segunda-feira, 9 de maio de 2011

Tolerância zero com a tortura

Outro imperdível artigo do sociólogo Marcos Coimbra, no Correio Braziliense:
 
“Para um país como o Brasil, um aspecto da caçada e morte de Osama bin Laden é mais grave que para outros. Talvez não devesse ser assim, pois diz respeito a valores e a princípios universais.
Não haveria motivo para que algumas sociedades fossem mais e outras menos tolerantes com a tortura. O repúdio deveria ser igual, independentemente das particularidades de cada uma.
Não é universal a reprovação de traços culturais bárbaros, mesmo quando fazem parte de tradições milenares? Alguém admite práticas como o apedrejamento ou a ablação de mulheres? Alguém as justifica com base em algum tipo de argumentação, incluindo a invocação da ideia de relativismo?
À medida que a globalização nos torna mais parecidos, muita coisa boa corre o risco de se perder, mas muita coisa ruim desaparece. Se não fosse assim, só haveria a lamentar que o mundo esteja ficando culturalmente menos heterogêneo.
Mas cada sociedade é única e tem uma experiência específica. E coisas que algumas toleram são radicalmente inaceitáveis para outras.
Em quase todos os países da América do Sul, a tortura foi uma presença constante ao longo dos últimos 100 anos. Dezenas de milhares de pessoas foram submetidas às suas formas mais cruéis e muitos milhares morreram. Quem as infligiu foram governos quase sempre de direita e que quase sempre chegaram ao poder por meio de golpes militares.
Faz pouco tempo, em termos históricos, o Brasil viveu uma experiência traumática com ela, da qual não se recuperou totalmente, pois muitas feridas continuam abertas. A anistia apagou diversas coisas, mas a tortura, não (e nem deveria).
Parte fundamental de nossa elite política foi torturada durante o período militar. Hoje, temos uma presidente da República, bem como governadores, prefeitos, senadores, deputados e ministros que sofreram brutalidades nas mãos de agentes públicos. Em nome do risco que representavam para a “segurança nacional”, foram marcados para sempre. Aquilo em que se tornaram, passados 30 anos, é, em si, uma condenação de quem os torturou (ou mandou torturar, pois dá no mesmo).
A trajetória americana é diferente. Lá, por mais belicosa que seja a cultura, não havia uma experiência com ela. Até quando a “guerra ao terror” passou a justificá-la, os americanos podiam se orgulhar dela não fazer parte de sua vida como país civilizado. Nunca houve nos EUA uma Operação Bandeirantes ou um delegado Sérgio Fleury (ainda que o governo os conhecesse e tolerasse seus congêneres mundo afora).
Logo após a execução de Bin Laden, a imprensa americana voltou à discussão dos “métodos extremos de interrogatório”, como eufemisticamente designam a tortura que praticaram contra militantes do radicalismo islâmico, para obter confissões ou colher informações. Como bons burocratas, anotaram até o número de sessões de sevícias a que submeteram algumas lideranças: 183, no caso do segundo na hierarquia da Al-Qaeda, para dar um exemplo.
Com o sucesso da operação, muitos críticos da tortura ficaram sem argumentos e se calaram. Inversamente, os criticados se sentiram vindicados. A morte de Bin Laden desculpou, retrospectivamente, a tortura que o aparato militar e de contra-terrorismo ordenou. Os fins justificaram os meios. Seus porta-vozes se rejubilaram.
Tanto nossas lideranças, quanto nossos jornais preferiram evitar o assunto. Ninguém subscreveu a tese de que, no caso, a tortura era aceitável (salvo os Fleurys da imprensa). Houve declarações de repúdio, mas foram poucas.
A eficácia da tortura é o argumento dos ditadores e dos torturadores. Com relação a ela, não cabe qualquer tolerância. O mundo civilizado já disse que não a aceita, em qualquer intensidade ou proporção: ela é inadmissível. Admitida, quem estiver no comando pode querer usá-la, do fanático ao brutamontes.
Os americanos ficaram felizes quando o prefeito de Nova Iorque disse que teria tolerância zero para com as pequenas infrações, pois, se as aceitasse, não teria como dizer um basta às grandes. Quem jogasse um papel de bala no chão era um infrator e como tal deveria ser penalizado.
É triste ver onde chegaram. Ou tomam cuidado, ou, daqui a pouco, estarão achando natural que qualquer um faça justiça com as próprias mãos. Para que leis, se nem o Estado, quando se sente moralmente justificado, as obedece?”

Buscado no Tijolaço

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