Buscado no Matutações
De acordo com o
rabino-chefe das Congregações Hebraicas Unidas da Inglaterra,
Jonathan Sacks, não é porque os judeus
sejam os melhores, os mais inteligentes e superiores a todos.
Freud, outro judeu, provavelmente torturado pelo
enorme peso da responsabilidade que essa Escolha Divina fazia recair
sobre as suas costas, dissecou bem os mecanismos da denegação,
ou seja, “uma maneira de repelir, através de projeção, a ideia
que acaba de aflorar em sua mente”. O psicanalista Jean Hyppolite
diz que há aí “um modo de apresentar o que se é à maneira do
não ser”.
Mas, por mais que isso
eventualmente nos bastasse ou satisfizesse como explicação de
certos conflitos, não podemos deixar de ir além: “Não se trata,
então, de uma ‘solução’ simétrica, onde um ‘não’ é
equivalente a um ‘sim’ e vice-versa, procedimento este que
reduziria ‘Die Verneinung’ [a denegação] a uma formulação
técnica sobre a defesa do ego. A intervenção de Freud extrai do
enunciado o campo da enunciação fazendo vigorar a divisão fundante
do sujeito. Suspende o ‘não’, mas atesta a denegação –
Abweisung – na medida em que não procura reintroduzir o
excluído nem completar o discurso, que é sempre falho.
[...] O sujeito da enunciação, que o desejo atravessa, não
se confunde com a cadeia do enunciado; ele é deduzido da fórmula da
negação. [...] O psicanalista afirma, como sendo exato, o
que a neurose rejeita”
É a velha fórmula da inconsistência do
inconsciente, o famoso sujeito dividido, inaugurado – ou revelado –
por Freud e pela Psicanálise, que, junto com outros pensadores que o
precederam, acabou de vez com as pretensões divinas de um Homem que,
pensante, julgava-se único e acima de tudo.
Mas voltando à denegação de Jonathan Sacks e do
povo escolhido, a questão então parece ser essa, ou seja, uma
grande e coletiva neurose.
Que terá, ninguém duvida nem questiona, as
justificativas históricas que remontam à própria fundação desse
povo enquanto povo perseguido.
O que se questiona é a escolha do mecanismo com o
qual se vai elaborar a estratégia de sobrevivência e contraposição
à perseguição.
E a escolha dos judeus parece ser essa escolha
neurótica: somos o povo escolhido (bem no fundo, no inconsciente,
“sabemos” que não somos, mas não queremos admitir, por ser
insuportável o contrário – e tanto mais insuportável fica quanto
mais tempo passa e quanto mais nos comprometemos, nas nossas ações
históricas, com essa ilusão).
Que esse mecanismo tenha servido de elo
identitário que viabilizou a sobrevivência física e simbólica
desse povo há 5.000 anos, muito bem. O ser humano dava os seus
primeiros passos na construção de um mundo que aos poucos se
diferenciava do mundo animal, e os judeus terão a importância e o
reconhecimento garantido na escala evolutiva e histórica da
humanidade ao se distanciarem do mundo anímico de então e adotarem
um Deus único, à imagem e semelhança do Homem.
São, senão os inventores do monoteísmo, seus
grandes propulsores.
Mas o monoteísmo evoluiu, e deu um grande passo
com o advento do Cristianismo: acabou-se com essa estória de povo
escolhido e agora, todos pertencem a Deus (“Vinde
a mim os pobres e oprimidos, pois deles é o Reino de Deus”, etc,
etc).
(E nem por isso os cristãos deixaram, também
eles, de cometer incontáveis barbaridades: se por um lado tinham
agora um Deus 100% democrático, e que a todos incluía, sentiram-se
também na obrigação de dominar o mundo, já que Deus agora a tudo
e a todos abarcava)
Que essa estrutura arcaica e chauvinista (um Deus
único, mas só para nós) tenha persistido,
inalterada e, pior, cada vez mais recalcada, e pareça justificar –
porque mais que neguem – um certo estado de coisas, já é demais.
A histórica perseguição aos judeus só consegue
chegar aos dias de hoje com a força e com a especificidade com que
chega porque potencializada por esse recalque da “Escolha Divina”,
que não quer ser analisado porque isso significaria dizer que não
há mesmo o que fazer, que não são melhores, e que, na verdade,
estiveram em pior situação do que outros durante muito tempo.
Mas a perseguição coletiva não é prerrogativa
dos judeus, e, infelizmente, a História não se cansa de compilar
exemplos os mais diversos e tão ou mais graves do que os que
vitimaram os judeus, e o faz exatamente para que não nos esqueçamos,
todos nós.
E nem por isso os outros povos clamam para si
direitos absolutos e exclusivos. Tudo o que querem é, no máximo, o
direito de existir na diferença.
Nesse sentido, os judeus comportam-se de forma
primitiva, não abrindo mão, até hoje, de estratégias de
sobrevivência que se aplicavam ao contexto pré-histórico de há
5.000 anos atrás, mas que precisam urgentemente ser atualizadas para
considerar tudo o que aconteceu desde então, e acabam pondo a perder
o tanto que muitas de suas figuras ilustres já deram à humanidade
ao longo desse percurso (e certamente terão sido aqueles que falavam
não como judeus, mas como humanos).
E se este texto leviano confunde judaísmo com
sionismo, que a confusão seja então desfeita na realidade concreta,
e não no discurso, e que o sionismo deixe de ser a força que acaba
causando essa confusão.
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