Paraná e grande grupo de “vaqueanos civis”, como eram
chamados os capangas dos fazendeiros. O conflito teve fim com o cerco
e o desabastecimento dos redutos finais. Acredita-se que os mortos em
combate e por epidemias e fome passem dos 10 mil.
O contexto principal do
conflito é a vigência do coronelismo no planalto, o impacto da
construção da Estrada de Ferro São Paulo-Rio
Grande sobre extensa região (com a expropriação e o
deslocamento de milhares de sertanejos), e a herança política de
conflitos ligados à Revolução
Federalista (1893-1895), que impactou fortemente o
planalto.
Como potencializador dentro deste conjunto de problemas, ainda havia uma longa disputa de limites entre os dois estados. Os catarinenses reivindicavam, como suas divisas com o vizinho do norte, os rios Iguaçu e Negro. Os paranaenses consideravam que toda a região dos campos de Palmas, de União da Vitória até o rio Caçador e das saliências do Timbó, de Três Barras, Rio Negro, Itaiópolis e Papanduva, constituía parte de seu território. Os catarinenses já possuíam três sentenças do Supremo Tribunal Federal a seu favor (de 1904, 1909 e 1910), mas a execução destas decisões eram inviabilizadas por pressão política dos paranaenses.
IHU On-Line – Qual a influência e participação dos monges na Guerra do Contestado?
Paulo Pinheiro Machado – O profetismo popular praticado pelo monge João Maria de Agostini desde meados do século XIX no planalto criou um ambiente cultural de autonomia, um conjunto de práticas sociais e costumeiras do mundo caboclo, autonomia em relação ao Estado, aos proprietários e ao clero católico. João Maria era um rezador leigo, andarilho, que circulava num amplo território que ia de Sorocaba, em São Paulo, até Rio Pardo e Santa Maria, no Rio Grande do Sul. Seus caminhos eram os mesmos das tropas de muares, que uniam o sul ao centro do Brasil. A partir da década de 1860, este primeiro João Maria nunca mais foi visto. Na década de 1890 outros andarilhos irão assumir esta identidade e, em 1912, o próprio curandeiro José Maria, após a sua morte, terá sua memória associada, cada vez mais, à trajetória de João Maria. Para os caboclos o profeta é um santo, "São" João Maria. O profeta pregava uma vida de respeito ao próximo, aos animais e à natureza. Assinalava a existência de fontes de água (que logo a população passou a chamar de “águas santas” ou “águas do monge”) e recomendava a edificação de cruzeiros. Informava que haveria uma época em que o sol não nasceria por três dias e que só os verdadeiros penitentes se salvariam. No final do século XIX se identifica uma crescente aproximação da tradição de São João Maria com a tradição popular federalista. Não do federalismo formal de suas principais lideranças (como Gaspar Silveira Martins, Eliseu Guilherme da Silva ou Abdon Batista), mas de uma vertente popular do federalismo, que era animada por pequenas lideranças locais, que se baseava numa noção difusa de luta contra autoridades impostas de fora.
Ao longo de um extenso período não só no Contestado, mas em outras regiões do Sul brasileiro, ocorreramconcentrações camponesas em nome de João Maria, que foram objeto de ação repressiva da polícia e de forças militares, como a concentração de Santa Maria (no Campestre entre 1846 e 1849), no Rio Grande do Sul; oCanudinho de Lages (em Santa Catarina, em 1897), o movimento dos monges do Pinheirinho (Encantado, Rio Grande do Sul, 1902), o movimento dos Fabrícios e dos Palhamos (Concórdia, SC, 1924-25), o movimento dos monges barbudos (Soledade, RS, 1935-37) e o movimento do Timbó Grande, 1942 (Porto União, SC, 1942). Então, a ação dos monges é importante não só para o Contestado, mas também para todo o Planalto Meridional.
IHU On-Line – Qual a relação da Guerra do Contestado com o ingresso dos imigrantes europeus em Santa Catarina e Paraná?
