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Com nome da ave de rapina dos Andes, a operação clandestina que uniu ditaduras militares do Cone Sul para perseguir, capturar e até eliminar dissidentes políticos além das fronteiras foi criada pelo Brasil. Conheça em detalhes a ação que deflagrou a rede ilegal de colaboração – o sequestro do coronel Jefferson Cardim de Alencar Osório em Buenos Aires e sua volta forçada para o
Rio de Janeiro
Com nome da ave de rapina dos Andes, a operação clandestina que uniu ditaduras militares do Cone Sul para perseguir, capturar e até eliminar dissidentes políticos além das fronteiras foi criada pelo Brasil. Conheça em detalhes a ação que deflagrou a rede ilegal de colaboração – o sequestro do coronel Jefferson Cardim de Alencar Osório em Buenos Aires e sua volta forçada para o
Rio de Janeiro
A Operação Condor foi criada no Brasil. Uma colaboração clandestina
entre os países do Cone Sul, sem reconhecimento de soberanias
diplomáticas e ignorando leis, documentos, fronteiras e pedidos
oficiais; levada a cabo para capturar e destruir, com violência,
fugitivos políticos ou exilados. Desde o início o Brasil agiu como ator
principal.
O macabro sucesso das primeiras atividades dessa colaboração entre os
governos tornou a operação mais sofisticada. Formou-se uma rede
tentacular de práticas ilegais e subversivas, grupos paramilitares e
clandestinos que abusavam do poder, praticando crimes, sequestros,
torturas, prisões, assassinatos e terrorismo oficial de Estado.
Em novembro de 1975, na Academia de Guerra do Exército em Santiago do
Chile, realizou-se uma reunião que contou com representantes da
Argentina, Bolívia, Paraguai, Uruguai e do próprio Chile. O Brasil
estava lá, mas seus dois representantes receberam ordens de se colocarem
apenas como observadores. Eram eles os agentes do Centro de
Informações do Exército Flávio de Marco e Thaumaturgo Sotero Vaz. Ali, a
Operação Condor ganhou nome, certidão de nascimento, pais e padrinhos.
Existem, no entanto, provas de que essa integração entre os governos –
ou seus subterrâneos, que se preparavam para assumir o comando por
meio de golpes – já acontecia cinco anos antes da famosa reunião.
Uma dessas provas foi trazida a público pelo presidente do Movimento de
Justiça e Direitos Humanos, Jair Krischke: o Informe 338, de 19 de
dezembro de 1970, do Adido do Exército à Embaixada do Brasil na
Argentina, protocolado na Agência Central do Serviço Nacional de
Informações com o número 001061, em 20 de janeiro de 1971. Esse
documento relata o sequestro, em Buenos Aires, de um dos militares
brasileiros mais odiados pela velha guarda da ditadura: o coronel
Jefferson Cardim de Alencar Osório. Mostra também como foi montado todo o
esquema para trazê-lo de volta ao Brasil.
A possibilidade de que a prisão do coronel Jefferson Cardim fosse, de
fato, o início da operação já havia sido levantada pelos jornalistas
Darío Pignott, do jornal argentino Página 12, que localizou o Informe 338; e Roger Rodríguez, da revista uruguaia Caras y Caretas.
Brasileiros teve acesso aos diários do coronel e traz agora os
detalhes, atores, diálogos e segredos do primeiro ato da Operação
Condor.
Sexta-feira, 11 de dezembro de 1970. Para o coronel Jefferson, seu
último dia de exílio no Uruguai. Ele aceitara o convite que o então
candidato à presidência do Chile, Salvador Allende, lhe fizera quando se
encontraram em Havana. O chileno queria que Jefferson trabalhasse em
seu governo, no cargo de assessor militar para a Associação
Latino-Americana de Livre-Comércio (ALALC).
Ao contrário de suas viagens anteriores, dessa vez Jefferson não iria
de avião. Sairia de Montevidéu até Colônia do Sacramento e atravessaria
o rio da Prata até Buenos Aires. Seguiria para Mendoza. Manteria
contatos políticos, e de lá alcançaria a capital chilena. Faria o
trajeto junto com seu filho mais novo – que tinha 18 anos e também se
chamava Jefferson, mas era tratado como Jeffinho pela família –, e de
Eduardo Lopetegui, de 20 anos, um sobrinho uruguaio que aproveitava a
carona do tio para conhecer seus parentes no Chile. Essa seria a
primeira parte da mudança. Depois das festas, sua esposa, Rosa, a filha
Sonia e o filho mais velho, Roberto, também se mudariam para Santiago.
Às nove da manhã, um Aero Willys vermelho, ano 1964, chapa 2346 de
Porto Alegre; com Jefferson, Jeffinho e Eduardo sentados no banco da
frente, deixa a casa da Calle Caraguatay, em direção à Ruta 1, a estrada
de 177 quilômetros que liga Montevidéu a Colônia do Sacramento.
Constantemente monitorado por agentes brasileiros e uruguaios, Jefferson
não estranha quando vê, no retrovisor, uma viatura da polícia
uruguaia. Percebe que está sendo seguido, mas, acostumado a ser vigiado
constantemente, continua despreocupado. Seus vários documentos estavam
em ordem. Cumprira toda a burocracia exigida pelos dois países. Além
disso, fizera a mesma viagem havia quatro meses, de avião, sem sofrer
qualquer incômodo.
Agente da Cia
Por volta do meio-dia, chegam ao porto de Colônia do Sacramento, o ponto
uruguaio mais próximo de Buenos Aires. Para alcançar a capital
argentina, bastava atravessar o rio da Prata em um ferry-boat da
Companhia Argentina de Navegação Dodero. Uma hora depois, eles embarcam.
Quase no mesmo momento, o adido militar brasileiro na capital
argentina, o coronel de Cavalaria Nilo Caneppa da Silva, recebe a
confirmação de que Jefferson e mais duas pessoas estavam no ferry-boat. A
travessia durava cerca de três horas. Caneppa pede imediatamente a
cooperação da Direção de Coordenação Federal, órgão de inteligência da
Polícia Federal argentina. Repassa, por telefone, todos os detalhes que
permitiriam a identificação e prisão do grupo ao subcomissário
argentino. Faz mais. Ele mesmo se dirige para o porto, a fim de conferir
a ação dos colegas.
Assim que o ferry-boat alcança águas argentinas, os alto-falantes da
embarcação chamam os passageiros, que devem formar, no salão principal
do convés, uma fila de identificação para imigração. É lá que uma
curiosa figura chama a atenção de Jefferson: um homem baixo, magro, com
cabelos loiros que já se tornavam grisalhos e um rosto bem vermelho.
Destaca-se também pela elegância, rara de se ver entre os demais
passageiros. Não bastasse, ainda fuma um estranho cachimbo com uma haste
de dez centímetros, bem fina, que terminava num fornilho pequeno.
Depois de passarem pela imigração, Jefferson, Jeffinho e Eduardo sobem
para o convés superior. Carregam garrafas de uísque, cigarros e bombons
comprados na loja do duty free da embarcação. Enquanto olham
para a cidade que surgia no horizonte, um homem se aproxima e tenta, em
espanhol com carregado sotaque uruguaio, puxar conversa:
– O senhor é brasileiro? São seus filhos?
Jefferson queria tudo, menos fazer um amigo naquele momento. Já está
desconfiado do homem do cachimbo e o máximo que se permite são respostas
monossilábicas. Mas o uruguaio não desiste. A “quase conversa” é
interrompida pela passagem do homem do cachimbo. Jefferson desvia o
olhar para acompanhá-lo. O uruguaio percebe… e se empolga:
– Esse aí é um argentino que é agente da Interpol e que, eu acho,
também deve trabalhar para a CIA. Ele é destacado para atuar neste
ferry.
Se o uruguaio queria atenção, conseguiu. Entusiasmado com o visível interesse de Jefferson, continua:
– Sei disso porque sou um policial aposentado e já fui chamado várias vezes pra trabalhar em Colônia.
São quase quatro da tarde. O ferry-boat se aproxima do cais de Buenos
Aires. Os passageiros que foram de automóvel se preparam para o
desembarque. Jefferson havia estacionado o seu Aero Willys atrás de uma
caminhonete Simca, com placa de Curitiba, ocupada por um jovem casal.
A prancha do ferry se liga ao cais. Dois funcionários fazem a
amarração. Começa o desembarque. O Simca segue em frente. Quando o Aero
Willys ultrapassa a prancha, dois homens bem vestidos sinalizam para
que Jefferson estacione ao lado da plataforma, perto do edifício da
alfândega. Dois outros agentes saltam de um carro preto com chapa
oficial do governo argentino. Ambos armados com Colt 45:
– É uma operação de rotina. Houve uma denúncia de transporte de drogas.
Do ferry-boat, surgem mais cinco policiais, que os acompanhavam desde
Colonia. A rua fica tomada por carros da polícia argentina.
O oficial que parece liderar a ação abre a porta do Aero Willys e se
dirige para Jeffinho e Eduardo, apontando para o carro preto:
– Passem pra lá.
Ele senta ao lado de Jefferson, que protesta. O agente argentino, irritado, aponta impacientemente sua identificação:
– Sou agente da Polícia Federal argentina. Meu chefe é o
superintendente da Coordenação Federal e me deu ordem para levá-lo até
ele.
Jefferson resiste:
– Sou um coronel reformado do Exército brasileiro. Estou indo para o
Chile com meu filho e meu sobrinho. Minha documentação está em ordem.
