buscado no Pensando e Seguindo
Uma das maiores obras da literatura, O Auto da Compadecida, de Ariano
Suassuna, escrito originalmente para o teatro, ganhou diversas versões,
para o cinema e a televisão. É uma obra, muito engraçada, que aborda as
peripécias de dois pobres sertanejos, João Grilo e Chicó, tentando
sobreviver com esperteza, em meio à pobreza geral à sua volta. O clímax
acontece quando alguns dos personagens são julgados, por Deus. Além de
risos, pode provocar reflexões.
O filme, como de regra, faz com que nos identifiquemos e torçamos para
os protagonistas. Assim, tudo é retratado pela ótica deles, inclusive o
julgamento. E aí, começam os choques, para o público médio consumidor de
cinema, literatura e até mesmo de seriados sobre crimes. Normalmente, a
persecução penal é tratada com a visão da classe média ou da classe
alta. No Auto, por sua vez, é imaginado um processo desejado pelo pobre,
que, normalmente, é o réu.
Logo de início, a primeira diferença com o imaginário comum. O acusador é
o diabo. A defesa é feita por Maria, a mãe de Jesus. Estamos
acostumados a tratar os promotores como heróis, justos e corajosos e os
advogados como corruptos, mentirosos. Mas, aqui, a lógica é invertida,
brutalmente. Para não deixar dúvidas, João Grilo chega a constatar que o
demônio é uma mistura de tudo o que ele não gosta: "promotor,
sacristão, cachorro e soldado de polícia".
Evidentemente, a obra não afirma que promotores e policiais são o
retrato do mal, nem que defensores são santos. Mas, diz, sim, que na
perspectiva de uma parcela considerável da sociedade, os primeiros são
temidos. Não há, no filme, ou no livro, nenhuma sugestão de que João
Grilo seja um réu habitual, portanto, esta parcela não é composta apenas
por "presos" ou "criminosos", mas, sim, pelos pobres. Quem se sente
ameaçado pela justiça seletiva sabe que muitas prisões são violentas,
abusivas e que os acusadores podem ser muito cruéis e insensíveis aos
seus problemas. E todo o pobre sabe que é um potencial alvo.
O acusador também não parece nada imparcial. É nítido que ele faz o
possível para obter a condenação, mesmo esquecendo alguns princípios
básicos de direito penal. Por exemplo, o diabo tenta aplicar a sanção e
levar os réus ao inferno, mesmo sem julgamento. Lembra muito a prisão
provisória. Depois, não se incomoda com o fato de que eles não tiveram
"defesa técnica", até quando João Grilo convoca Maria para falar por
eles. Na ótica dos pobres, não existe a figura do "fiscal da lei",
neutro, praticamente um segundo juiz, que filmes, matérias sobre o crime
e juristas ingênuos ou cínicos atribuem ao Ministério Público.
Aí, entra uma outra inversão muito significativa. Ao contrário do que
acontece nos nossos tribunais, é a advogada de defesa, ou Defensora
Pública, Maria, quem se posta no alto, ao lado do julgador. O acusador
está lá embaixo, afastado. A troca de posições é importante para
entender a reclamação quanto a geografia das salas de audiência, com
promotores coladinhos aos juízes. O magistrado mantém, na estrutura do
filme, uma notória cumplicidade com a defesa, enquanto trata a acusação
de modo irônico, depreciativo e desconfiado. Em diversos momentos, antes
de decidir, pergunta se a solução satisfaz Maria. Não é preciso muita
experiência forense, para notar como a nossa prática é exatamente
oposta.
Há ainda outros sinais de como seria diferente um julgamento, construído
pela perspectiva dos pobres: o juiz é negro, já condenado e pobre. É
capaz de se por na posição dos réus. Assim, Suassuna demonstra como o
sistema judicial é composto de vários elementos, que criam um ambiente
hostil aos réus e à defesa. E mostra, principalmente, que esta
hostilidade se esconde tão bem atrás de togas, paletós, costumes,
tradições, palavreados vazios, que é, cotidianamente, ignorada e
reproduzida. Mais que isto, aqueles que a denunciam são considerados
chatos e impertinentes.
Filme completo
2 comentários:
O nordestino tem por hábito rir da própria desgraça. Acostumado a tristeza do abandono e a tentativa da sobrevivência por diversas formas.
Rir e criar, Janice.
Um grande abraço
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