Paulo Pinheiro Machado – Quando o governo federal destinou à Brazil Railway Company, empresa do magnata norte-americano Percival Farqhar, a concessão para a construção do último trecho da Estrada de Ferro São Paulo-Rio Grande, permitiu que esta empresa explorasse até 15 km de terras devolutas de cada lado do leito da estrada. Ao longo de quase 300 km do vale do Rio do Peixe muitas comunidades de caboclos foram enxotadas e ali foi instalada uma subsidiária da ferrovia, a Brazil Lumber and Colonization Company, responsável pela exploração das madeiras (araucárias, imbúias, ipês, etc.) e pelo loteamento e venda do território recebido como concessão para imigrantes europeus, muitos deslocados para auxiliar na construção da estrada de ferro. Então, esta chegada de imigrantes junto com a ferrovia criou forte reação entre os caboclos luso-brasileiros. Mas é também importante lembrar que muitos imigrantes (alemães, italianos, poloneses e ucranianos) aderiram ao movimento sertanejo, indo morar nas "cidades santas", vários por já estarem "acaboclados", aderindo ao universo cultural dos devotos de São João Maria.
IHU On-Line – Como vê o processo de europeização incentivado nas primeiras décadas da República? Os conflitos de terra no país derivam especificamente deste período?
Paulo Pinheiro Machado – Apesar de serem mais antigos, os conflitos de terras se intensificam neste período. Com a República, a Constituição de 1891 passou para os estados a capacidade de legislar sobre terras e colonização. Leis de terras estaduais são promulgadas no Paraná e em Santa Catarina, frequentemente apoiando os já grandes fazendeiros, viabilizando a legitimação de suas posses e o açambarcamento de extensas áreas públicas (como ervais nativos). Mas podemos ver a questão de terras no Contestado em três níveis diferentes: em primeiro lugar, é importante considerar que já existia um paulatino processo de concentração fundiária nas regiões de campos naturais e faxinais, como São Joaquim, Lages, Curitibanos e Campos Novos. Nestes municípios há um paulatino avanço de grandes estancieiros sobre a posse de pequenos lavradores, que faziam suas lavouras em matas e faxinais vizinhos às pastagens dos criadores. No início do século XX há um processo de açambarcamento das posses destes pequenos lavradores pelos grandes criadores. Nas margens dos rios do Peixe, Negro e Iguaçu médio ocorre o impacto já mencionado da construção da Estrada de Ferro São Paulo-Rio Grande, com a grilagem em grande escala realizada pelo Corpo de Segurança particular da Lumber, que expulsou deste território milhares de sitiantes e pequenos posseiros. Por fim, nas regiões contestadas entre Paraná e Santa Catarina havia muitos territórios com dupla titulação, em cartórios catarinenses e paranaenses. A instabilidade da questão de limites entre os estados facilitou a grilagem praticada em grande escala por Coronéis da Guarda Nacional do Paraná, sobre muitas terras habitadas por indígenas e caboclos. Assim agiam os Coronéis Juca Pimpão (de Palmas), Amazonas Marcondes (União da Vitória), Arthur de Paula (na região do Timbó), Fabrício Vieira (no Iguaçu médio), Leocádio Pacheco (em Três Barras) e Bley Neto (em Rio Negro). Mesmo depois da execução do acordo de limites, assinado por ambos os estados ao final da Guerra, em 1916, uma cláusula deste acordo consolidou a grilagem das terras contestadas por proprietários paranaenses, mesmo nos territórios que caíram sob jurisdição catarinense.
IHU On-Line – Por que a Guerra do Contestado foi pouco discutida e relembrada entre os catarinenses durante quatro décadas?
