Buscado no Gilson Sampaio
Via Brasil247
por JEAN WYLLYS
Diz-se que uma imagem vale mais que mil palavras, mas há palavras que mil imagens não traduzem: preconceito é uma delas (este artigo contém uma imagem forte)
Diz-se que uma
imagem vale mais que mil palavras, mas há palavras que mil imagens não
traduzem: preconceito é uma delas. Ao contrário: as imagens, sejam
quantas forem, podem reforçar aquilo a que se refere a palavra
preconceito. Esta palavra também não pode ser traduzida por números nem
estatísticas. Estes, porém, sempre atraem ou despertam palavras.
Ontem,
por exemplo, no rastro da divulgação, nos principais portais de
notícias, das estatísticas do Grupo Gay da Bahia acerca dos homicídios
motivados por homofobia (o conjunto dos atos – inclusive dos atos
linguísticos - apoiados no preconceito social anti-homossexual, um dos
muitos preconceitos socialmente partilhados), vieram muitas palavras: a
palavra dos leitores da notícia expressa em comentários publicados logo
abaixo da mesma; a palavra dos intelectuais conservadores; as palavras
dos políticos reacionários à esquerda e, principalmente, à direita; a
palavra dos fundamentalistas cristãos católicos e evangélicos; e até a
palavra de um famoso humorista que se diz "politicamente incorreto", mas
que, ao fim e ao cabo, apenas põe seu "humor" a serviço da correção e
da ortopedia moral que há séculos constrangem e estigmatizam, com
violência verbal e/ou física, aqueles "desviantes" da ordem do
macho-adulto-branco-heterossexual-e-cristão (ou seja, as mulheres, os
negros, os judeus, os indígenas, o povo-de-santo, os gays, as lésbicas,
as travestis e transexuais e as pessoas com deficiências; principalmente
os mais pobres dentre esses).
Pode-se dizer que
as palavras deles (dos leitores da notícia, dos intelectuais
conservadores, dos políticos reacionários, dos fundamentalistas cristãos
e do humorista) são quase as mesmas - com variações que dependem do
grau de instrução e da posição social que cada um ocupa – e têm o mesmo
objetivo: silenciar LGBTs e reprimir sua organização política por meio
de interpretações deliberadamente equivocadas das estatísticas
divulgadas e da conseguinte desqualificação das mesmas.
Não
repetirei aqui todos "argumentos" dessa gente – até porque seu
preconceito ou má fé não precisa de mais espaço do que já tem! – mas vou
destacar um que é recorrente: a estatística de 336 homicídios em 2012
motivados por homofobia (numa proporção de um homossexual morto a cada
26 horas) seria irrelevante já que, no mesmo período, a taxa de
homicídios em geral é de mais 50 mil. Ora, os porta-vozes desse
"argumento" se não agem de má fé são limitados mesmo. As estatísticas
não dizem apenas que 336 homossexuais morreram ano passado. As
estatísticas dizem que 336 homicídios motivados por homofobia foram
perpetrados em 2012 (o que representa um aumento de 26% em relação a
2011). Ou seja, 336 seres humanos foram assassinados em decorrência de
sua orientação sexual ou identidade de gênero; foram mortos apenas
porque eram gays, lésbicas, travestis e transexuais ou em circunstâncias
em que sua orientação sexual e/ou identidade de gênero
contribuiu/contribuíram decisivamente para o homicídio. Esses crimes não
podem, portanto, ser dissolvidos nas taxas de homicídios em geral cujas
motivações não são a orientação sexual nem a identidade de gênero.
Não
conheço até o momento nenhum caso de homem que tenha sido cruelmente
assassinado porque era heterossexual, ou seja, apenas pelo fato de que
gostava de "comer mulher"; tampouco conheço um caso em que um homem
tenha sido morto a pauladas por estar "vestido como homem". Mas posso
citar centenas de casos de homens e mulheres que foram mortos apenas
pelo fato de gostarem de transar com pessoas do mesmo sexo; e posso
citar milhares de caso de pessoas que foram mortas apenas porque estavam
vestidas de acordo com sua identidade de gênero. Esses crimes são
considerados crimes de ódio porque vitima toda a comunidade à que
pertence suas vítimas. Aliás, o fato de se pertencer a essa comunidade é
a razão última do crime. Ora, será preciso desenhar para que essa gente
entenda o que querem dizer as estatísticas?! Se uma imagem vale mais
que mil palavras, talvez eu tente me aventurar pelo desenho pra ver se
consigo sensibilizar esses caras (na hipótese de algum deles ser apenas
equivocado e não estar agindo de má fé)...
E,
por falar em imagem, a que ilustra este texto quer valer mais que as mil
palavras não ditas pelo morto retratado. Perdoem-me os mais sensíveis,
mas, numa sociedade devota da imagem como a nossa, "educada" pela
televisão e pela publicidade, a foto chocante de um homicídio brutal
motivado por homofobia talvez sensibilize mais as pessoas do que todas
as palavras já ditas até aqui...
Travesti assassinada em Simões Filho, Bahia
Por
mais que eu me esforce, não conseguirei expressar as palavras não ditas
pelos mortos... Aquelas palavras que sucumbem aos números frios das
estatísticas e à tagarelice dos canalhas insensíveis à desgraça alheia;
palavras que expressariam o horror diante da crueldade que põe fim às
vidas e a dor insuportável dos que perderam seus entes queridos para a
violência.
Quem sabe se com essa imagem
principalmente o humorista "politicamente incorreto" e sua claque cruel e
sem pensamento mas de riso frouxo não percebam que não se pode fazer
piada da dor dos outros? Sou um homem esperançado! Mas sou também um
ativista: não fico apenas à espera de dias melhores, atuo para que eles
cheguem logo; por isso mesmo, questionei e questiono os insensíveis e
opressores, mesmo que isso implique em insultos impublicáveis e em
injunções ao silêncio do tipo "você tem que trabalhar para o povo
brasileiro e não para a sua classe" – injunções que nada mais são do que
frutos da ignorância sobre o meu trabalho como parlamentar; da preguiça
de se informar mais e melhor; da despolitização em geral e da falta de
raciocínio lógico, uma vez que a minha "classe" pertence ao povo
brasileiro.
De mais a mais, não vejo ninguém
reclamar dos parlamentares ruralistas nem dos evangélicos por defenderem
apenas seus interesses em casas legislativas; logo, ainda que eu
atuasse para defender só os interesses de LGBTs (o que não é verdade;
qualquer pesquisa básica mostrará isso), ainda assim eu estaria honrando
o mandato que conquistei no jogo democrático. Não há insulto ou
injunção ao silêncio que me detenha ou que me impeça de trazer, à luz, a
palavra dos mortos!
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