Via Correio da Cidadania
Daniel Chutorianscy
A montanha russa de parquinho mambembe, que é a saúde (em minúsculo mesmo) no Brasil, mal escorada, com grandes e íngremes descidas em que sentimos "dor na barriga", com pequeníssimas e mínimas subidas, oferece uma história frequente de enormes riscos de quedas e mortes.
Do início do século XX até mais ou menos a década de 60, este nosso país não tinha um projeto ou planejamento de Saúde. Anterior a esse período, apareceram os "institutos" com todas aquelas letras: I, B, C, M, TEC etc. etc. e o paternalismo corria solto para lá e para cá.
Era a época do capitalismo selvagem, atrasado, brutal. Pode deixar morrer à vontade que o "exército de reserva" de trabalhadores é muito grande... O primeiro esboço de um projeto nacional de saúde aconteceu durante a primeira Conferência Nacional de Saúde (1963).
Aí, não por acaso, o país começou a industrializar-se, o "mercado" começou a se expandir, as elites perceberam que o modelo capitalista teria que ser mudado, para um mais "moderno", "mais humano", como se o modelo capitalista pudesse ser, alguma vez, mais moderno e humano. Teriam que mudar a forma sem mudar o conteúdo: o lucro, cada vez mais lucro. Tornava-se necessário manter a produção "sadia", sem interrupções.
Não foi à toa que nesse período a ditadura militar, em associação com a elite burguesa pátria, foram os grandes e fiéis fiadores de tal modelo, todo bem orquestrado, com a "doença" do capitalismo juntando-se à "doença" do autoritarismo, sob a batuta da "doença" da força das armas. A repressão imperou com a ausência total de saúde social sob qualquer aspecto. Mais um período de ladeira abaixo, e que ladeira abaixo! A ditadura ‘morreu", mas as suas leis continuaram a existir, como um "fantasma" vivo e atuante. O modelo capitalista, cuja evitação maior é a luta de classes, e que por interesses próprios muda os serviçais, não muda o comando de suas ações.
Na década de 80, nascia o SUS com apoio da direita à esquerda. Era uma mágica ambígua, paradoxal. Algo estava errado, a elite pátria apoiando o novo "modelo", sei lá, aí tem coisa... Que belo nome: Sistema Único de Saúde. Lindo, lindo nome, mas que nunca foi um sistema único de salários, nunca teve um sistema único de serviços e nem um sistema único de situações.
Os milhares de municípios, os estados e o governo federal nunca se entenderam, cada qual fazia ao seu modo e jeito a política de "saúde". Sempre um "passa adiante, senão vira elefante", um "empurrômetro". O famoso mosquito da incompetência, cuja picada tira o sangue da população, do tipo dengoso e inoperante, é federal, estadual ou municipal?
Todos sabemos a dor que nos causa. Mais uma forma de retroceder e descer mais ainda a ladeira, com verbas cada vez menores, e a instituição pública ficando como o rabo do burro, que só cresce para baixo. Para cima, sempre rolam as nossas eternas dívidas com banqueiros, multinacionais e outros "negócios". Nada é por acaso, cada vez mais surgiam magicamente, do nada, num verdadeiro "plim-plim", as instituições privadas nacionais, multinacionais, planos de saúde, enquanto as instituições públicas começavam a ficar anêmicas, cada vez mais fraquinhas.
A falência era visível: diminuição brutal do orçamento da Saúde, Educação, para pagamentos das dívidas externas, internas, intermediárias ; falta de concursos, baixíssimos salários, falta de recursos, "dinossaurização", incentivada pela mídia amestrada e adestrada... "Prognóstico reservado", como dizem os meus colegas médicos nos casos gravíssimos de pacientes à beira da morte, fato mais do que comum nos hospitais públicos.
