quinta-feira, 14 de abril de 2011

Deserto verde

Via Rede Brasil Atual


Anos depois de chegar ao interior paulista, um poderoso herbicida une-se à monocultura e ao eucalipto, prejudicando a saúde, a economia e a cultura da população 

João Peres

O mesmo agrotóxico que mata os peixes deixa Ronaldo Prado sem forças até para caminhar (Foto: Luiz Nogueira)
Eucalipto, monocultura e agrotóxicos. Uma combinação tira o sono – e a saúde – de centenas de famílias em todo o Brasil. O Vale do Paraíba, em São Paulo, região outrora celeiro agrícola, concentra algumas dessas histórias.
José Augusto Ramalho de Matos tira o boné e aponta para o alto da cabeça, na vã tentativa de mostrar a “mancha preta” que está em seu cérebro. Aos 50 anos, Mineiro, como é conhecido, está há cinco aposentado por invalidez e enumera a finalidade dos diversos remédios que toma todos os dias: controle de pressão, problemas cardíacos, dificuldade para dormir. Benedita de Morais Oliveira, 68, lamenta a todo instante o problema que teve há cinco anos. “Um dia, fiz o almoço cedo, comi e tomei uma caneca de água. Quando acabei de engolir, senti como se tivesse levado um soco na cabeça e caí. Pensei que fosse morrer”, conta dona Dita.
Ronaldo Prado Nunes pensava que estava fazendo o melhor dos negócios quando arrendou um terreno em Piquete, no interior paulista, na década de 1990. Os anos de aposentadoria ao lado da mulher, Neusa, corriam bem até a chegada de um indesejado vizinho no ano de 2003. “O negócio é lento, levou quase três anos para a gente perceber. Você vai morrendo devagarzinho, os animais vão morrendo devagarzinho. Quando foi ver, a gente não tinha força para andar, para fazer nada”, lamenta.
Pedro Galvão Moreira é outro que não gostou nada quando se deu conta da troca de vizinhança. Faz mais de 30 anos, e Pedro Santo, 70, ainda não se acostumou com a partida das dezenas de famílias que habitavam a propriedade de Zinho Mineiro, produzindo leite, frutas e verduras. “No começo, todo mundo ficou animado porque ia gerar emprego. Depois vieram as máquinas grandes, e o povo todo foi embora para a cidade”, lembra.
O primeiro integrante da combinação, o eucalipto, espalhou-se pelo país durante a década de 1970, numa faixa que vai do Rio Grande do Sul à Bahia. Em São Luiz do Paraitinga, a primeira empresa a chegar foi a Suzano, exatamente na propriedade de Zinho Mineiro. “O eucalipto não traz nenhum benefício para a cidade. Não emprega pessoas, não produz alimentos, impacta a terra com o uso de agrotóxicos, mas as corporações contam com poderes cooptados”, acusa Marcelo Toledo, coordenador do Movimento em Defesa dos Pequenos Agricultores.
As características naturais do eucalipto não jogam a favor de sua reputação. Acidificação do solo, declínio na produção de matéria orgânica e mudanças irreversíveis na estrutura e na textura dos solos são alguns dos fatores que intensificam outro problema que dá (má) fama a essa árvore, conhecida como uma “bomba sugadora de água”.
Hernán López Echagüe, autor de Crónica del Ocaso, livro que narra problemas semelhantes entre Uruguai e Argentina, calcula que é necessária a utilização de um litro de água para cada dois gramas de eucalipto até o momento do corte. Uma tonelada de pasta de celulose demanda 3 toneladas de madeira. A Bracelpa, entidade que representa as empresas do setor, estima em 13,4 milhões de toneladas a produção brasileira de celulose em 2009. Somando-se toda a cadeia, na produção brasileira de um ano de papel e afins o consumo de água é suficiente para o abastecimento de água de São Paulo, a maior cidade do país, durante 175 dias.
Monocultura
O segundo elemento dessa história, a monocultura, entrou em cena poucos anos depois da chegada do eucalipto ao Vale do Paraíba, mas se intensificou ao longo dos anos 1990 e da primeira década deste século, com a expansão da silvicultura. Foi esse avanço que, em 2003, chamou a atenção de Marcelo Toledo. Em um trabalho sobre a cultura caipira do povo de São Luiz do Paraitinga, o então vereador sentiu que faltavam também escolas, casarões, capelas – e sobrava eucaliptal. Ele tentou em vão, por duas vezes, aprovar projetos na Câmara Municipal para limitar o plantio.