O policial se torna agressivo:
– Não me interessa. Estou cumprindo ordem. Tenho de levá-lo. Não me interessa o motivo. E vou levá-lo.
Nilo Caneppa está conferindo a prisão e se mantém afastado do local de
desembarque o suficiente para não ser visto. De lá, percebe que as
informações que recebera estavam corretas. Bem escondido, observa toda a
ação que ocorre com os dois carros estacionados ao lado do prédio
aduana. O policial ordena que Jefferson deixe o Aero Willys e o
acompanhe até a repartição de carros estrangeiros, localizada no térreo
do prédio. Jeffinho e Eduardo continuam dentro do carro preto, vigiados
por três outros policiais. Enquanto Jefferson preenche as fichas que
lhe deram, o policial faz um telefonema. Eles voltam para o Aero
Willys. Jefferson assume a direção, o policial ao lado, apontando a sua
pistola 45:
– Siga o carro preto.
O adido militar brasileiro fica um pouco decepcionado com a atitude dos
colegas portenhos. Tinha esperança de que eles seguiriam Jefferson
para levantar os contatos que iria manter.
O Senhor quer um mate?
Durante o trajeto, o policial aproveita para revistar o carro. Encontra o
revólver de Jefferson – um calibre 22 feito no Brasil pela Rossi &
Irmãos – e confere as anotações que estão em uma pasta de couro preta.
Também verifica o estofamento. Na avenida General San Martin, o
trânsito para. Ele ordena então que o carro preto acione a sirene.
Os três prisioneiros são levados para a Coordenação Federal, um enorme
prédio cinza que ocupa um quarteirão na avenida Belgrano. É quase verão
na Argentina. Seis da tarde. O sol ainda brilha forte.
Os carros entram na garagem subterrânea e os presos são levados, aos
trancos, para o último andar, ao gabinete do coronel Jorge Esteban
Cáceres Monié, superintendente da Coordenação Federal, órgão de
inteligência da Polícia Federal argentina. Jefferson se adianta e tenta
tirar seus documentos da pasta, que lhe é arrancada das mãos pelo
coronel. Queria mostrar o seu “título de viagem”, válido como
passaporte, que recebera na Argélia – país que o protegia oficialmente
como refugié politique. Era um documento com foto, redigido em
árabe e francês, que lhe garantia transitar por todos os países que
mantivessem relações diplomáticas com a Argélia. O documento também
estendia ao portador amparo internacional, assegurando o seu direito de
recorrer à representação diplomática argelina. Jefferson também fica
sem o porta-notas em que levava 500 dólares. Os passaportes de seu
filho e de seu sobrinho também são ignorados pelos policiais. Eduardo
então mostra sua carteira militar e se identifica:
– Sou funcionário do Estado-Maior das Forças Armadas do Uruguai, e
filho do coronel Guillermo Lopetegui do Exército do Uruguai. Estava
apenas viajando com meu tio e meu primo a passeio.
Cáceres parece não acreditar nessa história:
– Essa carteira militar é falsa.
Os policiais já retiram os cintos, anéis e cadarços dos três. O superintendente prossegue com a farsa:
– Onde está a droga? Vocês estão fazendo tráfico?
O teatro do motivo da prisão dura pouco. Alguns minutos depois,
Jefferson é levado para uma sala por um agente que mais parecia um
funcionário público à beira da aposentadoria. A tentativa de diálogo com
Jefferson também confirmou que ele não fazia ideia do que estava
acontecendo:
– Por que o senhor está preso?
Jefferson murmura algo. O funcionário vai mais longe:
– O senhor quer um café?
Jefferson volta a murmurar, recusando a oferta.
Meia-hora se passa. Jeffinho e Eduardo são levados encapuzados,
descalços e algemados para o subsolo 4 (como o nome aponta, quatro
andares abaixo do nível da rua).
Pouco depois é a vez de Jefferson. Dois policiais que participaram da
captura entram na sala. Cada um o segura em um braço. Vão até o
elevador. Ele não está de capuz e pode ver que foram para o subsolo.
Passam por um pequeno túnel, mal iluminado e com paredes emboloradas. Ar
quente e sufocante. O lugar fede a mofo. O caminho termina num grande
portão de ferro vigiado por um guarda. Há silêncio. Assim que percebe a
aproximação dos agentes, o carcereiro pega a chave e abre o portão.
Jefferson e os policiais descem três degraus, andam cerca de três metros
para subir novamente mais três degraus. Passam por outro portão de
ferro – já aberto por outro guarda que aparenta ter 40 anos e é tão
gordo que seu corpo chega a balançar enquanto anda.
Estão na galeria das prisões. O lugar é mais escuro que o corredor. O fedor é ainda pior. São duas alas: à direita de quem entra há um muro baixo, que serve para isolar os vasos sanitários imundos e quebrados, de onde escorrem líquidos escuros que se espalham pelo chão. Alguns metros à frente, ainda à direita, ficam as celas coletivas. Em uma delas apenas um médico que acreditavam ser paraguaio. Em outra, dois traficantes de drogas. Separadas por grades, as celas permitem que haja comunicação entre os presos. Do lado esquerdo, há cinco solitárias – pequenos calabouços geminados, com grossas portas de madeira e fechaduras de ferro que eram travadas com chaves enormes. Em cada porta, um postigo que era aberto de vez em quando para o guarda pegar o preso de surpresa e verificar o que ele estava fazendo. Não havia muito o que fazer em uma cela de menos de dois metros quadrados, mas muitos guardas sentiam um inexplicável prazer ao abrir aquela pequena janela para flagrar os prisioneiros. Jefferson é jogado na primeira solitária. Porta fechada. Escuridão. Descalço e ainda algemado, Jefferson usa os pés para reconhecer a cela. Encontra um colchonete sujo, fedido e rasgado. Não pode deitar completamente porque o espaço entre as paredes é menor do que ele. Amarra seu lenço ao rosto para tentar diminuir o mau cheiro que contamina o ar. Poucos minutos se passam e o postigo é aberto. O carcereiro gordo quer notícias:
– Você é argentino? Por que está preso?
Jefferson não perde a oportunidade.
– Sou um coronel aposentado do Exército brasileiro. Fui preso ao
desembarcar em Buenos Aires, quando vinha de Montevidéu, junto com meu
filho e meu sobrinho.
O homem se espanta com o relato e tenta consolar Jefferson:
– O senhor quer um mate ou uma bolacha?
Jefferson recusa novamente. Só resta a escuridão. Não pensa em si,
afinal já eram mais de 30 anos de prisões e lutas contra os golpes
dentro das Forças Armadas. Estava acostumado. Mas dessa vez levara
consigo seu filho e seu sobrinho. Tinha certeza de que o pior ainda não
acontecera. Doía também saber que o único crime deles era estar em sua
companhia. Estava inconformado por cometer um erro tão grave. Como já
havia passado quatro dias em Buenos Aires em sua viagem anterior,
baixara a guarda. Culpava-se agora por seu excesso de relaxamento,
afinal desdenhara da força policial de um país que vivia há quatro anos
sob uma ditadura intimamente ligada aos militares. Desconfiara do
homenzinho do cachimbo, mas nem imaginava que vivia, como vítima, um
momento histórico e trágico da América do Sul. Três nações… três
aparelhos de repressão diferentes que se uniam, na clandestinidade, para
realizar uma prisão.
A essa altura, Nilo Caneppa já havia regressado à embaixada para
receber o telefonema do subcomissário da Polícia Federal argentina em
que seria “informado” da prisão, exatamente como presenciara. O
subcomissário mostra serviço:
– Há muita documentação com eles que vale ser vista. O grupo pretendia
seguir para Mendoza e se encontrar com um médico peronista e de lá
seguir para o Chile. Essa informação parece ser verdadeira, dada a
quantidade de bagagem que levam.
Em seguida, vem o convite que coloca de cabeça para baixo a supremacia do Estado argentino:
– O senhor não quer vir até a Polícia Federal para tomar conhecimento de mais detalhes?
Vela derretida
Caneppa aceita e faz mais. Convida o tenente-coronel aviador Leuzinger
Marques Lima, adido da Aeronáutica na embaixada brasileira em Montevidéu
para acompanhá-lo. No Informe 388, a presença, em Buenos Aires, do
adido de Montevidéu é justificada por uma coincidência: Leuzinger estava
na capital para participar de uma cerimônia da Força Aérea da
Argentina. Porém havia mais coincidências: Leuzinger era o responsável
por coordenar a vigilância de Jefferson na capital uruguaia e tinha um
currículo apreciado pela ditadura brasileira. Entre outras façanhas,
roubara um avião para participar da rebelião de Aragarças que desejava
derrubar o governo de Juscelino Kubitschek.
Na solitária. O silêncio cortante é interrompido pelo barulho da
fechadura. Passos fortes e vozes que se misturam. Depois… novamente o
silêncio. Mais algumas horas ou minutos em que nada acontece. Até o
temor se tornar real. Fechaduras e dobradiças abertas. Jefferson
reconhece os gritos. É seu filho. Em sua cabeça já há a certeza de que
ele vai ser torturado. Os gritos ficam cada vez mais longe até
desaparecerem de vez.
Levado para uma sala isolada, deitado em uma mesa de mármore, Jeffinho
ouve muitas perguntas. Os torturadores não param de gritar. Querem
saber sobre o que iam fazer no Chile. Com quem seu pai se encontrou no
México e em Cuba. Os nomes dos integrantes dos Tupamaros e dos
Montoneros com quem mantiveram contato. Com quem ele se comunicava no
Brasil. Começam as pancadas mais violentas. E os choques elétricos.
