buscado no trezentos
Por Carlos Henrique Machado Freitas
“Faz-se necessário urgentemente que a arte retorne às suas fontes legítimas. Faz-se imprescindível que adquiramos uma perfeita consciência, direi mais, um perfeito comportamento artístico diante da vida, uma atitude estética, disciplinada, livre, mas legítima, severa apesar de insubmissa, disciplina de todo o ser, para que alcancemos realmente a arte. Só então o indivíduo retornará ao humano. Porque na arte verdadeira o humano é a fatalidade”. (Mário de Andrade – O Baile das Quatro Artes)
Tem uma cabeça de mídia enterrada na Funarte, isso é indiscutível. O fato concreto é que a Funarte – que já foi uma das instituições mais importantes da cultura brasileira – hoje tem como objetivo buscar soluções nos materiais manufaturados da indústria cultural. Não há qualquer perspectiva de valor desde a época em que Ferreira Gullar presidiu esta instituição. Nos últimos dez anos, por exemplo, a Funarte vem sendo presidida de forma ininterrupta, por atores da Globo e, consequentemente o radar da cultura de mídia acaba se instalando no ponto mais alto da Fundação Nacional das Artes. E a história não mente, vivemos desde a gestão de Gullar até os dias atuais, com Grassi, Frateschi, Mambert e, novamente Grassi em uma história cheia de pretensões, cobiças que povoaram a Funarte como valores supremos e a jogou num território deserto de ideias.
Na verdade esta instituição que, na década de 1980, realizava uma audaciosa política e com uma eficácia extraordinária, dentro dos quadrantes do entendimento do mercado cultural trazido pelos seus presidentes, todos profissionais a serviço da mídia hegemônica, efetivamente nenhuma possibilidade foi criada para se inaugurar novas relações e ações com a nova produção cultural e, muito menos com as novas ideias dos grandes intelectuais brasileiros. Tanto que não conseguimos ver perspectiva de futuro para a instituição, tal o caldo previsibilidade que tão somente combina técnicas de editais com liberação de verbas. Ninguém hoje pensa ousadamente, na Funarte, em buscar soluções no contexto universal da cultura brasileira. O que se vê é um relativismo celebralista que, se não faz com que reconheçamos mais como ações do Estado com objetivos específicos de valorizar as artes brasileiras, esse sistema artificial definido pela relação entre a instituição e a mídia, tem objetivos apenas na ordem material.
O uso triunfalista do Projeto Pixinguinha subordinado a interesses de grupos fechados acabou por ser utilizado, nessa sua retomada, somente para criar expectativas e fabricar slogans com significação muito mais pessoal que algo que pudesse assegurar um sentido novo à filosofia do que foi, na nascente, esse grande projeto. E isso se revela uma grande contradição.
Agora mesmo assistimos a um enorme paradoxo, quando indiscutivelmente a Ministra Marta Suplicy busca a valorização da cultura negra. Com um olhar diferente de sua antecessora, Marta promove a “Capacitação para os Editais de Cultura Negra do MinC/Seppir”. Sem dúvida é uma iniciativa que merece aplausos, mas ciente dos paradoxos desse sistema de editais, não podemos deixar de tentar provocar uma reflexão.
Pergunto: é esta a forma de se incentivar a participação da cultura negra nas relações do Estado e sociedade? Essa discussão tem que ser feita porque, sinceramente o fino da observação nos mostra que jamais esse universo extraordinariamente rico proveniente das matrizes africanas de nossa cultura vai se entregar à fúria de um sistema de editais. Como dizia Paulo Freire, burocratizar as mentes desse universo.
O Estado tem que parar de se espelhar no setor corporativo. Ao contrário disso, através da intimidade de grandes pensadores, a Funarte deveria inverter a ordem, identificar o que existe de mais rico nessa cultura autônoma de personalidade excepcional para criar uma aproximação numa nova elaboração estética entre o Estado e a sociedade. É disso que estamos precisando, de uma gestão que explique, que ilumine, que revele biografias de grandes artistas pela riqueza que eles produzirem e não no transe corporativo que vive do anonimato de uma mesa de comissão técnica que é um poço de contradições diante da realidade cultural brasileira.
A atividade criadora corresponde à parte essencial de nossa personalidade. E jamais se deixará levar pelo jogo de contradições e coincidências entre as cartas elaboradas pelos lampejos tecnocráticos e a política cultural de cunho patriarcal.
E se hoje, a Funarte não consegue sequer criar grandes tensões entre ela e o território artístico brasileiro, é porque está consolidado o exílio do que temos de síntese da criação contemporânea brasileira no mundo das artes.
É fundamental a tomada de consciência sensitiva sobre isso. O Estado não pode ser concorrente da sociedade. A cultura brasileira não cabe na lógica de comissão examinadora que já nos massacra pela Lei Rouanet, via departamentos de marketing e editais corporativos. Por isso, a Funarte hoje, diante de seu próprio retrato, é apenas um quarto de dormir.
“Nesse ramo dos conhecimentos humanos tudo está achado, formulado, rotulado e encaixotado; é só prover os alforges da memória. Em todo caso, não transcendas nunca os limites de uma invejável vulgaridade”. (Teoria do Medalhão – Machado de Assis).
Nenhum comentário:
Postar um comentário