Ao mesmo tempo em que trabalhava com a Defensoria Pública, Toledo organizava reuniões e levantava documentos sobre como a monocultura havia dominado uma cidade que, mesmo nos tempos áureos do café, orgulhava-se de sua produção agropecuária diversificada. “Há uns anos, o prefeito foi construir uma escola num desses bairros com eucaliptais. Hoje, a escola está para ser fechada porque não tem aluno. Precisam trazer gente da cidade para justificar a escola”, diz.
Os dados do Censo Agropecuário do IBGE, divulgados no ano passado, jogam luz sobre o assunto. O Estado de São Paulo tem apenas 13 mil dos 211 mil estabelecimentos que cultivam eucalipto no país, mas responde por mais de um terço da área cortada anualmente. São Luiz do Paraitinga tem 397 estabelecimentos familiares, que ocupam 12.050 hectares, ante 110 fazendas produtoras, instaladas em 16 mil hectares.
Fernando Borges, diretor da ONG Grupo de Estudo e Conscientização Ambiental (Geca), lamenta que o eucalipto tenha dominado terras que poderiam produzir alimentos, e indaga: “Por que o poder público não fiscaliza essa falta de limite na questão do eucalipto? As empresas financiam a campanha desses políticos, e isso dificulta a ação. No futuro, quando essas terras não interessarem mais às empresas, o que vai ser delas?”
A resposta está no sul da Bahia, aonde as empresas de papel e celulose chegaram também na segunda metade do século passado. Hoje, há muitas áreas abandonadas, sem condições para plantio devido aos efeitos agressivos do eucalipto sobre o solo. Uma ação movida no começo dos anos 1990 pelo Ministério Público Federal pede a responsabilização da Veracel por desmatamento da Mata Atlântica. O julgamento em primeira instância, em 2006, definiu que a empresa deve pagar R$ 20 milhões, mas esta recorreu.
As investigações mostraram que a Veracel havia plantado no município de Eunápolis sem o devido Estudo de Impacto Ambiental e que o licenciamento conduzido pelo Centro de Recursos Ambientais da Bahia estava repleto de irregularidades. “É crime organizado”, constata o promotor João Alves, do Ministério Público do Estado da Bahia.
“Estudos revelam que o eucalipto vem secando nascentes, acabando com o solo. Já fomos os maiores produtores do mundo de mamão e graviola. Hoje, Eunápolis tem apenas 18 hectares de feijão, e outras cidades da região não têm nada”, afirma Ivonete Gonçalves, coordenadora do Centro de Estudos e Pesquisas para o Desenvolvimento do Extremo Sul da Bahia (Cepedes). A entidade mostrou que mais de 70% das áreas agricultáveis dos municípios da região estão tomadas pelo eucalipto.
Atrelada à produção de papel e celulose, surge mais uma questão: a Veracel, sozinha, responde a mais de mil ações na Justiça do Trabalho baiana. Entra aí o terceiro ingrediente da história, o agrotóxico. O glifosato foi definitivamente inserido nos eucaliptais com a anuência, pela Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio), do plantio da variedade Roundup Ready (RR) da árvore. As variedades RR são, traduzindo para o português, “prontas para o Roundup”, ou seja, feitas para resistir ao poderoso herbicida da Monsanto, líder mundial na comercialização de agrotóxicos e de sementes geneticamente modificadas. O glifosato, descoberto no fim da década de 1960, logo mostrou uma vantagem competitiva que os produtos até então conhecidos não tinham: é um desfolhante poderoso, que mata tudo o que encontra pelo caminho, exceção feita às plantas RR.
Embora a Monsanto tenha alegado durante anos que o produto era biodegradável, e tenha contado nessa empreitada com o apoio de integrantes de órgãos de regulação, como a CTNBio, diversos levantamentos ao redor do mundo confirmam o contrário. A começar pelo efeito sobre a natureza, os compostos de glifosato, ao matar indiscriminadamente, podem ser uma ameaça à biodiversidade.
Contaminação da água
Como todo agrotóxico, o glifosato, despejado em cursos de rios ou em fontes, contamina a água. É a explicação que a Defensoria Pública em Taubaté cita para o caso de dona Dita. Ela e o marido foram, aos poucos, sendo cercados por eucaliptais. O temor de problemas gerados pelos venenos transformou-se em realidade devido ao uso de agrotóxico a poucos metros da mina d’água utilizada para consumo.