Paulo Pinheiro Machado – O conflito foi extremamente violento e traumático para muitas
comunidades do planalto. Além disso, como era governador na época o lageano Vidal Ramos, por todo um longo período onde este grupo oligárquico esteve no controle da máquina do Estado (nos governos de Nereu Ramos e seus partidários do PSD), o esquecimento foi uma política de estado. A outra oligarquia local, o grupo Konder-Bornhausen, fortemente representada na UDN, estava preocupada em construir uma imagem de europeização para o estado, o que não deixava espaço para a experiência da aventura cabocla. Mas, apesar deste grande desconhecimento público sobre o conflito, o movimento do Contestado possui uma extensa e copiosa literatura de cronistas militares, sociólogos e historiadores. No entanto, esta produção sempre ficou muito restrita a um pequeno grupo de pesquisadores especialistas. O Contestado começa a sair do esquecimento numa conjuntura específica, a redemocratização e a luta contra a Ditadura Militar nas décadas de 1970 e 1980. É neste contexto que precisamos entender a nova historiografia sobre este movimento, que o reviveu em grande medida ativada por um conjunto contemporâneo de movimentos sociais dos “de baixo”, dos sem-terras, dos atingidos pelas barragens e muitos outros.
IHU On-Line – Hoje, como o tema tem sido resgatado pela historiografia, e quais são as novidades para compreendermos melhor o que foi esse período?
Paulo Pinheiro Machado – Há uma nova geração de pesquisadores, inaugurada com o magistral livro de Duglas Teixeira Monteiro, Os errantes do novo século (São Paulo: Duas Cidades, 1974), que passou a afastar os antigos conceitos de fanatismo, irracionalidade e aberrações e começou a entender a linguagem e a cultura dos sertanejos rebeldes em seus próprios termos. Assim podemos considerar a bela obra de Marli Auras, Guerra do Contestado: a organização da Irmandade Cabocla (Florianópolis: Ed. UFSC, 1983), que faz um estudo sobre os laços internos dentro dos redutos. O trabalho de Ivone Gallo, O Contestado: o sonho do milênio igualitário (Campinas: Ed. Unicamp, 1999), que procurou entender o profetismo popular e a noção de apocalipse dos sertanejos. Delmir José Valentini faz um importante trabalho sobre a memória dos sertanejos sobreviventes: Da cidade santa à corte celeste(Florianópolis: Insular, 1999). O primeiro livro de Márcia Janete Espig, A presença da Gesta Carolingea no movimento do Contestado (Canoas: Ed. Ulbra, 2004), que faz um importante estudo da cultura popular no planalto e dos sentidos do projeto sertanejo. Meu livro intitulado Lideranças do Contestado (Campinas: Ed. Unicamp, 2004) procura entender as origens e a formação das chefias caboclas. A tese de Rogério Rosa Rodrigues, Veredas de um grande sertão: a modernização do exército durante a Guerra do Contestado (tese de doutorado em História, UFRJ, 2008), que faz importante balanço da atividade dos militares sobre o conflito, inclusive dos primeiros “Historiadores de Farda”. O segundo livro de Márcia Espig, Personagens do Contestado: os turmeiros da estrada de ferro São Paulo-Rio Grande (Pelotas: Ed. UFPEL, 2011), sobre os operários que trabalharam na construção deta estrada, trata-se de importantes análises sobre a origem social e geográfica destes trabalhadores e do envolvimento desta ferrovia com o conflito. Mais recentemente temos a tese de Alexandre Karsburg, O eremita do novo mundo (tese de doutorado em História, UFRJ, 2012), que, embora não trate diretamente do conflito do Contestado, traz importantes novidades sobre a trajetória do primeiro monge, o italiano Giovani Maria de Agostini.
IHU On-Line – Quem são os descendentes dos Contestados? Qual a situação econômica, política e social deles, um século depois da Guerra?
Paulo Pinheiro Machado – As populações remanescentes dos redutos do Contestado vivem em situação de extrema pobreza. Os núcleos e municípios onde eles se encontram apresentam os Índices de Desenvolvimento Humano –IDH (índice que mensura educação, saúde e condições de vida, trabalho e moradia) mais baixos de Santa Catarina. Quando vivem no campo são peões ou agregados de grandes fazendeiros, raros são proprietários de lotes formalizados de terra. Hoje estão cada vez mais proletarizados e vivendo na periferia das grandes e médias cidades do estado. Boa parte da região onde viviam os sertanejos antes da guerra foi, ao longo de 1930 a 1950, objeto de ação de companhias particulares de colonização que, agindo de acordo com as autoridades públicas, lotearam antigas terras dos caboclos posseiros para descendentes de segunda e terceira geração de imigrantes europeus provenientes do Rio Grande do Sul.
