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Livro
do jornalista Mário Magalhães revela que guerrilheiro estava
desarmado quando foi morto pelo Dops, em 69. Biografia revela doações
de artistas como Miró e Godard e “mensalinho” pago por Adhemar
de Barros ao comunista
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Dops-RJ
/ Divulgação biografia Marighella
Marighella
mostra a jornalistas ferimento a bala em prisão no cinema, em
1964
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O
jornal francês “Le Monde” o chamava de “mulato hercúleo”,
a revista Time fantasiou olhos verdes – eram castanhos –, a CIA
(Agência Central de Inteligência dos Estados Unidos) o descreveu
em relatórios como “sucessor de Guevara” e inspirador de
movimentos revolucionários na América Latina. Deputado da
constituinte de 1946, cassado quando o partido foi declarado ilegal,
o baiano Carlos Marighella aderiu à luta armada durante a ditadura
militar, instituída em 1964.
Fundou
e comandou a maior organização do gênero, a ALN (Ação
Libertadora Nacional), e passou a “inimigo público número 1”,
nas palavras do ministro da Justiça, Gama e Silva. Marighella viveu
e sofreu quatro das décadas mais intensas da política nacional.
Desarmado,
sem seguranças e de peruca, sua vida acabou com quatro tiros, em
novembro de 1969, ao tentar alcançar o veneno que levava na pasta,
em um “ponto” da ALN, na Alameda Casa Branca, em São Paulo.
Organizada pelo temido delegado do Dops (Departamento de Ordem
Política e Social) paulista Sérgio Paranhos Fleury, que lhe deu
voz de prisão antes da fuzilaria, a operação tinha mais de 30
policiais. “Matamos Carlos Marighella”, contou uma agente à
mãe, por telefone.
Figura
notória na ditadura, quando estampou duas capas da revista Veja,
Marighella passou a um nome esquecido da História brasileira, quase
ausente nos livros escolares e desconhecido da juventude. O
jornalista Mário Magalhães, 48, dedicou nove anos – mais de um
terço de sua carreira de 26 anos – para resgatar a história “de
cinema” desse neto de escravos e filho de italiano em 732 páginas
no livro “Marighella – O Guerrilheiro que incendiou o mundo”,
da Companhia das Letras (R$ 56,50).
Invisível
nos livros de História
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Polícia
SP/ Divulgação biografia
Marighella
fichado pela polícia política, em 1939, em São Paulo
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“De
todos os brasileiros, a vida que identifiquei como a mais fascinante
a ser contada foi a de Marighella. Pode-se não gostar dele, mas é
impossível ficar indiferente a ele. É um gigante da História do
Brasil e um dos brasileiros com maior projeção no exterior. A
ausência dele nos livros de História é uma desonestidade
intelectual – seria o equivalente a tirar Carlos Lacerda. Não
defendo que o promovam, mas não podem omiti-lo”, disse Mário
Magalhães ao iG.
Tendo
passado boa parte de sua atividade política na clandestinidade,
Marighella dificultou o trabalho de seu biógrafo, não tendo
deixado diários ou agendas. Para escrever sua reportagem predileta,
Magalhães entrevistou 256 pessoas, consultou bibliografia de 600
livros e pesquisou em 32 arquivos públicos – no Brasil, Rússia,
República Tcheca, Estados Unidos e Paraguai.
A
obstinação – quase obsessão – de Mário Magalhães pela
comprovação da prova jornalística o levou a fazer 2580 notas. “A
vida de Marighella é tão espetacular que daria margem ao leitor
imaginar que havia ficção em um livro que só narra fatos reais.
Além disso, é direito do leitor saber a origem de cada
informação”, justificou.
Pelo
projeto de contar a história “de um brasileiro maldito”, “tido
como meio amalucado até por amigos próximos”, Magalhães deixou
um confortável emprego na Folha de S.Paulo, onde tinha sido
ombudsman e trilhara carreira de destaque e prêmios.
