A polêmica em torno do suposto racismo de Monteiro Lobato — levantada no ano passado após o Conselho Nacional de Educação recomendar a inclusão de notas explicativas no livro Caçadas de Pedrinho — ganhou novo fôlego. Tudo por causa da publicação de cartas inéditas do escritor na última edição da Bravo!.
Nelas, são revelados o pouco apreço do autor de Urupês por "mestiços" e sua simpatia pela Ku-Klux-Klan, sociedade secreta norte-americana que defende a supremacia branca. Em algumas cartas, Lobato também se mostrava favorável à eugenia — estudo fundamentado na ideia de aprimoramento da espécie humana a partir da genética, que serviu de base para o nazismo e os argumentos sobre a pretensa superioridade da raça ariana.
O historiador Vladimir Sacchetta, co-autor da biografia Monteiro Lobato — Furacão na Botocúndia, relativiza a identificação do criador de Emília com a eugenia. Segundo ele, as acusações de racismo endereçadas ao escritor não passam de "bobagem", uma atitude “extemporânea”.
“No livro (Caçadas de Pedrinho), eles caçam e matam uma onça pintada. Hoje seria um crime ambiental. Naquele momento, não era. O mesmo acontece com as expressões usadas pela Emília. Se ela chama a Tia Nastácia de "negra beiçuda" ou "negra de estimação", isso não significa que ela está com uma atitude racista”, afirma o biógrafo em entrevista a Ana Cláudia Barros, do Terra Magazine.
Para Sacchetta, no entanto, “é indefensável" a defesa que Lobato faz da Ku Klux Klan. “Isso é bem pesado. Mas, ao mesmo tempo, Lobato tinha sido editor do Lima Barreto. Entendeu? Ele funcionava por impulso. Sabe excitação intelectual? Aí, ele banca uma Emília, que mostra a língua. Isso não diminui a importância do Lobato para a cultura brasileira.”
Confira abaixo a entrevista.
Terra Magazine: Qual era a relação de Monteiro Lobato com a eugenia? Vladimir Sacchetta: É preciso entender a relação do Lobato com a eugenia no seu tempo. Não adianta olhar para a eugenia hoje, tendo acontecido o que aconteceu na aplicação desta teoria para se chegar à raça pura, coisa que o nazismo fez.
É a mesma coisa que discutir as malcriações que a Emília fazia para a tia Nastácia em 1933, passando pelo filtro do politicamente correto do século XXI. Hoje é inadmissível que se coloque, em qualquer livro, expressões como "negra beiçuda", "negra de estimação", coisa que o Lobato fazia naquele momento no qual não se discutia o politicamente correto. Ponto.
Lobato tinha o maior apreço pela Tia Nastácia dentro da sua obra. Tanto que ela é a própria criadora da Emília, seu personagem mais importante. Ela é a detentora de um saber popular, diferente do saber livresco do Visconde de Sabugosa.
Terra Magazine: Na sua interpretação, essas expressões apontadas pelos críticos de Lobato são racistas?
VC: Não chamo de racistas. Racista é uma atitude muito negativa com relação à raça negra. Elas se tornam racistas se você enxergá-las sob o prisma do politicamente correto dos dias de hoje.
Terra Magazine: O que você está destacando é que eram expressões correntes na época...
VC: Correntes, correntes. A Emília é uma projeção do próprio Lobato, é o alterego do Lobato para dar voz e vez às crianças daquele tempo que não tinham voz nem vez. O Lobato quebra essa hierarquia adulto-criança e cria essa personagem que questiona, é irreverente, pensa com a cabeça própria. Lobato veio subverter a ordem adulto-criança. Mais do que isso: ele considerava a criança um ser inteligente. Não era um adulto em miniatura, nem um idiota. A obra dele coloca a criança como um ser inteligente o tempo todo.
Chamar o Lobato de racista é complicado. Tanto que se você pegar o conto Negrinha, que dá título ao livro de 1920, 1921, vai ver a história da negrinha, filha de ex-escrava que é massacrada, torturada, violentada dentro de uma casa de uma senhora virtuosa, branca. Aquilo é um libelo contra uma sociedade branca, racista e mais, com a conivência da igreja católica.