Como potencializador dentro deste conjunto de problemas, ainda havia uma longa disputa de limites entre os dois estados. Os catarinenses reivindicavam, como suas divisas com o vizinho do norte, os rios Iguaçu e Negro. Os paranaenses consideravam que toda a região dos campos de Palmas, de União da Vitória até o rio Caçador e das saliências do Timbó, de Três Barras, Rio Negro, Itaiópolis e Papanduva, constituía parte de seu território. Os catarinenses já possuíam três sentenças do Supremo Tribunal Federal a seu favor (de 1904, 1909 e 1910), mas a execução destas decisões eram inviabilizadas por pressão política dos paranaenses.
IHU On-Line – Qual a influência e participação dos monges na Guerra do Contestado?
Paulo Pinheiro Machado – O profetismo popular praticado pelo monge João Maria de Agostini desde meados do século XIX no planalto criou um ambiente cultural de autonomia, um conjunto de práticas sociais e costumeiras do mundo caboclo, autonomia em relação ao Estado, aos proprietários e ao clero católico. João Maria era um rezador leigo, andarilho, que circulava num amplo território que ia de Sorocaba, em São Paulo, até Rio Pardo e Santa Maria, no Rio Grande do Sul. Seus caminhos eram os mesmos das tropas de muares, que uniam o sul ao centro do Brasil. A partir da década de 1860, este primeiro João Maria nunca mais foi visto. Na década de 1890 outros andarilhos irão assumir esta identidade e, em 1912, o próprio curandeiro José Maria, após a sua morte, terá sua memória associada, cada vez mais, à trajetória de João Maria. Para os caboclos o profeta é um santo, "São" João Maria. O profeta pregava uma vida de respeito ao próximo, aos animais e à natureza. Assinalava a existência de fontes de água (que logo a população passou a chamar de “águas santas” ou “águas do monge”) e recomendava a edificação de cruzeiros. Informava que haveria uma época em que o sol não nasceria por três dias e que só os verdadeiros penitentes se salvariam. No final do século XIX se identifica uma crescente aproximação da tradição de São João Maria com a tradição popular federalista. Não do federalismo formal de suas principais lideranças (como Gaspar Silveira Martins, Eliseu Guilherme da Silva ou Abdon Batista), mas de uma vertente popular do federalismo, que era animada por pequenas lideranças locais, que se baseava numa noção difusa de luta contra autoridades impostas de fora.
Ao longo de um extenso período não só no Contestado, mas em outras regiões do Sul brasileiro, ocorreramconcentrações camponesas em nome de João Maria, que foram objeto de ação repressiva da polícia e de forças militares, como a concentração de Santa Maria (no Campestre entre 1846 e 1849), no Rio Grande do Sul; oCanudinho de Lages (em Santa Catarina, em 1897), o movimento dos monges do Pinheirinho (Encantado, Rio Grande do Sul, 1902), o movimento dos Fabrícios e dos Palhamos (Concórdia, SC, 1924-25), o movimento dos monges barbudos (Soledade, RS, 1935-37) e o movimento do Timbó Grande, 1942 (Porto União, SC, 1942). Então, a ação dos monges é importante não só para o Contestado, mas também para todo o Planalto Meridional.
IHU On-Line – Qual a relação da Guerra do Contestado com o ingresso dos imigrantes europeus em Santa Catarina e Paraná?
Paulo Pinheiro Machado – Quando o governo federal destinou à Brazil Railway Company, empresa do magnata norte-americano Percival Farqhar, a concessão para a construção do último trecho da Estrada de Ferro São Paulo-Rio Grande, permitiu que esta empresa explorasse até 15 km de terras devolutas de cada lado do leito da estrada. Ao longo de quase 300 km do vale do Rio do Peixe muitas comunidades de caboclos foram enxotadas e ali foi instalada uma subsidiária da ferrovia, a Brazil Lumber and Colonization Company, responsável pela exploração das madeiras (araucárias, imbúias, ipês, etc.) e pelo loteamento e venda do território recebido como concessão para imigrantes europeus, muitos deslocados para auxiliar na construção da estrada de ferro. Então, esta chegada de imigrantes junto com a ferrovia criou forte reação entre os caboclos luso-brasileiros. Mas é também importante lembrar que muitos imigrantes (alemães, italianos, poloneses e ucranianos) aderiram ao movimento sertanejo, indo morar nas "cidades santas", vários por já estarem "acaboclados", aderindo ao universo cultural dos devotos de São João Maria.