Ateu
no candomblé e doações de artistas
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Divulgação/Biografia
Marighella
Após
ser baleado no cinema no Rio, é levado preso
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Na
pesquisa, foram ouvidos da professora no Ginásio da Bahia ao
policial que o revistou logo após a morte e revelou que o
guerrilheiro não estava armado – refutando a versão policial,
que ficou registrada na História. As descobertas do autor
corrigiram lendas, como essa, e revelaram histórias pitorescas.
Mulato
baiano da Fonte Nova, Marighella não bebia, não fumava e, embora
se declarasse ateu, Magalhães descobriu que o filho de mãe carola
iniciou-se no candomblé, e se descobriu “filho de Oxóssi”.
Amante da poesia – no colégio, respondeu uma prova de física com
versos –, o guerrilheiro mais procurado do País encontrou tempo
para, na clandestinidade, escrever, imprimir e distribuir um livro
de versos, boa parte deles eróticos. Inspirou artistas como o
catalão Joan Miró e os cineastas Jean-Luc Godard e Luchino
Visconti a fazer doações a sua causa.
Tortura
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Divulgação
biografia Marighella
Marighella,
aos 24 anos, após três semanas de tortura, no Rio
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Pela
tortura, passou uma vez, em 1936, sob Getúlio Vargas, nunca durante
a ditadura militar iniciada em 64. Foram 22 dias de suplícios nas
mãos da polícia. Socos no estômago, golpes com canos de borracha
nas plantas dos pés, foi açoitado nos rins, costas e nádegas.
Pontas de cigarro eram apagadas no seu corpo. Com um alfinete tirado
da gravata, um policial enfiou-lhe o metal sob as unhas, dedo por
dedo.
Tornou-se
liderança do Partido Comunista Brasileiro nos anos 40, década que
dividiu entre presídios em locais paradisíacos, como Fernando de
Noronha (PE) e Ilha Grande (RJ), e a Assembleia Constituinte, no
Rio. Após ser libertado da prisão política pelo regime de Getúlio
Vargas, no pós-guerra, elegeu-se deputado pela Bahia, na bancada
comunista que incluía o escritor conterrâneo Jorge Amado. O
“Cavaleiro da Esperança” e líder máximo do PCB Luís Carlos
Prestes, foi eleito senador pelo Distrito Federal.
O
deputado tinha três ternos, doados, e amarrava as mangas da camisa
com cordinhas; o cinto partiu-se e adaptou outra corda, qual
capoeirista. Homem de partido, destinava 92% do seus 15 mil
cruzeiros mensais – equivalente a R$ 20.926, em valor corrigido
pelo IGP-DI – ao PCB. Vivia com 1200 cruzeiros – R$ 1674 – por
mês, e dividia o apartamento com uma família e um amigo. Acabou
cassado em 47, com o voto do futuro presidente Juscelino Kubitschek,
depois de o TSE pôr o PCB na ilegalidade.
Terrorista
Nos
anos 50, organizou greves, foi à China e à União Soviética. Veio
a ditadura em abril de 64, e em julho quiseram prendê-lo em um
cinema na Tijuca. Reagiu, levou um tiro e foi levado no camburão.
Mais adiante, passou à luta armada, quando Moscou era contra e
rompeu com o PCB. Criou a ALN e aparecia nos cartazes de
“terroristas procurados” do regime militar.
Homem
de ação, escreveu o “Minimanual do Guerrilheiro Urbano”,
apanhado de erros e acertos da ALN que se tornou um sucesso na
esquerda internacional. Em “Ditadura Escancarada”, o jornalista
Elio Gaspari diz que o “guerrilheiro urbano de Marighella é algo
mais que um super-homem”. A descrição é a de, no mínimo, um
James Bond, o 007 dos filmes e livros de Ian Fleming.