– Habla! Habla!
Perguntam também sobre o sequestro do cônsul brasileiro em Montevidéu,
Aloysio Gomide. A cada “não sei”… “não conheço”… uma nova sessão de
tortura.
– Habla! Habla!
Os berros prosseguem. As respostas evasivas irritam os torturadores.
Obrigam-no, a socos e pontapés, a deitar de bruços. Pingam cera de vela
derretida e quente em seu ânus, aberto com um aparelho parecido com um
fórceps.
– Habla! Habla!
É hora da troca. Da sua cela, Jefferson ouve passos. E ouve ou pensa
ouvir um choro de dor. Porta aberta. Jeffinho é jogado dentro de seu
calabouço. Outra porta aberta. Novos gritos. Chega a vez de Eduardo. A
rotina do terror: os passos, os gritos que somem. O silêncio. Os
minutos. Os segundos. Os passos que arrastam mais uma vítima
desacordada. A dobradiça. O prisioneiro largado. A porta que se fecha. A
portinhola que se abre. A frase cínica e irônica:
– Meu chefe quer falar com você.
Jefferson sai em silêncio de sua cela. É levado para uma sala onde mais
três homens o aguardavam. Um deles participou da prisão no porto. É
ele quem retira suas algemas. O outro começa:
– Diga o nome dos líderes peronistas a quem você é ligado.
– Não conheço nenhum líder peronista.
Vem um forte soco no rosto. Agarrado pelos agentes, toda sua roupa é
tirada. Jogam-no deitado na mesma mesa de mármore pela qual passaram
Jeffinho e Eduardo. Amarram suas mãos aos pés, o que força os joelhos a
ficarem flexionados. No rosto, uma mordaça de pano e uma venda bem
apertada. Um dos homens ainda se debruça sobre a cabeça de Jefferson e
com as mãos força sua testa contra a mesa. Aproxima-se um quarto homem
segurando uma caixa de metal, a última imagem que Jefferson pode
registrar antes de ser vendado. Sente choques elétricos nos pés; depois,
na canela; nos joelhos, nas coxas. A dor lenta com ritmo e métrica.
Depois, os choques passam para os testículos e o pênis. Jefferson grita
de dor, mas a mordaça transforma seus urros em gemidos. Seu corpo se
retrai com tanta força que, mesmo amarrado, mesmo deitado, ainda havia
quatro mãos o segurando. As reações aos choques foram diminuindo. Não
que conseguisse mais resistência, é que estava tão fraco que ficara à
beira de um desmaio. Sente então que um estetoscópio é colocado sobre
seu peito. Talvez um médico estivesse checando suas condições. A
primeira sessão de la Picaba, como o choque elétrico era conhecido na gíria daqueles torturadores, termina.
Livro com dedicatória
O alívio com a pausa transforma aqueles poucos minutos de descanso em uma eternidade. Mas, a um novo sinal do médico, la Picaba
recomeça. O corpo de Jefferson encontra forças para se retesar a cada
novo choque. A reação segue forte porque as quatro mãos continuam
empurrando as suas pernas e cabeça contra a mesa.
Uma pequena interrupção. Os policiais viram o corpo de Jefferson, que
continua vendado. Sua barriga agora está em contato com a mesa. Ele
sente um líquido quente escorrendo em suas nádegas. Os torturadores
repetem a crueldade e derramam cera de vela em seu ânus.
Arrancado da maca. Levado para outra sala. Aguarda em pé. Mesmo se
quisesse, não conseguiria se sentar. Ainda grogue dos choques, passa por
um novo interrogatório:
– Com quem você vai se encontrar em Mendoza?
– Com ninguém.
– Quem é esse doutor Navillat? E Redento Basso?
Os agentes encontraram esses nomes em um livro de medicina
psicanalítica na pasta de couro de Jefferson. Na obra havia uma
dedicatória do uruguaio Navillat para o argentino Basso. Para os
torturadores ali havia bem mais que um livro:
– Essa dedicatória é uma senha? Qual a ligação do movimento subversivo
peronista daquela fronteira com suas ligações comunistas? Diga o que
sabe ou amanhã tem mais.
– Não há nada político nessa dedicatória. Apenas um livro que um médico mandou para outro.
Os policiais não acreditam, mas reagem sem violência física. Voltam a ameaçar aos gritos:
– Cínico! Mentiroso! Se continuar negando, amanhã tem mais!
O silêncio de Jefferson sobre os dois médicos teria pouco valor. A
repressão argentina conhecia os nomes. O uruguaio Mario Navillat era um
dos melhores médicos do Uruguai e militante da esquerda revolucionária.
Redento Basso, um argentino de Mendoza que era o contato de Jefferson,
ajudava os exilados brasileiros a chegar até o Chile.
De volta à solitária. Escuridão e um alívio: poder deitar encolhido naquele calabouço fedido, sobre um colchão imundo.
RAÍZES AUSTRÍACAS, TRAJETÓRIA NACIONALISTA |
Um dos militares que mais se identificavam
com a corrente nacionalista do Exército poderia ter um sobrenome bem
estranho aos brasileiros. Jefferson Cardim de Alencar Osório era filho
da poetisa e professora Corina Cardim e do capitão de corveta da
Marinha Roberto Alencar Osório, cujo nome verdadeiro era Robert Ernest
Hoomenark. Os pais de Robert eram austríacos e fugiram dos conflitos
que estouravam na Europa no século 19. Enquanto cursava a Escola Naval,
Robert teve seu sobrenome alterado para Alencar Osório – em homenagem a
José de Alencar e ao general Osório. A sugestão da mudança veio do
padrinho do menino na Marinha, o almirante Santa Rosa, que temia uma
futura perseguição a Robert por causa de sua origem.Jefferson
nasceu no Rio de Janeiro em 1912 e sentou praça na Escola Militar do
Realengo com 18 anos. A partir daí, fosse qual fosse o vento que
soprasse no comando do país, manteria suas posições nacionalistas.
Pagaria o preço. Em 1935, filiou-se à
Aliança Nacional Libertadora, uma frente política antifascista. No
começo da Segunda Guerra Mundial, enquanto Getulio Vargas flertava com o
nazi-fascismo, Jefferson manifestava-se abertamente a favor dos
aliados. Considerava-se um marxista-leninista, mas nem por isso deixava
de defender ideias comuns aos norte-americanos. Participou ativamente
da Sociedade dos Amigos da América – criada pelo general Manuel Rabelo e
pelo ministro Osvaldo Aranha –, que combatia o nazi-fascismo e
incentivava a participação brasileira ao lado das Forças Aliadas.
Jefferson se tornou um dos maiores incentivadores da Sociedade no Rio
Grande do Sul. Enquanto servia no 6o Regimento de Artilharia Montada em
Santa Maria da Boca do Monte, fundou um diretório local. Um vespeiro
em um lugar lotado de descendentes e simpatizantes da Alemanha. Acabou
preso depois de uma reunião pública em que fez um discurso contra o
Estado Novo.
Transferido para a cidade gaúcha de Cruz
Alta em 1947, voltou a ser preso um ano depois. Dessa vez por viajar a
Montevidéu para se casar com a uruguaia Rosa Hortensia del Carmen
Lopetegui Maggia de Alencar Osorio. Era o seu segundo matrimônio.
Jefferson casou pela primeira vez com Adela Maggia, que tinha uma filha
e era separada de um oficial do Exército uruguaio, o que foi
considerado uma afronta ao espírito de corpo da caserna. A segunda
esposa de Jefferson, Rosa, era justamente a filha de Adela, que falecera
cinco anos antes. Durante esse período, Rosa viveu com o pai e só
reencontrou Jefferson quando ele foi transferido para Cruz Alta. Mesmo
assim, os inimigos não deixariam por menos. Assim que chegou ao Brasil,
Rosa, então com 19 anos, tornou-se alvo. Acusada de ser comunista, era
obrigada diariamente a comparecer à delegacia local. Sua família foi
investigada detalhadamente pelo adido militar do Brasil no Uruguai, o
então major Ernesto Geisel. Nada foi encontrado contra ela, mas
Jefferson não perdoaria Geisel.
Oito anos depois, na patente de
tenente-coronel, Jefferson foi transferido para Quitaúna, em São Paulo,
como subcomandante do 2o Regimento Antiaéreo. Quem era o comandante? O
então coronel Ernesto Geisel. Nas histórias da caserna, “Jefferson x
Geisel” se tornou um clássico que marcou época. Eram simetricamente
opostos. Rasgando a legislação militar, o direitista Geisel negou uma
casa ao esquerdista Jefferson na Vila Militar, dispensou-o das reuniões,
das aulas dos oficiais e do Conselho de Administração. Humilhado,
Jefferson era um fantasma no regimento.
No dia em que comemorava um ano no comando,
Geisel viveu a maior tragédia de sua vida. Seu filho, Orlando Geisel
Sobrinho, ao atravessar de bicicleta a linha férrea – algo comum entre
os filhos dos oficiais – foi atingido por um trem. O garoto de 16 anos
morreu na hora. Jefferson estava preso naquele dia. Continuou preso.
Geisel deixou Quitaúna para nunca mais voltar, e sem lhe passar o
comando.