IHU On-Line – Como vê o processo de europeização incentivado nas primeiras décadas da República? Os conflitos de terra no país derivam especificamente deste período?
Paulo Pinheiro Machado – Apesar de serem mais antigos, os conflitos de terras se intensificam neste período. Com a República, a Constituição de 1891 passou para os estados a capacidade de legislar sobre terras e colonização. Leis de terras estaduais são promulgadas no Paraná e em Santa Catarina, frequentemente apoiando os já grandes fazendeiros, viabilizando a legitimação de suas posses e o açambarcamento de extensas áreas públicas (como ervais nativos). Mas podemos ver a questão de terras no Contestado em três níveis diferentes: em primeiro lugar, é importante considerar que já existia um paulatino processo de concentração fundiária nas regiões de campos naturais e faxinais, como São Joaquim, Lages, Curitibanos e Campos Novos. Nestes municípios há um paulatino avanço de grandes estancieiros sobre a posse de pequenos lavradores, que faziam suas lavouras em matas e faxinais vizinhos às pastagens dos criadores. No início do século XX há um processo de açambarcamento das posses destes pequenos lavradores pelos grandes criadores. Nas margens dos rios do Peixe, Negro e Iguaçu médio ocorre o impacto já mencionado da construção da Estrada de Ferro São Paulo-Rio Grande, com a grilagem em grande escala realizada pelo Corpo de Segurança particular da Lumber, que expulsou deste território milhares de sitiantes e pequenos posseiros. Por fim, nas regiões contestadas entre Paraná e Santa Catarina havia muitos territórios com dupla titulação, em cartórios catarinenses e paranaenses. A instabilidade da questão de limites entre os estados facilitou a grilagem praticada em grande escala por Coronéis da Guarda Nacional do Paraná, sobre muitas terras habitadas por indígenas e caboclos. Assim agiam os Coronéis Juca Pimpão (de Palmas), Amazonas Marcondes (União da Vitória), Arthur de Paula (na região do Timbó), Fabrício Vieira (no Iguaçu médio), Leocádio Pacheco (em Três Barras) e Bley Neto (em Rio Negro). Mesmo depois da execução do acordo de limites, assinado por ambos os estados ao final da Guerra, em 1916, uma cláusula deste acordo consolidou a grilagem das terras contestadas por proprietários paranaenses, mesmo nos territórios que caíram sob jurisdição catarinense.
IHU On-Line – Por que a Guerra do Contestado foi pouco discutida e relembrada entre os catarinenses durante quatro décadas?
Paulo Pinheiro Machado – O conflito foi extremamente violento e traumático para muitas
comunidades do planalto. Além disso, como era governador na época o lageano Vidal Ramos, por todo um longo período onde este grupo oligárquico esteve no controle da máquina do Estado (nos governos de Nereu Ramos e seus partidários do PSD), o esquecimento foi uma política de estado. A outra oligarquia local, o grupo Konder-Bornhausen, fortemente representada na UDN, estava preocupada em construir uma imagem de europeização para o estado, o que não deixava espaço para a experiência da aventura cabocla. Mas, apesar deste grande desconhecimento público sobre o conflito, o movimento do Contestado possui uma extensa e copiosa literatura de cronistas militares, sociólogos e historiadores. No entanto, esta produção sempre ficou muito restrita a um pequeno grupo de pesquisadores especialistas. O Contestado começa a sair do esquecimento numa conjuntura específica, a redemocratização e a luta contra a Ditadura Militar nas décadas de 1970 e 1980. É neste contexto que precisamos entender a nova historiografia sobre este movimento, que o reviveu em grande medida ativada por um conjunto contemporâneo de movimentos sociais dos “de baixo”, dos sem-terras, dos atingidos pelas barragens e muitos outros.