Terra Magazine: Como biógrafo de Lobato, como você avalia essas críticas, acusações de que ele seria racista?VC: Acho uma bobagem. É uma discussão extemporânea. Primeiro, a obra de Lobato não tem que ser modificada, alterada nem mexida. Cabe ao professor, que faz a mediação entre o livro e a criança ou a ao pai, uma explicação disso. Por que essa expressão era corrente e possível naquela época. Estamos falando de 1933, ano de Caçadas de Pedrinho, que é o tema atual por conta do parecer do Conselho Nacional de Educação.
No livro, eles caçam e matam uma onça pintada. Hoje seria um crime ambiental. Naquele momento não era. O mesmo acontece com as expressões usadas pela Emília. Se ela chama a Tia Nastácia de "negra beiçuda" ou "negra de estimação", isso não significa que ela está com uma atitude racista.
Terra Magazine: Você falou em contextualizar, mas um dos argumentos dos que criticam essas expressões na obra de Lobato é que nem todo professor, nem todas instituições de ensino estariam preparados para fazer essa contextualização. Há quem defenda que os livros, por essa razão, não deveriam ser adotados pelas escolas públicas. O que você acha disso?
VC: É uma atitude radical. O professor tem que estar preparado para essa mediação e para essa explicação. Dentro da preparação de um educador, de quem faz essa mediação da leitura...Estamos falando em crianças e jovens de 12, 14 anos, no máximo. É essa faixa que lê a obra.
Terra Magazine: Um pouco mais jovem...VC: Um pouco mais novos. Acho que cabe ao educador apontar, contextualizar, datar, explicar falando que isso hoje é inadmissível. Se a Emília vivesse hoje, não usaria essas expressões.
Tivemos uma abolição tardia. O Lobato nasce seis anos antes da Abolição. Ainda estava muito fresco. Tanto o interior quanto a cidade de São Paulo tinham ex-escravos. Ele teve ama de leite. As histórias que ele traz para sua obra, Saci, mitos brasileiros, ele ouviu das ex-escravas. Lobato teve uma Nastácia que foi babá de um dos filhos dele.
Terra Magazine: Voltando para a questão da eugenia. Numas das carta que ele escreveu para Godofredo Rangel, o escritor sugeriu que a literatura "é um processo indireto de fazer eugenia, e os processos indiretos, no Brasil, 'work' muito mais eficientemente". No livro Raça Pura, da historiadora Pietra Diwan, Lobato também é citado como alguém que demonstrava simpatia pelo movimento eugenista. Na condição de biógrafo, como você descreve a relação do Lobato com a eugenia?
VC: O Lobato, como um intelectual curioso com as ideias, se metia a pensar a respeito de tudo e dava suas opiniões, seus palpites. Creio que, naquele momento, ele achava isso. Isso não significa que ele, mais para frente, vá defender a eugenia.
Lobato estava sempre revendo seus conceitos. Em 1914, ele cria o Jeca Tatu e diz que era indolente, preguiçoso, sacerdote da lei do menor esforço. Quatro anos depois, ao tomar contato com as pesquisas do Belisário Pena e do Arthur Neiva sobre saúde pública, ele vê que o Jeca Tatu é um homem do campo excluído e doente. Na segunda edição de Urupês, ele pede desculpa ao Jeca Tatu e diz: - Jeca, você não é assim. Você está assim porque carrega vermes, protozoários, amebas. Ele usa Expressão "zoológico de protozoários".
Terra Magazine: O que você está querendo destacar é que Lobato era capaz de reconsiderar uma posição?
VC: Reconsiderou uma posição. Nessa carta que deu a polêmica entre a autora Ana Maria Gonçalves e o Ziraldo (a carta enviada a Godofredo Rangel que fala sobre mestiçagem), ela cita um trecho que está na primeira edição da Barca de Gleyre, de 1944. Na segunda edição, que está na obra completa, organizada por Lobato para a Brasiliense, aquele trecho foi suprimido.