Nasce o SUS e ao mesmo tempo nasce – finalmente, em parto "a termo" - a privatização da saúde, que de saúde não tem nada, somente a doença e o lucro. Nasce um para começar a morrer o outro. Dificuldades mil e "doença" nos serviços de saúde pública, facilidades mil e "saúde" nas empresas particulares de saúde (saúde?). Crédito fácil, liberação sem demora, nenhum controle de gastos e da "grana". Pois é, quando o gato finge que dorme, os ratos se multiplicam e tomam conta, o gato também vira rato, muita corrupção e nenhuma providência, descontrole e "sempre dando um jeitinho". Para os "amigos" tudo, nada é por acaso. E vamos ladeira abaixo...
Então, continuando esta triste história, duas décadas após o seu início, o moribundo SUS, agora denominado Sistema Único de Salafrarices, sai reabilitado pelo modelo "liberal-capital", como se fosse mais uma novidade. O coelho sai gordo da cartola num novo passe de mágica: o novo modelo de OSs (Organizações Sociais), as chamadas de Oscip (Organização Social da Sociedade Civil de Interesse Público), as OSS (organização social de saúde)... Tudo bem a gosto do "modelito" capitalista, ou seja, a privatização das unidades de saúde públicas, que passam a servir como empresas lucrativas e que desregulamentam tudo o que o trabalhador brasileiro construiu com enorme esforço, apesar de todas as dificuldades, "pulando a cerca", superando cotidianamente os inúmeros obstáculos.
Somente num modelo mercantilista a doença das pessoas é objeto de lucro - a famosa e muito conhecida industrialização da doença. Quanto mais a população adoecer, maiores e mais fáceis os ganhos. Quanto mais doença, mais lucro. A "Organização Social" passa a ser doravante denominada "Organização Sucial", que no vernáculo pátrio remete à súcia, coletivo de pessoas mal afamadas ou de má índole. Não por acaso, juntemos num mesmo tacho: capitalismo, elites, ditaduras, autoritarismo, lucros, planos maquiavélicos, desqualificação, mídia adestrada e amestrada, tudo muito bem misturado, e veremos o que é a formula da saúde (saúde?) da população.
Esta triste história de doença se passou em menos de trinta anos, graças à complacência e obediência de quem? Dos mesmos "gatinhos de armazém", que "dormem" o dia todo em cima do saco... Imagine só que perigo a população tendo saúde clínica e social! "Mulambo", que é a forma de se referir ao "povão", tem que continuar a ser "mulambo" a vida toda, eis a proposição e pensamento das elites neoliberais.
Vamos assistir a este espetáculo cruel de "bico calado"? Vamos nos deixar "adoecer"? Vamos nos deixar privatizar? Vamos nos deixar desregulamentar? Vamos nos deixar desqualificar? Vamos deixar o serviço público ir para o brejo e descer ladeira abaixo?
Não foi essa a organização social que a população brasileira desejou. A que exigimos é saudável, justa, libertária. Sem lucros através da doença, estando coletiva e prazerosamente participando da saúde de um país, onde, aí sim, o lema justo seja sempre "Saúde: direito de todos, dever do Estado". E que possa ser dito e assumido livremente, sem golpismos, manipulações, mercantilismos, a plenos pulmões e com toda saúde, sem as venenosas salafrarices ou súcias.
A doença é o impedimento, a paralisia das transformações. A Saúde é o florescimento das transformações. A medicina trata das doenças. A justiça social trata da Saúde.
A nossa montanha russa precisa da vertigem da subida. Chega das quedas bruscas que embrulham e envenenam o estômago da população brasileira. Coloquemos os trilhos alinhados e seguros. O nosso caminho não é a conformação, mas a transformação. Saúde é transformar, e não transtornar, como sempre quis o modelo capitalista, o modelo do medo, da morte, da exclusão, da alienação, enfim, da exclusividade da doença.
Parece uma utopia, mas não é. Acredito nela para que tudo não seja transformado numa imensa barbárie, desde o meu pensamento até a minha existência. Conto sempre com suas magias e encantamentos para revolucionarmos juntos a nossa sociedade. Saúde!
Daniel Chutorianscy é médico.
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