Em 1960, Jefferson participou da campanha
derrotada do marechal Henrique Teixeira Lott à presidência. No ano
seguinte, tentando evitar a prisão do marechal – que defendera a posse
do vice João Goulart durante a crise da renúncia de Jânio Quadros –,
foi mais uma vez preso.
Estava sem função quando o conciliador
Jango optou por tirá-lo do país e nomeá-lo diretor-técnico do Lóide
Brasileiro, em Montevidéu. E lá estava em primeiro de abril de 1964. No
dia seguinte ao Golpe, já se encontrava em Porto Alegre pronto para
lutar pela resistência… que nunca veio. Os inimigos no poder: Jefferson
foi transferido para a reserva pelo Ato Institucional no 1 e teve seus
direitos políticos cassados. Jamais aceitaria essa situação.
Passou um ano inconformado, vivendo de suas
economias. Não sossegava. A CIA também não. E o vigiava atentamente.
Um telegrama da agência norte-americana, enviado em outubro, já
alertava para um plano que não saía da cabeça de Jefferson: invadir o
Brasil antes do primeiro aniversário do golpe. Dois meses antes, seu
filho Jeffinho fora preso no Rio e levado para o prédio do DOPS
(Departamento de Ordem Política e Social) na rua da Relação para ser
interrogado. Tinha 11 anos de idade.
Jefferson sentia o dever de marcar posição.
E fez a primeira ação de força contra o governo militar. Tornou-se o
líder da Guerrilha de Três Passos. Uma guerrilha brasileira, cheia de
improvisos, gestos heroicos, situações cômicas, traições, dor,
tragédias e lances inacreditáveis.
As reuniões sobre a invasão foram feitas na
capital uruguaia. Muita gente com o pé atrás. E Jefferson determinado.
Seu objetivo estava longe de ser modesto. Pretendia que a guerrilha
detonasse um levante popular que derrubasse o governo Castello Branco.
Somente isso.
Depois de pedir ajuda a muitos exilados,
conseguiu levantar mil dólares para a operação, (500 doados por Darcy
Ribeiro; 300 por Ivo Magalhães, ex-prefeito de Brasília. O restante
veio dele mesmo). Em uma loja de Montevidéu, comprou três armas tchecas
semiautomáticas, três mil balas e dois alicates. Gastou pouco mais de
300 dólares. O que sobrou seria usado durante a Operação.
No dia 19 de março de 1965, Jefferson e o
ex-sargento da Brigada Militar gaúcha Alberi Vieira dos Santos,
iniciaram a coluna a partir da cidade uruguaia de Rivera – onde
chegaram… de táxi… desde Montevidéu. Atravessaram a fronteira para
Santana do Livramento. Ganharam adesões. Bem menos do que esperavam, mas
seguiram em frente. Um total de 23 homens em um caminhão Ford 1939 com
um farol quebrado e uma bateria que descarregava a cada parada.
À meia-noite e quinze de 26 de março de
1965, a cidade gaúcha de Três Passos, onde Alberi nascera, foi tomada
pelos combatentes, que invadiram o posto policial e confiscaram armas e
munição. Obrigaram também os funcionários da rádio local a colocar no
ar a Proclamação ao Povo Gaúcho, em que chamavam a população à luta
armada para defender a Constituição. Os brizolistas ficaram empolgados.
Houve o dedo de Leonel Brizola na concepção da guerrilha. E mais nada.
A ajuda prometida por ele nas reuniões realizadas em Montevidéu nunca
veio. Pelo contrário, quem veio foi um emissário de Brizola alertar o
povo gaúcho que ele não concordava com essa ação.
Os 23 combatentes seguiram a jornada e
atravessaram, sem resistência, o Estado de Santa Catarina. Estavam em
condições bem melhores: a bordo de um caminhão Mercedes-Benz novo, ano
1964, cor amarela, confiscado em nome da guerrilha. Segundo a revista Manchete, com a frase no para-choque: “É triste sonhar com um amor e acordar sozinho”.
Preocupado com um possível atentado contra o
presidente Castello Branco que estava em Foz do Iguaçu para inaugurar a
Ponte da Amizade, o Exército enviou cinco mil homens para a região. No
município de Capitão Leônidas Marques, os guerrilheiros se
impressionaram porque viam jipes, caminhões e soldados surgirem de todos
os lados.
Vinte e três contra cinco mil. Mesmo assim,
coroando essa quixotesca jornada, foram os rebeldes que tentaram uma
emboscada contra os soldados. O encontro se deu no vilarejo de Santa
Lúcia. A ação terminou em tiroteio. Os grupos ficaram separados por uma
lombada formada por uma densa vegetação com grandes arbustos e
espinhos. Cinquenta metros de distância. E não se viam. Vinte minutos de
fogo sem que as balas ameaçassem o outro lado. Tiros disparados a
esmo, para cima. Até que se ouviu um grito de “cessar-fogo”. Atingido
por uma rajada de metralhadora INA 45 – armamento do Exército que os
rebeldes não possuíam –, o terceiro-sargento da Companhia de Infantaria
de Francisco Beltrão, Carlos Argemiro Camargo, morreu durante a troca
de tiros. Jefferson aproveitou para ordenar o recuo dos rebeldes, mas
enquanto rastejavam pelo chão, passaram a sentir o barulho dos tiros que
agora passavam bem perto das suas cabeças. O Exército ultrapassara a
lombada e vinha atrás dos rebeldes. Jefferson conseguiu escapar, porém
acabou capturado por uma patrulha, enquanto se abrigava na casa de um
colono.
O que viria a seguir mudaria para sempre a forma com que o Exército tratava os seus próprios oficiais presos.
Por volta das dez da noite, Jefferson é
levado em um jipe até capitão Dorival Sumiani, comandante da Companhia
do sargento morto:
– Joga este filho da puta no chão.
Ordem cumprida. O capitão e dois tenentes passam a chutar Jefferson:
– Filho da puta, assassino, rola no chão que é o que tu merece.
Jefferson atravessa a rua rolando e sendo
chutado. Para no jardim de uma casa que estava servindo de base para o
destacamento. Com um garfo de campanha, o capitão passa a espetar
Jefferson dos pés à cabeça. Só não fura seu rosto. Para se proteger,
ele havia voltado a face contra o chão. Sumiani manda que Jefferson se
vire e pisa com força em seu nariz e sua boca. Grita para os soldados:
– Escarra na cara deste filho da puta, comunista, assassino.
Depois da sessão de cuspidas, vira
novamente a cabeça de Jefferson com seu coturno. Tira seu outro pé do
chão e se equilibra em cima de sua nuca:
– Beija a terra que traíste, filho da puta, comunista, assassino.
Começa o caminho de volta. Da mesma maneira
que veio. Rolando pelo chão, chutado pelo capitão e por dois tenentes,
Jefferson é devolvido ao jipe, que sai escoltado por mais duas
viaturas até parar uma hora depois, ainda na estrada, onde se
encontrava outra guarnição do Exército.
Um oficial de óculos e uniforme da
gabardine, com uma INA 45 nas mãos, surge na frente de Jefferson. É o
major Hugo Coelho, que ordena:
– Tirem ele do jipe e venham andando pela estrada.
E aponta para Jefferson:
– Mas ele vai pulando.
Dois soldados seguram os braços de Jefferson que segue saltitando. O major não para de olhar para os lados:
– Vamos escolher um lugar para fuzilar este filho da puta.
Coelho continua andando, seguido pelos guardas e Jefferson, que pula sem parar. Passam-se dez minutos e uma nova ordem:
– Coloquem ele na caminhonete da Polícia Rodoviária.
A tortura psicológica atinge Jefferson, que
passava a aceitar o seu fuzilamento como única saída. A viatura parte
com guardas que fazem sua escolta e o próprio major Coelho, que,
durante todo percurso, destrava a arma e ameaça matá-lo várias vezes.
A uma da manhã do dia 28, o comboio chega a
Foz do Iguaçu. O tenente-coronel Marques Curvo, comandante do Batalhão
de Fronteira, o major Ary Ronconi Moutinho e o capitão Rego Monteiro
aguardavam Jefferson, que é conduzido para a cela. O major Hugo Coelho
ordena:
– Vamos fazer esse filho da puta passar a noite estaqueado nas grades.
Ronconi e Monteiro, então, amarram os
pulsos de Jefferson e estendem seus braços com força para cima,
prendendo-os nas grades. Seus pés também são atados e presos. Outros
combatentes são trazidos e, por ordem de Coelho, passam a noite da mesma
maneira que Jefferson. Não conseguindo mais resistir em silêncio, o
grupo começa, um a um, a gemer. Na madrugada, uma sinfonia do horror
toma conta da prisão.
Às dez da manhã, seus braços e pernas são
desatados. Jefferson cai no chão e fica. Imóvel. Não desmaia. Minutos
depois, arrasta-se até a privada, puxa a válvula e, com as mãos, pega
água e bebe.
Jefferson ainda seria interrogado outras
vezes, exposto publicamente, torturado ainda mais e apanharia em vários
quartéis. Condenado a oito anos de prisão, teve a pena aumentada em
dois anos pelo Supremo Tribunal Militar. A morte do sargento Camargo
pesou na decisão. A defesa de Jefferson exigiu o documento da perícia
balística da autópsia do sargento Camargo, mas o relatório desapareceu
durante o processo.
Em 1968, realizou uma fuga espantosa.