Terra Magazine: Por que foi suprimido?VC: Porque ele repensou, viu que não tinha nada a ver e cortou.
Terra Magazine: Numa carta escrita a Arthur Neiva, em 15 de dezembro de 1935, e publicada na última edição da Bravo!, Lobato, ao se referir à mestiçagem na Bahia, diz: "Mas que feio material humano formiga entre tanta pedra velha!A massa popular é possivelmente um resíduo, um detrito biológico. Já a elite que brota como flor desse esterco tem todas as finuras cortesãs das raças bem amadurecidas".VC: O Lobato tinha esses impulsos. Ele falava o que achava. Isso não diminui a grandeza dele e nem deve ser posto sob o tapete por seus admiradores, biógrafos.
Terra Magazine: Uma crítica que costuma ser feita é que esse lado do Lobato simpático à eugenia, o suposto racismo não são retratados pelos biógrafos. Como você vê isto?VC: Lobato é um escritor, cidadão cercado de preconceitos por todos os lados. Por exemplo, Lobato e a Semana de 22, que se coloca como marco zero da cultura brasileira e a partir dela se cria uma figura teórica do Pré-modernismo. A semana de 1922 quis trazer Lobato para seu grupo e ele não topou porque achava que os modernistas brasileiros estavam importando escolas estrangeiras, europeias, sem o devido espírito crítico.
Ele faz aquela crítica à exposição da Anita Malfatti. Os modernistas e os críticos da escola modernista pegam e recortam essa crítica dele e pegam trechos em que Lobato é radicalmente contra essa importação dos "ismos", como ele dizia, chamava de arte caricatural. Eles descontextualizam o texto em que Lobato fala que Anita era uma pintora poderosa, dominava a técnica. Ele faz muitos elogios a ela.
Mas pegam o trecho em que ele critica dessa forma "lobatiana". Ele usa expressões muito duras porque era um polemista. Aí, inventam um rompimento radical com o movimento modernista, o que é uma mentira, uma bobagem.
Terra Magazine: Em outra carta de Lobato, também publicada na Bravo! — e apresentada em fevereiro na "Carta aberta a Ziraldo" da escritora Ana Maria Gonçalves —, ele diz: "País mestiço onde branco não tem força para criar uma Ku Klux Klan, é país perdido".VC: Claro que a defesa da Ku Klux Klan é indefensável. Isso é bem pesado. Mas, ao mesmo tempo, Lobato tinha sido editor do Lima Barreto. Entendeu? Ele funcionava por impulso. Sabe excitação intelectual? Aí, ele banca uma Emília, que mostra a língua.
Isso não diminui a importância do Lobato para a cultura brasileira. É um homem que levantou a bandeira do petróleo na década de 1930 e hoje temos a Petrobrás. Concebeu, por exemplo, a literatura paradidática. Hoje, ela está em todas as escolas.
Terra Magazine: Na sua opinião, essas questões que estão sendo levantadas podem, de alguma forma, arranhar a imagem do Lobato escritor?VC: Acho que não. O escritor é um homem como outro qualquer. Tem suas contradições. Não é um ser imaculado e puro, coerente o tempo todo. É um ser humano sujeito a chuvas e trovoadas.
Lobato, quando foi preso pela questão do petróleo, passou por um primeiro julgamento no Tribunal de Segurança Nacional, que era um tribunal de exceção da Ditadura Vargas e, nesse primeiro julgamento, ele foi absolvido. O que ele faz? Ele pegou uma caixa de bombons meio comida, incompleta e mandou essa caixa para o presidente do Conselho Nacional do Petróleo, general Horta Barbosa, e disse o seguinte, que estava mandando um presente, agradeceu o tempo em que passou preso, quando teve oportunidade de conhecer gente muito melhor do que o primeiro escalão do governo.
O que aconteceu? O tribunal recorreu e ele foi condenado por conta desse ato intempestivo. Esse era o Lobato. Um cara que funcionava intempestivamente.
