buscado no Gilson Sampaio
Mauro Santayana
Estamos
necessitando, e com urgência, de refletir sobre os fundamentos do
Estado Democrático. Mesmo nas monarquias, quando não absolutas, o poder
emana do povo, e é exercido pelo Parlamento que o representa. Cabe ao
Parlamento legislar e, nessa tarefa, estabelecer as prerrogativas e os
limites dos outros dois poderes, o Executivo e o Judiciário. Todas as
leis, que estabelecem as regras de convívio na sociedade e organizam e
normatizam a ação do Poder Judiciário e do Executivo, têm que ser
discutidas e aprovadas pelos parlamentares, para que tenham a
legitimidade, uma vez que representam a vontade popular.
Só
o Poder Legislativo, conforme a obviedade de sua definição, outorga
estatutos ao governo e, em alguns casos, reforma o próprio Estado, se
for eleito como poder constituinte. O Parlamento, ao receber do povo o
poder legislativo, não pode delegá-lo a ninguém, nem mesmo a outras
instituições do Estado.
Durante o governo militar, houve momentos que engrandeceram o Congresso Nacional
Em
nosso caso, em consequência das deformações impostas pelos acidentes
históricos, o Parlamento se viu enfraquecido e se submeteu ao Poder
Executivo. Houve, durante o governo militar, momentos que engrandeceram o
Congresso Nacional, entre eles a recusa de dar licença para que Márcio
Moreira Alves fosse processado pelos militares. O AI-5, com todas as
suas consequências, foi um momento de grandeza na história do Parlamento
Nacional, como foi o do fechamento da primeira Assembleia Constituinte
por Pedro I. Mas o Parlamento não soube reagir quando Fernando Henrique
mutilou a Constituição de 1988, no caso da reeleição e na supressão do
artigo 170, que tratava da ordem econômica.
Os
parlamentos, ao representarem as sociedades humanas, e imperfeitas, não
podem ser instituições exemplares. John Wilkes, o paladino da liberdade
de imprensa — e cujo nome, um século mais tarde, foi usado pelo pai do
assassino de Lincoln para batizar o filho — era um dos homens mais
feios e mais inteligentes da Inglaterra, foi membro da Câmara dos
Comuns e prefeito de Londres. Libertário, e libertino, segundo seus
opositores, publicou em seu jornal que o rei George III era um marido
enganado pela rainha e deu o nome do amante. Mas ficou famoso sobretudo
pelo debate com John Montagu, Lord Sandwich (o das Ilhas e do pão com
carne). Montagu o insultou, dizendo-lhe que não sabia como Wilkes
morreria, se nas galés ou de sífilis. Wilkes lhe respondeu, de
bate-pronto: Isso depende, mylord, de que eu abrace os seus princípios morais ou sua mulher.
A corrupção sempre existiu nas casas parlamentares. Jugurta, o rei da
Numídia, se dirigiu ao Senado Romano, dizendo que Roma era uma cidade à
venda, desde que houvesse alguém disposto a comprá-la.
Em
sua coluna de domingo, Élio Gaspari, ao analisar o conflito latente
entre o STF e a Câmara dos Deputados, sobre a atribuição de cassar
mandatos, lembrou que, nos Estados Unidos, a Justiça não cassa mandatos,
e citou o caso de Jay Kim que, condenado, em 1998, a dois meses de
prisão domiciliar por ter aceitado dinheiro de caixa dois, ia, de
tornozeleira eletrônica, a todas as sessões da Casa dos Representantes.
Preso,
duas vezes, por corrupção, John Michael Curley, foi eleito, primeiro
para vereador em Boston e, depois, para a Casa dos Representantes
(deputado federal). Manteve seu prestígio político junto aos eleitores
mais pobres, muitos deles de origem irlandesa, e foi eleito quatro vezes
prefeito de Boston, a partir de 1914. E no exercício do mandato de
prefeito, em 1947, esteve preso e disputou a reeleição, perdendo-a, e
foi perdoado por Truman, em 1950.
Nenhuma comunidade humana é composta de anjos
Essa
tradição vem de longe. Em 1797, o representante Mattew Lyon, um
radical, cuspiu na face de seu oponente Roger Griswold, que respondeu
com bengaladas. Lyon se valeu de uma tenaz de lareira, e o duelo ficou
famoso na história do Parlamento. Os federalistas tentaram cassar o
mandato de Lyon, sem êxito, mas, processado por sedição, ele foi preso e
condenado a uma multa, de mil dólares, elevadíssima para a época. E,
embora estivesse na prisão, foi reeleito para a Casa dos Representantes.
Reelegeu-se durante mandatos seguidos. Quarenta anos depois de ter sido
preso, foi reabilitado e recebeu, de volta, e com juros, a multa a que
fora condenado.
Nenhuma comunidade humana, das
instituições religiosas aos partidos políticos e às corporações
profissionais e aos tribunais, é composta de anjos. Isso não significa
que a corrupção deva ser tolerada. É nesse, e em outros embates, que se
faz a História.
Com todo o respeito pela
Justiça, o Supremo não pode decretar a perda de mandatos parlamentares, e
o apelo ao sistema norte-americano foi precipitado, de acordo com os
fatos históricos.
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