buscado no Quem tem medo da democracia ?
Por Ribamar Bessa(*)
A velhice nos dá coragem. Por isso, depois de tanto
tempo, ouso confessar, publicamente, sem qualquer pudor e até com certo
orgulho, que o cineasta Silvio Tendler e eu, na juventude, dormimos na
mesma cama. Sei que dessa forma escandalizo algumas mentes pudibundas,
como a do general-de-exército Renato César Tibau da Costa. Mas fazer o
quê? Não posso continuar ocultando o fato ocorrido há mais de 40 anos,
porque tem testemunha: a doutora Giane Lessa. Portanto, às favas com os
escrúpulos, como disse o coronel Jarbas Passarinho ao aprovar o AI-5.
Quem é, afinal, o general Renato César? Em 1964, era
apenas um aspirante-a-oficial da arma de Cavalaria, recém saído da
Academia das Agulhas Negras (AMAN). Paraquedista, comandou depois a 1a.
Brigada de Infantaria de Selva, em Boa Vista (RR). Agora, presidente do
Clube Militar, ele organizou, em março, uma festa de arromba para
comemorar o aniversário do golpe de 1964. Ou seja, quase meio século
depois, o general queria celebrar a deposição do presidente eleito por
voto popular, assim como a prisão, tortura, morte ou exílio daqueles que
se opuseram ao golpe.
A velhice deu coragem também a ele. Diz o ditado
popular que quem não tem Rubicão caça com Guaxindiba. O César de
igarapé, numa gesta épica, cruzou, pois, valentemente, o rio Guaxindiba,
em São Gonçalo, atravessou, incólume, o conturbado trânsito da avenida
Rio Branco, entrou sem nenhum ferimento no Clube Militar e, destemido,
sem vergonha na cara, festejou com frase heroica para a posteridade:
- Alea jacta est.
Os dados lançados eram pura provocação do general.
Essa foi, talvez, sua última grande batalha, se é que existiram outras. O
“inimigo” decidiu zonear a festa do general, considerando-a como uma
afronta à sociedade brasileira e à democracia. Manifestantes
protestaram. Houve tumulto generalizado e enfrentamento com a polícia.
Desacostumado com o exercício da discordância, o general ficou chateado
porque cortaram o seu barato. Foi até a 5a. Delegacia de Polícia, no
Centro do Rio, e exigiu abertura de queixa-crime contra Silvio Tendler
por “constrangimento ilegal qualificado”.
Batalha do Clube
O cineasta, efetivamente, em mensagem no you tube,
havia apoiado o protesto, como qualquer cidadão sadio e sensível pode
fazê-lo num regime democrático. Mas acontece que no dia da Batalha do
Clube Militar, 29 de março de 2012, ele se recuperava de uma cirurgia de
descompressão da medula.
- Eu estava em casa, tetraplégico, e eles me
acusaram de ter usado paus e pedras na manifestação – disse Tendler que,
nesta última quinta-feira, depois de meses do ocorrido e ainda com
sequelas da operação, foi depor atendendo intimação do delegado.
A cadeira de rodas que o levou até a delegacia
carregava nela 62 anos de vida bem vivida, 40 filmes que dirigiu e toda
sua história: os cursos de cinema que fez na França, os prêmios de
público e da crítica que ganhou em festivais, os troféus nacionais e
internacionais, os milhões de espectadores que viram seus filmes entre
os quais O Mundo Mágico dos Trapalhões, Jango eOs Anos JK
e até mesmo a medalha Tiradentes, condecoração que recebeu da
Assembleia Legislativa do Rio pelos relevantes serviços prestados à
cultura.
Ex-presidente da Associação Brasileira de Cineastas,
Tendler atuou em diversas frentes culturais: dirigiu a Fundação Rio Arte
e o Centro Cultural Oduvaldo Viana Filho, foi diretor da TV Brasília,
secretário de Cultura e Esporte do governo Cristovão Buarque no Distrito
Federal e Coordenador de Audiovisual para o Brasil e o Mercosul da
Unesco. Professor de Comunicação Social da PUC-RJ, ele não entrou
sozinho na delegacia. Lá estavam, solidários, algumas dezenas de
manifestantes com cartazes e fotos de desaparecidos políticos.