Terra Magazine: O que o senhor acha da inclusão de notas explicativas nas próximas edições dos livros de Lobato?VC: Acho que alterar a escrita dele, de forma alguma. Talvez, colocar numa introdução, uma explicação, até para orientar o mediador para a leitura da criança, seja o pai, seja o professor.
Fonte: Terra Magazine
O historiador Vladimir Sacchetta, co-autor da biografia Monteiro Lobato — Furacão na Botocúndia, relativiza a identificação do criador de Emília com a eugenia. Segundo ele, as acusações de racismo endereçadas ao escritor não passam de "bobagem", uma atitude “extemporânea”.
“No livro (Caçadas de Pedrinho), eles caçam e matam uma onça pintada. Hoje seria um crime ambiental. Naquele momento, não era. O mesmo acontece com as expressões usadas pela Emília. Se ela chama a Tia Nastácia de "negra beiçuda" ou "negra de estimação", isso não significa que ela está com uma atitude racista”, afirma o biógrafo em entrevista a Ana Cláudia Barros, do Terra Magazine.
Para Sacchetta, no entanto, “é indefensável" a defesa que Lobato faz da Ku Klux Klan. “Isso é bem pesado. Mas, ao mesmo tempo, Lobato tinha sido editor do Lima Barreto. Entendeu? Ele funcionava por impulso. Sabe excitação intelectual? Aí, ele banca uma Emília, que mostra a língua. Isso não diminui a importância do Lobato para a cultura brasileira.”
Confira abaixo a entrevista.
Terra Magazine: Qual era a relação de Monteiro Lobato com a eugenia? Vladimir Sacchetta: É preciso entender a relação do Lobato com a eugenia no seu tempo. Não adianta olhar para a eugenia hoje, tendo acontecido o que aconteceu na aplicação desta teoria para se chegar à raça pura, coisa que o nazismo fez.
É a mesma coisa que discutir as malcriações que a Emília fazia para a tia Nastácia em 1933, passando pelo filtro do politicamente correto do século XXI. Hoje é inadmissível que se coloque, em qualquer livro, expressões como "negra beiçuda", "negra de estimação", coisa que o Lobato fazia naquele momento no qual não se discutia o politicamente correto. Ponto.
Lobato tinha o maior apreço pela Tia Nastácia dentro da sua obra. Tanto que ela é a própria criadora da Emília, seu personagem mais importante. Ela é a detentora de um saber popular, diferente do saber livresco do Visconde de Sabugosa.
Terra Magazine: Na sua interpretação, essas expressões apontadas pelos críticos de Lobato são racistas?
VC: Não chamo de racistas. Racista é uma atitude muito negativa com relação à raça negra. Elas se tornam racistas se você enxergá-las sob o prisma do politicamente correto dos dias de hoje.
Terra Magazine: O que você está destacando é que eram expressões correntes na época...
VC: Correntes, correntes. A Emília é uma projeção do próprio Lobato, é o alterego do Lobato para dar voz e vez às crianças daquele tempo que não tinham voz nem vez. O Lobato quebra essa hierarquia adulto-criança e cria essa personagem que questiona, é irreverente, pensa com a cabeça própria. Lobato veio subverter a ordem adulto-criança. Mais do que isso: ele considerava a criança um ser inteligente. Não era um adulto em miniatura, nem um idiota. A obra dele coloca a criança como um ser inteligente o tempo todo.
Chamar o Lobato de racista é complicado. Tanto que se você pegar o conto Negrinha, que dá título ao livro de 1920, 1921, vai ver a história da negrinha, filha de ex-escrava que é massacrada, torturada, violentada dentro de uma casa de uma senhora virtuosa, branca. Aquilo é um libelo contra uma sociedade branca, racista e mais, com a conivência da igreja católica.
