Altamiro da Silva e sua esposa voltaram a estudar “depois de velhos”, como ele mesmo diz. Vivem no assentamento 17 de abril. Altamiro veio de Goiás para trabalhar no garimpo do sul do Pará, mas chegou tarde para a extração manual, atividade já enfraquecida, então. Foi quando decidiu entrar no Movimento dos Trabalhadores Sem Terra. Isso foi há 16 anos.
Ele e a esposa, ambos com mais de 40 anos de idade, estão matriculados agora no ensino fundamental pelo EJA, o programa federal de alfabetização voltado para jovens e adultos. “Essa camisa aqui é o uniforme da escola. Está vendo o meu nome?”, mostra Altamiro.
A filha deles, Gislane, tem 18 anos. A primeira sala de aula em que entrou foi na escola Oziel Alves Pereira, orgulho do assentamento, onde estudou até o terceiro colegial. Os atuais professores do ensino fundamental e muitos do ensino médio se formaram e hoje dão aulas na Oziel.
Ela atende a mais de mil alunos em três turnos, do maternal ao terceiro colegial. A escola leva o nome de um jovem militante que, já no hospital, foi espancado até a morte, no dia do massacre de Eldorado dos Carajás, em 1996.
Hoje, Gislane é professora e trabalha no programa estadual de alfabetização “Sim, eu posso”, também voltado para jovens e adultos. O programa tem 14 professores no assentamento, cada um com cerca de 10 alunos, número máximo por turma. As professoras dão aula em suas próprias casas, mas se for preciso vão até onde os alunos vivem. Gislane viu seis de seus alunos serem certificados este ano.
Ao longo de mais de uma década de militância, o pai dela, Altamiro, ocupou inúmeros cargos dentro do movimento e hoje é fiscal da Associação de Produção e Comercialização dos Trabalhadores Rurais do Assentamento 17 de Abril (ASPCTRA)
O lote de terra que ele ocupa é tido como exemplo de plantio orgânico bem sucedido. Altamiro orgulha-se particularmente do cultivo de cacau, que em 2010 rendeu duas toneladas e meia – mais do que qualquer outro produtor do município.
Muitos dos assentados passam por um processo de formação do MST. Mas, para Altamiro, foi na experiência cotidiana que aprendeu o que sabe: “Já vi muita miséria. Aprendi simplesmente porque colono não pode errar, se não a família toda sofre. É como na escola: quem tira nota baixa não passa de ano”.
Altamiro gosta de se explicar fazendo comparações. Em relação à terra, parece ser ela sua suprema companheira: “ É igual com mulher: no começo você fica deslumbrado, mas depois que se acostuma com ela, já quer trocar. Não pode ser assim, tem que tratar bem a terra, cuidar dela, que a relação dura para sempre”. Quando perguntado se aplica agrotóxicos em seu lote, responde com ternura: “Imagina, você ter uma planta bem linda e alegre, depois você vai jogar veneno nela?”
Segundo Luis Lima, presidente da ASPCTRA, a escola adota o método Paulo Freire, que associa a aprendizagem às questões concretas do cotidiano. Os programas para adultos são sempre divididos em módulos: o estudante passa 45 dias na escola e, em seguida, 60 dias no trabalho prático do campo, para que não se desligue de sua realidade.
Diversas citações de Freire estão pintadas nas paredes da Oziel Alves Pereira.
A escola é reconhecida como uma das melhores da região. É uma construção espaçosa e arejada, de 12 salas de aula equipadas com ar-condicionado, auditório para 100 pessoas, laboratório de química, salas de informática, de vídeo e biblioteca. Os equipamentos doados ao laboratório de química ainda estão encaixotados, já que os professores do próprio assentamento ainda não estão capacitados para utilizá-los: “Já pedimos à Universidade Federal do Pará (UFPA) que mande alguém para dar assistência aos professores. Tem produto químico que já está até vencido”, explica a coordenadora Risângela Almeida.
O objetivo da escola é montar um programa pedagógico que contemple a realidade do campo. Na biblioteca estão guardados dezenas de livros didáticos que foram doados pela Secretaria Estadual de Educação mas que, segundo a coordenadora, são inadequados para qualquer escola fora do Sudeste: “Os jovens estão saindo do campo para trabalhar em qualquer subemprego na Vale do Rio Doce. Queremos formá-los para que criem vínculos com o campo e com sua história”.