Dona Dita (Foto: Luciano Dinamarco)Cinco anos depois do dia em que sentiu “um soco” na cabeça, ela tem problemas sérios de saúde, é submetida a exames periódicos e depende de medicamentos. O médico que constatou a intoxicação, que preferiu não se identificar, disse que a paciente sofre de abalos psicológicos e físicos irreversíveis, com depressão e ansiedade.
Todos os expostos ao glifosato, de acordo com pesquisas conduzidas no exterior, estão sujeitos a desenvolver câncer. Um estudo realizado na Grã-Bretanha e narrado no livro O Mundo Segundo a Monsanto, da francesa Marie-Monique Robin, mostra que o Roundup leva a mudanças na forma de divisão celular, podendo causar a formação de tumores.
É essa uma das possibilidades que atormentam Ronaldo Prado Nunes. O Scout, “irmão” do Roundup, começou a ser aplicado na propriedade arrendada pela Nobrecel em 2003. “Para economizar mão de obra e energia produtiva, antes de plantar a muda, infestam a terra com toneladas de glifosato, secando os elementos naturais num processo chamado de capina química”, afirma Wagner Giron de la Torre, defensor público que move ações na Justiça contra os danos gerados pelo eucalipto no Vale do Paraíba.
No caso de Piquete, uma pequena rua de terra separa o eucaliptal e a propriedade de seu Ronaldo, onde há diversas árvores frutíferas e animais que ainda hoje, anos depois da interrupção do despejo de Scout, “denunciam o golpe”. Foi a mortandade de peixes que permitiu detectar de onde vinha o problema que afetava a saúde de Ronaldo e a de sua esposa.
Notando a própria saúde abalada, o ex-policial rodoviário iniciou uma peregrinação por médicos. Nos longos meses até descobrir a causa da intoxicação, a esposa foi ficando cada vez mais doente, e chegou o momento em que permanecer em pé era um desafio. Segundo o médico Antônio Rodrigues da Silva, que atendeu o caso, eram a queda na produção dos glóbulos brancos e os problemas nos rins e no estômago fazendo efeito.
Sintomas iguais foram sentidos por Mineiro, a 100 quilômetros dali. Ele começou a trabalhar em eucaliptais na metade da década de 1990, e dez anos depois já estava aposentado pela chamada “invalidez”. “Estou com 50 anos. O que aconteceu para eu estar aposentado nessa idade? Quando entrei na empresa, não teve problema nenhum e eles gostavam, porque eu trabalhava forte. Quando adoeci, fui demitido.”
Agora, como outras pessoas, Mineiro aguarda uma indenização que ao menos pague seu tratamento médico. Há diversas ações, individuais e coletivas, que falam dos efeitos do trio eucalipto-monocultura-agrotóxicos. Até o momento, a Defensoria Pública em Taubaté conseguiu liminares em bairros de São Luiz e de Piquete que impedem a continuidade do plantio. O julgamento do mérito, no entanto, não deve sair tão cedo. “Queremos a condenação do Estado de São Paulo, que, por meio da omissa Secretaria de Meio Ambiente, deveria fiscalizar todas as fazendas. É preciso criar uma zona agroflorestal em cada município, delimitando as áreas de Mata Atlântica”, afirma o defensor Wagner Giron de la Torre.
Em São Luiz, o eventual pagamento de indenizações deve ser revertido a cooperativas de agricultores, para que a cidade possa voltar a produzir alimentos, deixando de depender dos produtos comprados em mercados dos grandes centros.
Em nota, a Monsanto informou que vai reiterar nos julgamentos a segurança de seus produtos à base de glifosato. “O produto Scout foi aprovado pelo Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento quanto à sua eficiência e praticabilidade agronômica, pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária quanto à toxicidade para a saúde e pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente, quanto ao impacto ao meio ambiente”, informa a empresa.
Segundo a Nobrecel, estudos demonstraram que não há ligação entre herbicidas e os fatos apresentados por Ronaldo Prado Nunes. A empresa afirmou que não falaria mais a respeito do caso por ainda não haver julgamento em definitivo. A Votorantim não respondeu aos questionamentos apresentados pela reportagem. 

Buscado no Gilson Sampaio

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