Terra Magazine: Como biógrafo de Lobato, como você avalia essas críticas, acusações de que ele seria racista?VC: Acho uma bobagem. É uma discussão extemporânea. Primeiro, a obra de Lobato não tem que ser modificada, alterada nem mexida. Cabe ao professor, que faz a mediação entre o livro e a criança ou a ao pai, uma explicação disso. Por que essa expressão era corrente e possível naquela época. Estamos falando de 1933, ano de Caçadas de Pedrinho, que é o tema atual por conta do parecer do Conselho Nacional de Educação.
No livro, eles caçam e matam uma onça pintada. Hoje seria um crime ambiental. Naquele momento não era. O mesmo acontece com as expressões usadas pela Emília. Se ela chama a Tia Nastácia de "negra beiçuda" ou "negra de estimação", isso não significa que ela está com uma atitude racista.
Terra Magazine: Você falou em contextualizar, mas um dos argumentos dos que criticam essas expressões na obra de Lobato é que nem todo professor, nem todas instituições de ensino estariam preparados para fazer essa contextualização. Há quem defenda que os livros, por essa razão, não deveriam ser adotados pelas escolas públicas. O que você acha disso?
VC: É uma atitude radical. O professor tem que estar preparado para essa mediação e para essa explicação. Dentro da preparação de um educador, de quem faz essa mediação da leitura...Estamos falando em crianças e jovens de 12, 14 anos, no máximo. É essa faixa que lê a obra.
Terra Magazine: Um pouco mais jovem...VC: Um pouco mais novos. Acho que cabe ao educador apontar, contextualizar, datar, explicar falando que isso hoje é inadmissível. Se a Emília vivesse hoje, não usaria essas expressões.
Tivemos uma abolição tardia. O Lobato nasce seis anos antes da Abolição. Ainda estava muito fresco. Tanto o interior quanto a cidade de São Paulo tinham ex-escravos. Ele teve ama de leite. As histórias que ele traz para sua obra, Saci, mitos brasileiros, ele ouviu das ex-escravas. Lobato teve uma Nastácia que foi babá de um dos filhos dele.
Terra Magazine: Voltando para a questão da eugenia. Numas das carta que ele escreveu para Godofredo Rangel, o escritor sugeriu que a literatura "é um processo indireto de fazer eugenia, e os processos indiretos, no Brasil, 'work' muito mais eficientemente". No livro Raça Pura, da historiadora Pietra Diwan, Lobato também é citado como alguém que demonstrava simpatia pelo movimento eugenista. Na condição de biógrafo, como você descreve a relação do Lobato com a eugenia?
VC: O Lobato, como um intelectual curioso com as ideias, se metia a pensar a respeito de tudo e dava suas opiniões, seus palpites. Creio que, naquele momento, ele achava isso. Isso não significa que ele, mais para frente, vá defender a eugenia.
Lobato estava sempre revendo seus conceitos. Em 1914, ele cria o Jeca Tatu e diz que era indolente, preguiçoso, sacerdote da lei do menor esforço. Quatro anos depois, ao tomar contato com as pesquisas do Belisário Pena e do Arthur Neiva sobre saúde pública, ele vê que o Jeca Tatu é um homem do campo excluído e doente. Na segunda edição de Urupês, ele pede desculpa ao Jeca Tatu e diz: - Jeca, você não é assim. Você está assim porque carrega vermes, protozoários, amebas. Ele usa Expressão "zoológico de protozoários".
Terra Magazine: O que você está querendo destacar é que Lobato era capaz de reconsiderar uma posição?
VC: Reconsiderou uma posição. Nessa carta que deu a polêmica entre a autora Ana Maria Gonçalves e o Ziraldo (a carta enviada a Godofredo Rangel que fala sobre mestiçagem), ela cita um trecho que está na primeira edição da Barca de Gleyre, de 1944. Na segunda edição, que está na obra completa, organizada por Lobato para a Brasiliense, aquele trecho foi suprimido.
Terra Magazine: Por que foi suprimido?VC: Porque ele repensou, viu que não tinha nada a ver e cortou.