Recolhido ao 5o Regimento de Obuses, em Curitiba, conseguiu escapar com a
ajuda do cabo Luís Vitor Papandreou e do ex-major Joaquim Pires
Cerveira. Contou também com a participação do seu filho caçula, então
com 15 anos de idade – o mesmo Jeffinho que fora interrogado com 11 anos
e que seria preso com o pai em Buenos Aires. De Curitiba, o grupo
seguiu num Simca Chambord V8 até São Paulo. De táxi, chegaram ao Rio.
Jefferson refugiou-se na embaixada do México, de onde saiu para
exilar-se naquele país, depois em Cuba e na Argélia. Passou pelo Chile,
Espanha, Uruguai e Guiana, sempre atrás de companheiros e recursos para
uma nova invasão do Brasil, dessa vez por Roraima. A prisão e o
sequestro em Buenos Aires destruíram seu plano.
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Inimigo da nação
Já no prédio da Coordenação Federal, Caneppa e Leuzinger recebem todo
material apreendido: um passaporte da Argélia e outro do Brasil, com
data de validade adulterada; a carteira de identidade do serviço de
identificação do Exército de Jefferson; as cédulas de identidade de
Jeffinho e Eduardo; algumas cartas; folhas em branco de cartões de
identidade; uma relação de endereços em Montevidéu, Santiago e Rio de
Janeiro. Outros documentos seguiram para o serviço de tradução da
polícia argentina e seriam entregues mais tarde.
Enquanto Caneppa e Leuzinger examinavam o material apreendido, um
tenente-coronel do Exército argentino entra na sala. Mostra muita
colaboração e deixa claro que o Brasil manda na Polícia Federal
argentina:
– Em nome do meu chefe, coronel Cáceres, titular da direção de
Coordenação Federal, apresento suas desculpas por ele não ter vindo a
esse encontro. Ele manda perguntar aos senhores o que desejam que seja
feito com os elementos brasileiros detidos.
– O coronel Jefferson é um dos mais importantes foragidos do Brasil.
Temos total interesse em que ele seja entregue às nossas autoridades,
diz Caneppa.
– Isso pode ser feito facilmente baseado em um decreto que permite a
expulsão de estrangeiros que contribuíram para a desarmonia entre países
e se mostrassem ligados a atividades subversivas.
Fácil. O coronel Jefferson ficara menos de cinco minutos em liberdade
em solo argentino, mas já era um inimigo da nação. O tenente-coronel
argentino mostra-se ainda mais afável:
– Esse processo demora entre quatro e cinco dias. Com a assinatura do
presidente Roberto Marcelo Levingston, torna-se irrecorrível. O fato
estará encerrado dentro desse prazo.
O tenente-coronel se despede e sai. Menos de dez minutos retorna com mais informações:
– O coronel Cáceres saíra justamente para expor ao general Lanusse o
fato e a nossa interpretação policial. Depois disso, o processo seguirá
para a assinatura do presidente. Peço que já pense na maneira como será
feita a entrega desses dois elementos.
Os militares brasileiros podem comemorar. A notícia da prisão de
Jefferson já chegara ao general Alejandro Lanusse. Levingston era
“apenas o presidente” do momento daquela Argentina recém-saída de mais
um golpe. Quem mandava mesmo era Lanusse, que sabia o que tinha nas
mãos. E com certeza não queria permanecer com esse problema por mais
tempo.
Muito bem informado sobre as aventuras de Jefferson, Nilo Caneppa
aproveita e pede uma nova ajuda, sem jamais esquecer a mais importante
faceta dessa operação… a clandestinidade:
– Considerando o temperamento do coronel Jefferson e seus antecedentes,
seria totalmente inconveniente que eles viajassem em avião comercial,
principalmente porque é necessário manter o mais rigoroso sigilo sobre a
expulsão e a entrega às autoridades brasileiras.
A portinhola se abre. Jefferson dormia, ainda alquebrado pelo massacre
do dia anterior. Já é manhã de sábado, dia 12. A mão do guarda segura
uma caneca de mate morno e um pão velho.
– Que horas são?
– Sete da manhã.
A portinhola é fechada novamente.
Além de doloridas, suas pernas estão bambas porque foi obrigado a
dormir encolhido, já que não cabia na cela. Poderia erguê-las contra a
parede, mas teria de ficar sentado e a pior dor que sentia era a da
queimadura da cera de vela na região do ânus. Está escuro.
Somente nessa manhã, Caneppa comunica a prisão ao embaixador brasileiro
Francisco Azeredo da Silveira. No encontro, o adido militar pede a
intervenção de Silveira para que se consiga um avião. A urgência do
pedido se devia à informação de que o solícito presidente Levingston
assinaria o decreto de expulsão já na tarde de sábado. O embaixador
autoriza então o adido militar a atuar em seu próprio nome, caso
houvesse qualquer inconveniente. Caneppa e Leuzinger se reúnem para
acertar os detalhes da volta dos presos.
Uma hora da tarde. A porta da cela de Jefferson se abre novamente.
Ainda sem refeição alguma além do mate, é reconduzido ao elevador. Entra
em uma sala onde o esperam um fotógrafo e um policial identificador.
Depois de apanhar, é hora de se identificar. Duas fotos de perfil,
outras duas de frente. Impressão digital dos cinco dedos.
Quando Jefferson se preparava para mais uma sessão de choques e
pontapés, a surpresa. Surge em sua frente um prato feito – especialidade
dos bares de rua, aqui e em Buenos Aires – com ovos, batata frita e
bife. Enquanto almoça, um policial argentino tenta puxar conversa:
– Eu conheço o Brasil. Já estive em São Paulo, no Rio…
Jefferson aproveita a chance e tenta, mais uma vez, conseguir alguma informação:
– O senhor sabe o que vão fazer comigo e com os garotos?
O policial ignora a pergunta e segue falando sobre o Brasil. Assim que
termina de comer, Jefferson é levado para o último andar. Uma sala
grande de escritório, mas com apenas uma mesa ocupada por um agente
sentado em frente a uma máquina de escrever. Loiro e magro, tem olhos
azuis e não aparenta ter mais de trinta anos. As outras mesas estão
vazias. Era sábado, não deveria haver expediente – pensa Jefferson.
Dois policiais, armados com metralhadoras, ficam atrás dele e o obrigam
a sentar de frente para o loiro. Vai surgir mais uma farsa. Começa um
interrogatório que deve provocar a abertura de um inquérito sobre um
crime qualquer que teria sido praticado por Jefferson e pelos garotos.
Seguem as perguntas de sempre: nome, endereço, filiação… a cada
pergunta, as metralhadoras incentivam as respostas:
– Você sabe os nomes dos peronistas?
– Não.
– Como você nega conhecer os peronistas? Ontem você falou que sabia.
– Não conheço ninguém desse partido a não ser o chefe, Juan Domingos Perón.
O policial loiro se irrita com a provocação. Levanta-se e enche seu rosto com uma bofetada:
– Coronel de mierda, hijo de puta, cínico y mentiroso.
Jefferson se mantém quieto. Depois de algumas provocações, outro
oficial entra na sala com uma informação que não se encaixava com o
cenário:
– O senhor irá seguir até Mendoza acompanhado de um agente. A Argentina não entrega exilados de país algum.
Depois desse comentário, o mesmo policial se vira para os colegas com um ar sarcástico:
– Vocês tomaram uísque hoje?! Ainda tem uma garrafa para o jantar?
Claro que ele se referia à bebida encontrada no carro de Jefferson,
devidamente saqueada pelos argentinos, que riram da pergunta. O
interrogatório segue.
Caneppa e Leuzinger recebem a confirmação da Coordenação Federal de que
– apenas 26 horas depois da prisão – o presidente Levingston havia
assinado o decreto. O Itamaraty também é comunicado. A rapidez do país
vizinho surpreende os brasileiros, que ainda não haviam resolvido a
questão do transporte dos prisioneiros. A cordialidade argentina não se
limita apenas à agilidade de seu presidente. Várias vezes, naquela
mesma tarde, a Coordenação Federal oferece agentes para acompanhar o
voo, questiona os detalhes do embarque e – invertendo de vez qualquer
princípio de soberania – pergunta aos militares brasileiros que
aeroporto argentino deveria ser utilizado para transportar
clandestinamente presos brasileiros detidos em solo argentino.
Ainda na sala sendo interrogado, Jefferson vê seu filho e seu sobrinho passarem pelo corredor.
– O que vão fazer com eles?
– Vão ser identificados, como você, e as suas fotos vão pra galeria de
criminosos comuns, na categoria de traficantes de tóxicos, conforme a
denúncia da polícia uruguaia.
– Onde vocês encontraram tóxicos?
– Não sei de nada. Foi o que recebi de meus superiores.
Jefferson e Jeffinho seguem apanhando. Ainda encapuzado, Eduardo é
retirado da sala para ser devolvido ao Uruguai. Cáceres deu uma olhada
melhor em sua carteira militar. A informação foi checada e confirmada. É
preciso devolver Eduardo ao Uruguai imediatamente. Ele segue em um voo
de carreira para o seu país. Essa libertação garante, em teoria, a
vida de Jefferson e seu filho. Deixando de lado o parentesco, ele era
um militar uruguaio que presenciara a prisão e tortura em solo
argentino de dois brasileiros.
Além da ilegalidade da operação, há muito mais a preocupar o adido
brasileiro e a Polícia Federal argentina. O embaixador suíço no Brasil,
Giovanni Enrico Bucher, fora sequestrado três dias antes da captura de
Jefferson. Bucher estava no cativeiro e se a notícia da prisão de
Jefferson se espalhasse, haveria grande chance de ele estar na lista de
presos que deveriam ser soltos em troca do embaixador.