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Divulgação/
Biografia Marighella
Marighella
deputado, com um dos seus três ternos
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“É
muito importante aprender a conduzir um automóvel, pilotar um
avião, dirigir um barco a motor ou a vela”, [o guerrilheiro] deve
“conhecer a arte de se disfarçar”, ter “conhecimento de
química e de combinação de cores, fabricação de carimbos, o
perfeito conhecimento de caligrafia e de imitação das escritas”,
“ser um grande tático e um bom atirador”. O próprio Marighella
falharia em cumprir uma das mais prosaicas “exigências”: não
dirigia. A peruca do disfarce tampouco enganou a polícia na noite
de sua morte.
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Divulgação
/ biografia Marighella
Capa
da biografia de Marighella, de Mário Magalhães
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Magalhães
afirma que, apesar de se definir como “terrorista” e
guerrilheiro, Marighella condenava atentados contra alvos civis e
usava a concepção de “terror” da Resistência francesa à
ocupação nazista na 2ª Guerra Mundial.
Na
ilegalidade, o protagonista do livro recebeu dinheiro da União
Soviética e o autor revela até um “mensalinho” do insuspeito
governador de São Paulo Adhemar de Barros – cujo cofre, após a
morte, abasteceria outra organização armada, a VAR-Palmares, que o
roubou no Rio.
O
famoso “ouro de Moscou”, entregue ao PCB no início dos anos
1960, equivaleria hoje a algo entre US$ 752 mil e US$ 1,13 milhão
pagos anualmente e superava, para efeito de comparação, o
arrecadado em 30 roubos pela ALN em 1968. Antes chamado de
“traidor” por Marighella, Adhemar de Barros lhe pagava um
“mensalinho” de cerca de US$ 10 mil, em apoio ao PCB
clandestino. “Esse mensalinho não lustra a biografia de ninguém”,
disse Mário Magalhães.
Fez
curso de guerrilha em Cuba e mandou guerrilheiros para lá, comandou
assaltos, teve amantes – dizia que “o adultério é tão
inevitável como a morte” – e foi espionado pela CIA e o KGB.
Mesmo dirigente máximo da ALN, organização de luta armada que
fundou, foi “o último a saber” do mais audacioso golpe da
guerrilha no Brasil: o sequestro do embaixador americano Charles
Elbrick, em setembro de 69. Foi ação da DI-GB (Dissidência
Comunista da Guanabara), com o apoio da ALN. “Cutucaram a onça
com vara curta”, pressentiu Marighella.
Morte
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Divulgação/
Biografia Marighella
Mário
Magalhães levou nove anos para escrever a biografia de
Marighella
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Foi
morto exatos dois meses depois, pela equipe do policial Sergio
Fleury, cujos métodos de tortura superavam os do nazista Klaus
Barbie, o “Açougueiro de Lyon” da 2ª Guerra Mundial, na
avaliação de um ex-membro da Resistência francesa, sobrevivente
do suplício físico nos dois lugares.
Diferentemente
do que a polícia alardeou à época, estava desarmado e sem
seguranças. Segundo o autor, Marighella só portava seu revólver
calibre 32 ou sua pistola 9mm em ações, o que não ocorria já
havia algum tempo.
O
guerrilheiro – ou terrorista, dependendo do ponto de vista –
mais procurado do País morreu sozinho, cercado de inimigos.
Lançado
no fim de outubro, no ano seguinte ao centenário de nascimento do
protagonista, o livro já teve 27 mil exemplares impressos (a
tiragem inicial foi de 12 mil) e recebeu o Prêmio da Associação
Paulista de Críticos de Artes, como melhor biografia de 2012.
O
autor disse ter recebido três sondagens para adaptações para o
cinema. “A dúvida é se o ator principal será Denzel Washington
ou Wesley Snipes. As mulheres preferem Washington”, brinca.
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Secretaria
da Segurança Pública SP/DIvulgação
Marighella,
morto no Fusca, em 1969
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