Terra Magazine: Numa carta escrita a Arthur Neiva, em 15 de dezembro de 1935, e publicada na última edição da Bravo!, Lobato, ao se referir à mestiçagem na Bahia, diz: "Mas que feio material humano formiga entre tanta pedra velha!A massa popular é possivelmente um resíduo, um detrito biológico. Já a elite que brota como flor desse esterco tem todas as finuras cortesãs das raças bem amadurecidas".VC: O Lobato tinha esses impulsos. Ele falava o que achava. Isso não diminui a grandeza dele e nem deve ser posto sob o tapete por seus admiradores, biógrafos.
Terra Magazine: Uma crítica que costuma ser feita é que esse lado do Lobato simpático à eugenia, o suposto racismo não são retratados pelos biógrafos. Como você vê isto?VC: Lobato é um escritor, cidadão cercado de preconceitos por todos os lados. Por exemplo, Lobato e a Semana de 22, que se coloca como marco zero da cultura brasileira e a partir dela se cria uma figura teórica do Pré-modernismo. A semana de 1922 quis trazer Lobato para seu grupo e ele não topou porque achava que os modernistas brasileiros estavam importando escolas estrangeiras, europeias, sem o devido espírito crítico.
Ele faz aquela crítica à exposição da Anita Malfatti. Os modernistas e os críticos da escola modernista pegam e recortam essa crítica dele e pegam trechos em que Lobato é radicalmente contra essa importação dos "ismos", como ele dizia, chamava de arte caricatural. Eles descontextualizam o texto em que Lobato fala que Anita era uma pintora poderosa, dominava a técnica. Ele faz muitos elogios a ela.
Mas pegam o trecho em que ele critica dessa forma "lobatiana". Ele usa expressões muito duras porque era um polemista. Aí, inventam um rompimento radical com o movimento modernista, o que é uma mentira, uma bobagem.
Terra Magazine: Em outra carta de Lobato, também publicada na Bravo! — e apresentada em fevereiro na "Carta aberta a Ziraldo" da escritora Ana Maria Gonçalves —, ele diz: "País mestiço onde branco não tem força para criar uma Ku Klux Klan, é país perdido".VC: Claro que a defesa da Ku Klux Klan é indefensável. Isso é bem pesado. Mas, ao mesmo tempo, Lobato tinha sido editor do Lima Barreto. Entendeu? Ele funcionava por impulso. Sabe excitação intelectual? Aí, ele banca uma Emília, que mostra a língua.
Isso não diminui a importância do Lobato para a cultura brasileira. É um homem que levantou a bandeira do petróleo na década de 1930 e hoje temos a Petrobrás. Concebeu, por exemplo, a literatura paradidática. Hoje, ela está em todas as escolas.
Terra Magazine: Na sua opinião, essas questões que estão sendo levantadas podem, de alguma forma, arranhar a imagem do Lobato escritor?VC: Acho que não. O escritor é um homem como outro qualquer. Tem suas contradições. Não é um ser imaculado e puro, coerente o tempo todo. É um ser humano sujeito a chuvas e trovoadas.
Lobato, quando foi preso pela questão do petróleo, passou por um primeiro julgamento no Tribunal de Segurança Nacional, que era um tribunal de exceção da Ditadura Vargas e, nesse primeiro julgamento, ele foi absolvido. O que ele faz? Ele pegou uma caixa de bombons meio comida, incompleta e mandou essa caixa para o presidente do Conselho Nacional do Petróleo, general Horta Barbosa, e disse o seguinte, que estava mandando um presente, agradeceu o tempo em que passou preso, quando teve oportunidade de conhecer gente muito melhor do que o primeiro escalão do governo.
O que aconteceu? O tribunal recorreu e ele foi condenado por conta desse ato intempestivo. Esse era o Lobato. Um cara que funcionava intempestivamente.
Terra Magazine: O que o senhor acha da inclusão de notas explicativas nas próximas edições dos livros de Lobato?VC: Acho que alterar a escrita dele, de forma alguma. Talvez, colocar numa introdução, uma explicação, até para orientar o mediador para a leitura da criança, seja o pai, seja o professor.
Fonte: Terra Magazine
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