AS DUAS DERROTAS DA CONDOR |
Depois de 35 anos de um governo marcado por corrupção e violência, o
ditador paraguaio Alfredo Stroessner foi derrubado em 1989. O país
buscava a democracia e exigia uma nova Constituição, promulgada em junho
de 1992. A nova carta permitia o habeas data:o direito de
qualquer cidadão requerer e ter acesso ao seu prontuário em arquivos
públicos ou privados. O professor e advogado Martín Almada foi o
primeiro a exercer esse direito, mas sem sucesso. A polícia paraguaia
insistia em dizer que seus documentos “estavam desaparecidos” desde a
queda de Stroessner. Aos esforços de Almada juntou-se o juiz José
Agustín Fernández, que exigia a entrega do prontuário.Na manhã de 22 de
dezembro de 1992, o telefone tocou na casa de Agustín Fernández. Era
Almada, que pedia ao juiz que viesse imediatamente à Sección Producciones de la Policía Nacional,
na cidade de Lambaré, região metropolitana de Assunção. Por volta das
11 horas, Fernández se encontrou com Almada, já cercado por mais de 20
jornalistas, parentes de desaparecidos e curiosos. Ele queria o apoio
do juiz para realizar uma busca.O diretor da seção, Ismael Aguilera
Rolón, sem muita convicção, tentou impedi-los. O juiz lhe falou com
calma e segurança, lembrando que “estavam em uma democracia”. Em meio a
policiais desconcertados, Almada e Fernández entraram em um dos
prédios, subiram um lance de escada e pararam em frente a uma sala
fechada com cadeado. A golpes de martelo, a porta foi aberta. Lá
estavam – jogados de qualquer maneira – livros encadernados, pastas,
fitas cassete, fichas completas (com endereços, telefones, lista de
amigos e parentes) de perseguidos pela ditadura, folhas avulsas,
fotografias, álbuns de casamento, batizado, aniversário e formatura;
além de dossiês e relatórios com as assinaturas, feitas de próprio
punho, dos responsáveis pelas ações realizadas na Argentina, Bolívia,
Brasil, Chile, Paraguai e Uruguai. Estava atestada a existência de um
sistema clandestino de cooperação entre as ditaduras da América do Sul
que realizou sequestros e prisões ilegais, torturou e matou seus
opositores das mais chocantes formas, como os “voos da morte”, que
também aconteceram no Paraguai (aviões decolavam com prisioneiros
políticos a bordo e aterrissavam sem eles). No mesmo local também foram
desenterrados sacos plásticos que continham bolsas com mais pastas,
além de armas e instrumentos de tortura.
Eram os 320 mil documentos do governo paraguaio – os Arquivos do Terror
– que comprovavam a existência da Operação Condor. Para dar conta de
tamanho volume – mais de três toneladas – de papel, o que aconteceu em
seguida foi impressionante. Formou-se uma corrente de homens, mulheres e
até crianças que passavam as pastas de mão em mão. Da sala até um
caminhão onde os documentos era cuidadosamente colocados. O caminhão
com todos papéis só chegou ao Palácio da Justiça ao anoitecer daquele
dia em que a história da América Latina mudou para sempre.A vitória de
Almada. O professor começara sua saga havia 15 anos. Buscava a verdade
sobre sua prisão e tortura; e sobre a situação em que ocorreu a morte
de sua esposa. Almada também queria saber porque fora interrogado por
policiais argentinos, chilenos, bolivianos e brasileiros. Com uma
frase, resumiu o que aconteceu naquele dia: “Fomos do rumor sinistro à
verdade comprovada”. Mas faltava um ator nesse cenário. Durante o
governo de Bill Clinton, os Estados Unidos desclassificaram 24 mil
documentos que evidenciam a existência da Operação e a participação
norte-americana. Um deles, o telegrama enviado por Robert Scherrer,
chefe do escritório do FBI em Buenos Aires, além de explicar como
funcionava esse sistema entre os países, ainda citava o termo Operation Condor.
Há 20 anos, com Martín Almada, houve a descoberta dos arquivos. Mas o
terror mostrou sua cara e já havia sido derrotado no dia 17 de novembro
de 1978. E por dois jornalistas brasileiros. Alertados por um
telefonema anônimo feito para a sucursal da revista Veja em
Porto Alegre, o repórter Luiz Cláudio Cunha e o fotógrafo J.B. Scalco
seguiram para a rua Botafogo, no bairro Menino Deus. No endereço
indicado ficava o apartamento da uruguaia Lilian Celiberti, que fora
sequestrada junto com Universindo Díaz e os dois filhos dela: Camilo, de
oito, e Francesca, de três anos. Lilian e Universindo foram torturados
na capital gaúcha e no Uruguai.
Cunha e Scalco entraram no apartamento e ficaram surpresos ao ver armas
apontadas para suas cabeças. Era para ser uma cilada… Os agentes da
Condor esperavam por Hugo Cores, um importante líder da guerrilha
uruguaia e não por um repórter e um fotógrafo. Atordoados por mostrarem a
face, os policiais vacilaram. Não sabiam o que fazer, como contou o
próprio Cunha, no Seminário Internacional sobre a Operação Condor,
realizado em julho: “Eu olhei no olho da Condor (…) A inesperada
aparição de dois jornalistas, algo inédito no território da Condor,
obrigou os chefes uruguaios e brasileiros a abortarem a operação de
Porto Alegre, voltando às pressas a Montevidéu. Dessa vez, portanto, a
praxe de sangue da Condor não se cumpriria: os sequestrados
sobreviveram, apesar das torturas, e não puderam ser simplesmente
‘desaparecidos’. A denúncia do sequestro dos uruguaios em Porto Alegre
virou um escândalo internacional, que mobilizou a imprensa, os partidos,
os advogados, as entidades de direitos humanos”.
Cunha também defende que o terror nasceu do medo: “O fantasma do
comunismo ajudou a justificar o mergulho acelerado dos regimes do Cone
Sul em um ciclo de violência e ilegalidade onde se incubou a Condor”.
Sem limites nem freios, a Operação Condor, que ganhou esse nome por
causa da ave típica dos Andes – e que no Brasil deve ser pronunciada da
mesma maneira que a expressão “com dor” –, deixou a marca de mais de
cem mil mortes.
E não parou. Sofreu metamorfoses e entrou no dia a dia dos inocentes do
Leblon. Oficializou e banalizou tortura e morte como soluções. A
violência como companheira. Uma convidada indesejável, mas inevitável. E
a onda foi se espalhando. O crime comum ganhou reforço, se globalizou e
deu as mãos à podridão dos que deveriam zelar pela segurança. O
subterrâneo conquistou popularidade e passou a ser idolatrado com seus
CVs, PCCs, Fleurys e esquadrões da morte. É história que se repete, em
graus diferentes, nos países vítimas da Condor, onde barbárie e sangue
são plenamente aceitáveis… comuns até, assim como ônibus queimados,
policiais assassinados e chacinas. Perigo real e pânico fabricado. E o
número de mortes na madrugada vira assunto no cafezinho. Mas isso é
outra história…
|
Laços de sangue
Uma nova escolta entra na sala para conduzir Jefferson de volta à
solitária. Já passa das sete horas da noite. Após algumas horas na
escuridão do calabouço, a portinhola é aberta. Luz acesa. O guarda lhe
passa uma caneca de mate frio com bolacha:
– Você vai embora de manhã.
Foi impossível não juntar essa informação ao que o agente havia dito na
sala de identificação. Mesmo sabendo que isso parecia bom demais,
Jefferson passa a noite na expectativa de que seguiria viagem até
Santiago. Chega a se convencer que falavam a verdade.
A verdade é que o embaixador Silveira conseguira um avião que já estava
em solo argentino. Porém, sem o governo brasileiro saber, o único
avião disponível naquele sábado se transformou na garantia real da vida
de Jefferson e de seu filho. Formando uma corrente, a aeronave servia
ao ministro do Trabalho, Júlio Barata, sogro de um sobrinho de
Jefferson, Walcles Figueiredo de Alencar Osório, casado com Beatriz
Barata Osório, filha do ministro Júlio, que era muito amigo da mãe de
Jefferson, dona Corina. Assim que soube para que seu avião foi
requisitado, Barata avisou dona Corina, que imediatamente procurou a
Aeronáutica em busca de informações sobre o filho e o neto. No Rio de
Janeiro dos anos 1970, a linha-dura e a luta armada frequentavam as
mesmas festas, eram vizinhas ou até tinham laços de sangue, como o
próprio Jefferson, parente distante do ex-presidente Castello Branco.
Oito da noite. Leuzinger informa Caneppa que recebera uma mensagem do
adido da Aeronáutica em Buenos Aires, coronel-aviador Miguel Cunha
Lanna, confirmando que o Ministério da Aeronáutica havia autorizado o
embarque dos presos. Estava cancelada a escala em Montevidéu, o que
permitia que o avião fizesse um voo direto para o Rio, onde Lanna se
encontrava naquele momento. A mensagem também determina que Leuzinger
seguisse no voo como responsável pela vigilância dos detidos. Os últimos
detalhes são acertados entre Brasil e Argentina. O embaixador Azeredo
da Silveira retorna e é informado de todo processo de negociação.