No final, esse inquérito fajuto não vai dar em nada,
mas não pode passar em branco o topete do presidente do Clube Militar,
que não tomou conhecimento do fim da ditadura. Não sabemos se o general
paraquedista Renato César participou das gloriosas batalhas que
aconteceram no governo militar. Numa delas, narrada por Cony, um general
com sua tropa cercou a Faculdade Nacional de Direito e, num arroubo de
bravura, ocupou o território inimigo: a cantina do Centro Acadêmico
Candido de Oliveira (CACO), depois de prender vários “combatentes do
exército adversário”: estudantes imberbes armados de pau e pedra.
Essa foi uma façanha heroica digna do outro César
depois da campanha do Egito. César, não o Renato, mas o Júlio, comemorou
a vitória arrasadora com a conhecida frase “Veni, vidi, vici” (Vim, vi e
venci). Qual a frase do César de igarapé, o general Renato, depois da
Batalha do Clube Militar, quando foi peitado pelo protesto dos
manifestantes? Podia muito bem ser, num latim de missa capenga:
- Veni, vidi et no credo quod vidi (Vim, vi e não acredito no que vi).
Festim diabólico
A César o que é de Renato e a Silvio, o que é de
Tendler. No domingo passado, Silvio Tendler publicou carta endereçada ao
delegado responsável pelo inquérito, onde afirmou com todas as letras
que era contra a comemoração do “aniversário da tenebrosa ditadura, que
torturou, matou, roubou e desapareceu com opositores do regime”.
Protestou contra sua criminalização: quem deve ser incriminado é quem
estava comemorando, contrariando a determinação da presidenta da
República – diz a carta.
O cineasta sugere ao delegado que “procure apurar se o
canalha que prendeu, torturou e humilhou minha mãe nas dependências do
Doi-Codi participou do ‘festim diabólico’. Isso sim é constrangimento
ilegal. E já que se trata de assunto de polícia, aproveite para pedir ao
‘constrangedor ilegal’ que ficou com o relógio da minha mãe – ela
entrou com o relógio no Doi-Codi e saiu sem ele – que o devolva. É fácil
encontrar o meliante.Comece pelo comandante do quartel da Barão de
Mesquita em janeiro de 1971. Já que eles reabriram o assunto, o senhor
pode desenterrar o processo”.
A velhice também deu coragem ao cineasta, que não é
lá tão velho assim. A ele expresso, aqui no Diário do Amazonas, minha
solidariedade. Afinal, ninguém esquece uma cama compartilhada.
Foi assim. Faz alguns anos, uma doutoranda que eu
desorientava, Giane Lessa, me convidou para almoçar num restaurante com
Silvio Tendler, a quem eu não conhecia. Durante o almoço, descobrimos,
surpresos, que nossos caminhos por pouco não se cruzaram: ambos fomos
exilados no Chile e na França, mas ele chegou dias depois de minha saída
desses países.
Tendler perguntou onde eu havia morado em Santiago.
Falei que passei um período na casa do Thiago de Mello e depois fui para
uma pensão. Já quase na sobremesa, ele quis saber o endereço da
pousada:
- Calle Michimalongo – eu disse.
Era muita coincidência, ele havia se hospedado no
mesmo endereço em Santiago, numa casa onde havia três quartos com um
total de 12 camas. Dona Adriana, a proprietária, e Juanita, a empregada,
foram lembradas durante o nosso almoço. Finalmente, depois do cafezinho
e na hora de pagar a conta, quase se despedindo, ele perguntou:
- Por pura curiosidade, qual era teu quarto?
- Aquele que ficava em frente da sala de jantar.
Foi o mesmo quarto que o abrigou.
- Qual das quatro camas?
- A que estava encostada na janela.
Foi aí que descobrimos: no nosso exílio, havíamos
dormido na mesma cama. Depois que eu sai, ele ocupou minha vaga. O
general Renato César que me desculpe, mas eu não podia deixar passar em
branco essa agressão ao meu colega de cama e de exílio. Afinal, como
cantou Paulo Leminski:
En la lucha de classes / todas las armas son buenas: / piedras, / noches,/ poemas.
P.S. – Aos leitores, fiéis e infiéis, que me acompanharam em algumas dessas viagens textuais durante o ano, um Feliz Natal.
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