IHU On-Line – Hoje, como o tema tem sido resgatado pela historiografia, e quais são as novidades para compreendermos melhor o que foi esse período?
Paulo Pinheiro Machado – Há uma nova geração de pesquisadores, inaugurada com o magistral livro de Duglas Teixeira Monteiro, Os errantes do novo século (São Paulo: Duas Cidades, 1974), que passou a afastar os antigos conceitos de fanatismo, irracionalidade e aberrações e começou a entender a linguagem e a cultura dos sertanejos rebeldes em seus próprios termos. Assim podemos considerar a bela obra de Marli Auras, Guerra do Contestado: a organização da Irmandade Cabocla (Florianópolis: Ed. UFSC, 1983), que faz um estudo sobre os laços internos dentro dos redutos. O trabalho de Ivone Gallo, O Contestado: o sonho do milênio igualitário (Campinas: Ed. Unicamp, 1999), que procurou entender o profetismo popular e a noção de apocalipse dos sertanejos. Delmir José Valentini faz um importante trabalho sobre a memória dos sertanejos sobreviventes: Da cidade santa à corte celeste(Florianópolis: Insular, 1999). O primeiro livro de Márcia Janete Espig, A presença da Gesta Carolingea no movimento do Contestado (Canoas: Ed. Ulbra, 2004), que faz um importante estudo da cultura popular no planalto e dos sentidos do projeto sertanejo. Meu livro intitulado Lideranças do Contestado (Campinas: Ed. Unicamp, 2004) procura entender as origens e a formação das chefias caboclas. A tese de Rogério Rosa Rodrigues, Veredas de um grande sertão: a modernização do exército durante a Guerra do Contestado (tese de doutorado em História, UFRJ, 2008), que faz importante balanço da atividade dos militares sobre o conflito, inclusive dos primeiros “Historiadores de Farda”. O segundo livro de Márcia Espig, Personagens do Contestado: os turmeiros da estrada de ferro São Paulo-Rio Grande (Pelotas: Ed. UFPEL, 2011), sobre os operários que trabalharam na construção deta estrada, trata-se de importantes análises sobre a origem social e geográfica destes trabalhadores e do envolvimento desta ferrovia com o conflito. Mais recentemente temos a tese de Alexandre Karsburg, O eremita do novo mundo (tese de doutorado em História, UFRJ, 2012), que, embora não trate diretamente do conflito do Contestado, traz importantes novidades sobre a trajetória do primeiro monge, o italiano Giovani Maria de Agostini.
IHU On-Line – Quem são os descendentes dos Contestados? Qual a situação econômica, política e social deles, um século depois da Guerra?
Paulo Pinheiro Machado – As populações remanescentes dos redutos do Contestado vivem em situação de extrema pobreza. Os núcleos e municípios onde eles se encontram apresentam os Índices de Desenvolvimento Humano –IDH (índice que mensura educação, saúde e condições de vida, trabalho e moradia) mais baixos de Santa Catarina. Quando vivem no campo são peões ou agregados de grandes fazendeiros, raros são proprietários de lotes formalizados de terra. Hoje estão cada vez mais proletarizados e vivendo na periferia das grandes e médias cidades do estado. Boa parte da região onde viviam os sertanejos antes da guerra foi, ao longo de 1930 a 1950, objeto de ação de companhias particulares de colonização que, agindo de acordo com as autoridades públicas, lotearam antigas terras dos caboclos posseiros para descendentes de segunda e terceira geração de imigrantes europeus provenientes do Rio Grande do Sul.
No Estado
de Santa Catarina, a atual luta pela terra une estes dois
grupos: os participantes dos assentamentos e acampamentos da reforma
agrária (descendentes de caboclos, remanescentes do movimento do
Contestado), e os colonos de origem europeia, que
perderam suas terras nas últimas décadas para bancos, comércio e
agroindústria, como o resultado de políticas agrícolas que
penalizam o campesinato como um todo.
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