Pai e filho são retirados das celas. São seis horas da manhã de
domingo, dia 13 de dezembro. Retornam, algemados e cercados de
policiais, à sala do superintendente, onde muitos agentes estão prontos
para uma guerra. Todos portam metralhadoras de mão de fabricação
argentina. Nos coldres, pistolas Colt 45. Os policiais que conduziam
Jefferson e Jeffinho os encostam num canto, forçando seus rostos contra a
parede. É grande o movimento, mas se pode ouvir muito bem o som das
travas das armas e dos carregadores de munição. Em meio a esse barulho,
ainda é possível escutar perguntas como: Che estás listo?; Necesitás de balas?; Ya sabes lo que tenés que hacer?; Hablastes con el Jefe?
Vigiando Jefferson e seu filho há um policial quase grudado neles. E
também o oficial loiro que ainda não parece satisfeito. Chega perto de
Jefferson. Algumas vezes faz o gesto de degola, passando a mão no
próprio pescoço. Outras vezes, ameaça:
– Vocês vão ser fuzilados. Seus corpos vão ser jogados no arroio Riachuelo. (um afluente do rio da Prata).
A falação só termina com a chegada do subcomissário. Mesmo longe,
Jefferson pode ouvi-lo dizer que o embaixador brasileiro estaria, em uma
hora, no aeroporto de Palomar, distante trinta quilômetros da sede da
Coordenação Federal.
Os policiais saem da sala e descem pelos dois elevadores do prédio.
Jefferson aproveita essa movimentação e consegue falar rapidamente com
seu filho. Pede que tenha força. Talvez não fosse necessário. Jefferson
está admirado com a serenidade do filho, que, mesmo sofrendo as mesmas
torturas pelas quais passara, jamais pediu clemência, nem se desesperou
com as inúmeras ameaças de morte que sofrera naqueles dois dias.
Quatro viaturas estão preparadas para deixar o prédio. Jefferson e
Jeffinho seguem em carros diferentes, mas ambos são colocados no banco
de trás, entre dois policiais que portam metralhadoras de mão apontadas
para eles.
O domingo apenas começa em Buenos Aires. Ruas vazias. As quatro
viaturas da polícia seguem em alta velocidade. Menos de uma hora depois,
os carros param em frente à entrada de um grande campo cercado por
arame farpado. Na guarita, um sentinela da Aeronáutica conversa com os
policiais da viatura que puxa o comboio. Depois de um rápido telefonema,
o sentinela levanta a cancela. Os carros voltam a acelerar fundo. Os
argentinos estão preocupados com o horário:
– Mais rápido! Precisamos chegar antes do embaixador brasileiro.
Já é possível ver os hangares e aviões da Base Aérea de Palomar. São
quase oito da manhã. O comboio policial para ao lado de um avião a jato
bimotor. Na fuselagem, a sigla FAB e a estrela de seis pontas.
Militares argentinos e brasileiros – com seus uniformes característicos
– recepcionam e parabenizam os policiais que fizeram a escolta. Pai e
filho permanecem nos carros, cercados por agentes. Depois de alguns
minutos de conversa, passa a ser visível a impaciência dos oficiais
argentinos, que olham no relógio a cada minuto. Pouco depois, uma
Mercedes-Benz de cor preta e chapa diplomática surge ao longe,
levantando uma nuvem de poeira. Para a uns trinta metros do avião. Do
carro, sai o embaixador do Brasil na Argentina, Francisco Azeredo da
Silveira. O motorista da viatura de Jefferson confirma:
– Es el sr. embajador brasileño.
Silveira mal desembarca e é rodeado pelos oficiais brasileiros e
argentinos. Um deles carrega uma pasta, de onde retira um documento.
Azeredo lê rapidamente e assina. A ditadura passa recibo. Mercadoria
entregue. A assinatura serve de comprovante.
Os policiais argentinos arrancam Jefferson e Jeffinho dos carros. Ainda
algemados, somente se livram da escolta depois de subir a escada e
entrar na aeronave. Neste momento, algemas e capuzes são retirados.
Mais uma aberração diplomática: a porta do avião passa a significar a
nova fronteira entre Brasil e Argentina.
Na aeronave, o coronel-aviador Leuzinger e dois sargentos, todos
armados com metralhadoras de mão INA e pistolas Colt 45, e dois
funcionários da Embaixada do Brasil. Ocorre uma reveladora troca de
olhares. Jefferson encara Leuzinger que manda os prisioneiros sentarem
nos primeiros bancos. Mas não há algemas “brasileiras”. Leuzinger ordena
então que os policiais brasileiros peçam emprestadas aos argentinos,
que concordam, com a condição de que não se esquecessem de devolvê-las
“na primeira oportunidade”. No voo também segue outro preso, um
paraguaio chamado Leonardo, que falava português tão bem que enganou
argentinos e brasileiros. Acabou despachado para o Brasil porque a
Argentina pensava que ele era brasileiro. No Informe 388, o próprio
adido brasileiro reconhecia que a viagem forçada do paraguaio também
estava longe de ser legal: “Seu embarque foi extra-oficial, por
considerar a Coordenação Federal conveniente impedir sua ida para o
Chile, como era seu desejo; e parecer, por suas declarações, mais
interessante às autoridades brasileiras e inútil para as argentinas.”
Um lindo dia de sol. O voo parte sem problemas. Jefferson e Jeffinho
permanecem algemados, com as mãos entre as pernas e só conseguem comer
sanduíches e líquidos. O próprio Leuzinger os ajuda a se alimentar.
Mostra-se solidário, mas não permite que pai e filho conversem. Durante o
voo, Jefferson lembra de onde conhecia Leuzinger. Suas filhas eram
colegas de classe na Erwy School, uma das mais famosas e caras escolas
de Montevidéu. A confirmação, inevitável, vem pouco tempo depois, com o
próprio Leuzinger:
– Estou lamentando muito ter de escoltar o pai da Sonia, amiga de minha filha.
Imediatamente após esse comentário, passa pela cabeça de Jefferson a
possibilidade de Leuzinger ter usado a própria filha para conseguir
informações sobre suas movimentações. Isso explicaria porque estava
sendo seguido. Sonia, a filha de Jefferson, já havia se despedido das
amigas, dizendo que depois das festas de Ano Novo, seguiria com a mãe
para o Chile para encontrar seu pai. Outra dúvida surge: Sonia estudava
na Erwy School graças a uma bolsa. Jefferson não teria como pagar a
mensalidade do próprio bolso. Como Leuzinger conseguia manter a filha
naquela escola?
O avião pousa no Galeão. Uma hora da tarde de domingo. Assim que a
porta é aberta, um grupo entra. Uma festa. Eles se cumprimentam e
comemoram muito a ação. Jefferson não era um preso, era um troféu. Não
usam farda, mas um dos homens, o mais alto deles, lidera o grupo. Todos
seguem suas ordens. Leuzinger fica em pé e se apressa para bater
continência a um dos líderes da ala radical da Aeronáutica e seu
companheiro de Aragarças, o brigadeiro João Paulo Moreira Burnier, que
ordena que os capuzes sejam recolocados. Um dos oficiais não sabe o que
fazer com esses presos que mereciam tanta atenção:
– Brigadeiro, devemos levar esses dois para a prisão dos oficiais?
– Não. Eles vão para as celas dos presos políticos.
Montoneros e tupamaros
O destino é o Centro de Informação e Segurança da Aeronáutica (CISA).
Aos empurrões e com capuz, debaixo de cuspidas, palavrões e ameaças,
Jefferson e seu filho são enfiados dentro de uma caminhonete. No momento
em que foi jogado, Jefferson se desequilibrou e bateu com a cabeça no
ombro do militar que estava ao lado do motorista.
– Levanta, filho da puta, você quer chupar meu pau, seu veado?
Saem da caminhonete da mesma forma que entraram. Jogados. Aos socos e
pontapés, deitam no chão no pátio do pavilhão das celas. Roupas
arrancadas, mas continuam encapuzados. Nus. Colocados de pé, recebem
“telefones”, tapas aplicados com as duas mãos abertas contra os ouvidos.
Agarram suas cabeças e as forçam para baixo. Um pequeno cano de
borracha é colocado no ânus de Jefferson. Em seguida, começam a soprar o
que ele acha ser uma bomba de pneu de bicicleta.
– Toma no cu, seu filho da puta.
Gritos. Gargalhadas. Palavrões. Xingamentos. Até que uma voz mais forte ordena que os levem para o xadrez.
As celas, individuais, tinham duas portas, uma de madeira e uma de
grade de ferro. Uma lâmpada acesa a noite toda, atraindo mosquitos e
pernilongos. Um cubículo tão pequeno que não permitia que ele se
esticasse. Para dormir, o chão. No teto, telhas de zinco que transformam
a cela em uma sauna em pleno verão carioca. Uma pequena janela no alto
da cela. O calor e o barulho passam de qualquer limite. Tão perto da
pista que se ouve o sistema de som anunciando os próximos voos.
E mais torturas. E novas torturas. Uma delas, conhecida entre os
guardas como chibata dos fios de aço, uma especialidade do CISA,
aplicada pelo major Jorge Correa, que se deliciava com as marcas de
sangue no corpo de suas vítimas. Querem saber os nomes das pessoas com
quem Jefferson se encontrara no México, em Cuba, no Chile e na Europa;
quais eram as ligações de Jefferson com os Montoneros e Tupamaros; e
quem eram as pessoas envolvidas com os movimentos no Brasil. Mais uma
vez, o doloroso silêncio de Jefferson pouco adianta. Os cadernos com
endereços, apreendidos na Argentina, já haviam feito um grande estrago
na organização dos grupos que combatiam a ditadura. Os papéis de
Jefferson, apreendidos na Argentina, renderam ao Centro de Informações
do Exterior (CIEX) – o serviço secreto do Itamaraty – uma lista de
pessoas que se encontravam espalhadas pelo mundo: Alemanha Ocidental,
França, Guiana e Cuba; além da Argentina, Uruguai e Brasil.
Ou na tortura… ou na cela. Calor e barulho. E a portinhola que se abre para um oficial fazer a pergunta que se tornaria rotina:
– Ainda não se suicidou?
Jefferson come com a mão a comida que vem em um prato de alumínio
sempre arremessado no chão pelo guarda, com o infalível tratamento:
“Toma, filho da puta”.
A trégua chega na véspera de Natal. Um sargento surpreende Jefferson e
lhe dá uma barra de chocolate e um pedaço de bolo, dizendo que era um
presente dos outros colegas da prisão.
– Desculpe, mas por que o senhor está preso?
Jefferson explica sua prisão e deixa o sargento surpreso:
– Mas eu pensava que o senhor e o outro rapaz eram argentinos e estavam
presos por tráfico de drogas. Como pode, o senhor é um coronel
brasileiro e foi humilhado pela polícia da Argentina?
Enquanto come o bolo, Jefferson ouve o desabafo do sargento. Ele conta
que está pedindo transferência porque não suporta mais ver tudo aquilo.
A surpresa do Natal continua:
– O senhor quer que eu dê algum recado para seu filho?
– Diga para ficar tranquilo… que estou bem e que minha saúde está ótima.
O sargento sai da cela. Minutos depois, ele retorna:
– Seu filho mandou um abraço e disse que também está tudo bem com ele.
Jefferson tem sua primeira noite feliz desde sua prisão.
No dia 12 de janeiro de 1971, Jefferson recebe a visita de um homem que usava roupa civil e que o trata de maneira respeitosa:
– Coronel, o senhor está bem de saúde?
– Sim.
– Vou mandar um acolchoado para o senhor e ordenar que devolvam suas roupas.
O homem, de pele clara e calvo, jamais se identifica. Jefferson sabe
que esse é o mesmo homem que perguntava várias vezes ao dia se ele não
havia se suicidado, mas entra no jogo. É o tenente-coronel aviador
Ferdinando Muniz de Farias, conhecido também como doutor Luiz, um dos
muitos torturadores do CISA, comandado pelo brigadeiro Carlos Afonso
Dellamora.
Presente de aniversário
Na manhã do dia seguinte, Jefferson é encapuzado e retirado da cela. De
volta à sala de interrogatório. Seu capuz é retirado. Ele está frente a
frente com dois homens que não estão fardados. Dois dos seus
torturadores. O tenente-coronel Abílio Alcântara, conhecido também como
doutor Pascoal e famoso por ter um dente de ouro; e um gordinho de pele
bem clara, o capitão Paiva, como Jefferson o chamava em suas próprias
anotações. Tentam justificar legalmente o seu sequestro:
– Estamos aqui para um interrogatório sem caráter jurídico, porque sua
prisão ocorreu no estrangeiro com o objetivo de que o senhor cumpra o
resto da pena a que foi condenado pela Justiça Militar brasileira.
– Minha prisão foi ilegal porque…
Antes que Jefferson prosseguisse:
– Estamos aqui para cumprir ordens. Sobre esse assunto, é melhor não
discutir para evitar mais dissabores para o senhor e seu filho…
O “capitão Paiva” abre uma pasta de cartolina e retira uma cópia do
título de viagem de Jefferson expedido em Cuba. A pergunta é tão
estúpida quanto surpreendente:
– Esse documento é seu?
– Sim. E na sua pasta também deve haver um documento de viagem expedido
pela Argélia, que me classifica como refugiado político e me coloca
sob a proteção daquele país.
– Não temos conhecimento disso.
Jefferson não sabia, mas, naquele momento não encarava dois torturadores. Ele enfrentava a sombra do Condor:
– Eu não estava viajando clandestinamente. O governo argentino e o
embaixador brasileiro desrespeitaram o Direito Internacional e a
Convenção de Genebra.
Suas palavras são ignoradas. Mais uma vez, seguem-se perguntas sobre
seu segundo exílio. As passagens pelo México, por Cuba, Argel, Paris,
Santiago e Montevidéu. Um interrogatório que não leva a nada. Como as
respostas se transformam em manifestações, o interrogatório se prolonga
por horas. Jefferson sai no lucro dessa vez. Um sanduíche de mortadela
com manteiga e um copo de leite são servidos.
Cansados das longas respostas, os interrogadores lhe fazem uma
proposta. Eles queriam um relatório sobre suas atividades
revolucionárias e condicionaram essa entrega à liberdade de seu filho;
bem como a transferência do próprio Jefferson para uma unidade do
Exército.
Ele não apresenta objeção. Aceita e faz questão de marcar a entrega
para o dia 17 de janeiro. Ganha uma caneta e dez folhas de almaço. Mais
tarde, iria pedir mais folhas. No dia prometido, entrega o seu
relatório de 30 páginas – na verdade, um manifesto contra a ditadura – e
surpreende o tenente-coronel Alcântara e o capitão Paiva com um
pedido:
– Hoje, 17 de janeiro, é o meu aniversário. Será que, como presente, eu poderia ver o meu filho?
O que acontece em seguida desconcerta Jefferson. Os dois militares, que
até havia uns dias o torturavam, o cumprimentam e aceitam sua
proposta. Pela primeira vez desde que foi preso, Jefferson é conduzido
sem capuz pelos corredores da prisão. Para em frente à cela do filho.
Porta aberta. E um longo abraço que termina em lágrimas. Tantas lágrimas
que a emoção daquele reencontro comove até os guardas. O pai,
acostumado ao combate, homenageava a valentia do filho, o mesmo filho
que, com 15 anos de idade, fora fundamental na sua fuga da prisão para o
exílio. Era a primeira vez que se viam desde que voltaram ao Brasil.
Três dias depois, Jeffinho fica livre. Nenhum processo legal é
instalado contra ele. Apenas o largam na frente da casa de sua avó, no
Rio. Ainda defecando sangue, com uma forte inflamação no intestino,
resultado das torturas, ficaria em tratamento hospitalar por longo
tempo.
A partir daquele dia, Jefferson seguiria “apenas” preso. Passando
noites em claro enquanto ouvia os gritos dos outros torturados. O açoite
que rasgava a noite. O riso dos torturadores. Pela manhã, logo cedo, a
limpeza feita aos baldes para eliminar o sangue.
No dia 2 de fevereiro de 1971, é transferido para a Fortaleza de Santa
Cruz. Em abril de 1975, para o Instituto Penal Cândido Mendes na Ilha
Grande. Passa o ano seguinte no Hospital Central Penitenciário. É
libertado no dia 2 de novembro de 1977.
Trágicas consequências
Vigiado e perseguido continuamente, eternamente ameaçado de prisão,
beneficia-se da Lei da Anistia em agosto de 1979. Um ano depois, sua
anistia é anulada pelo Superior Tribunal Militar. Exila-se na Venezuela.
Seus direitos políticos são novamente cassados em dezembro de 1980. Um
ano depois, parte para o exílio na França. Somente em 1985, com o fim
do regime militar, tem sua anistia ratificada. Todas essas
movimentações continuam sendo acompanhadas pelos arapongas da
linha-dura que continuavam a pleno vapor.
As asas do condor continuaram a lhe fazer sombra até sua morte em
janeiro de 1995, sem jamais imaginar que seu sequestro na capital
argentina antecederia uma colaboração sistêmica e secreta de estrutura
militar clandestina, entre os países do Cone Sul.
Uma operação que pode ter nascido de um encontro que ocorreu seis dias
depois da sua prisão: a convite do coronel Cáceres, no dia 18 de
dezembro de 1970, Caneppa voltou à Coordenação Federal para uma nova
reunião. O oficial argentino chamara o adido militar brasileiro para lhe
entregar mais documentos (a demora dessa entrega pode ser atribuída ao
tempo da tradução). Cáceres devolveu os originais, mas ficou com as
cópias em espanhol.
Foi uma boa conversa para ambos. Destacaram a necessidade de manter
sigilo sobre o destino dos prisioneiros. Cáceres tinha motivos para
preocupação. Enquanto conversavam, chegou a informação de que a mulher
de Jefferson recebera do cônsul uruguaio em Buenos Aires a informação de
que seu marido e seu filho foram levados para o Brasil. Os argentinos
não sabiam como o cônsul recebera essa notícia.
Cáceres gostara do que viu. Se o Brasil conseguiu, a Argentina poderia
seguir esse exemplo. Nada melhor para os militares argentinos do que
incentivar a repetição dessa parceria, sem obstáculos burocráticos,
legais ou diplomáticos:
– Seria necessário e conveniente que mantivéssemos um contato mais
cerrado em casos semelhantes, pois ao seguirmos os canais competentes e
escalões hierárquicos, estávamos dando tempo e oportunidade que se
realizassem contatos e movimentações como essa, que havia sido impedida.
Em breve, essas sugestões seriam seguidas com trágicas consequências… e
tamanha gentileza argentina seria muito bem retribuída. O Condor
fazia, com algumas turbulências, o seu primeiro voo.
No Revista Brasileiros
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