Risângela vivia em Brasília quando foi visitar a irmã no assentamento e decidiu que queria viver ali. “No começo é difícil, mas depois a gente vai pegando amor pelas coisas daqui, pelas pessoas. É assim que tem de ser”. Ela já tinha prestado o vestibular várias vezes quando conseguiu entrar no curso de Letras da UFPA através de um convênio entre a universidade e o MST. Durante o dia assistia às aulas e, à tarde, voltava para o assentamento.
Risângela reclama da falta de autonomia em relação à Secretaria de Educação, que é quem financiou a construção da escola. Os trinta professores são selecionados pelo município de Eldorado dos Carajás: “Conseguimos ao menos que a Secretaria desse prioridade a professores do assentamento. Não queremos gente de fora”.
A coordenadora ressalta a importância do currículo de português. Acredita que os alunos devam aprender a ler e a escrever com fluência antes de estudarem a gramática: “Temos de dar o que eles realmente precisam. Discutimos e interpretamos muitos textos na sala de aula”. Uma vez por ano, é organizada a “Noite com poesias”. Na quadra da escola, todos os alunos, do maternal ao colegial, declamam poesias de autoria própria ou de poetas consagrados, como Cecília Meirelles, Vinícius de Morais e até Charles Trocate, militante do MST e autor de três livros de poesia.
Um exemplo sempre citado no assentamento é o de Leonildo, que entrou na escola sem saber ler ou escrever. Agora, com mais de sessenta anos, está na oitava série. Durante a semana de atividades para relembrar o massacre de 17 de abril, ele subiu no palanque da praça central do assentamento para declamar um poema em formato de cordel que ele mesmo escreveu.
Charles Trocate entrou no MST aos 16 anos de idade. Passou nove meses em um programa de estudos. “É aí que se consolidaram em mim preocupações mais gerais, o hábito da leitura, a profunda fé no trabalho coletivo e as primeiras formulações poéticas”, conta.
Hoje ele é da coordenação nacional do movimento. Um poeta reconhecido: “Falam que meus poemas são difíceis, mas eu não sei escrever de outro jeito. Com 16 anos entrei para a escola do movimento e ficava lendo Marx, Gramsci… Imagina só o jeito que eu saía falando das aulas!”, explica. A poesia do uruguaio Mario Benedetti foi uma de suas primeiras leituras. “O poeta se constrói ao construir. Não fica satisfeito até conseguir criar uma grande metáfora. Lia [Walt] Whitman, que me ensinou o poema-conceito; Drummond, que é a base da nossa educação sentimental; Maiakovski, que fala do trabalho na arte”. Tanto aprecia Maiakovski que está aprendendo russo para traduzir um de seus poemas para o português.
Expulso da escola depois de um ano, Charles nunca mais retornou ao sistema de ensino convencional. Quando menino, trabalhou no garimpo por dois anos. Como não era permitida a entrada de mulheres, nem de bebida, os garimpeiros iam à chamada “Cidade do Trinta”, atual Curianópolis, onde Charles passou a vender cuscuz às prostitutas na porta de boates. Trabalhou de bananeiro a engraxate. Foi alfabetizado pela irmã mais velha, que o ensinava a ler placas: “A gente morava na beira do rio, então descíamos para lavar as placas e aprender as letras. Até hoje tenho mania de ler todas as placas que vejo”.
Charles já publicou três livros de poesia pela editora Expressão Popular. No ano passado, foi convidado para fazer parte do Academia de Letras do Sul e Sudeste paraense: “Houve quem se opôs à minha aceitação porque sou do MST”.
Apreciador e estudioso de música, ele também coordena um grupo composto por jovens assentados e inspira-se em compositores consagrados: “Minha mãe colocou o disco do Bob Dylan para tocar quando eu tinha dois anos de idade. Desde então, sou marxista e poeta”, conta aos risos.
Atualmente, está escrevendo um texto sobre a relação entre a arte e o movimento político: “Não acredito em arte camponesa porque não acredito na arte operária. Arte é catarse, emancipa o homem e não pode estar presa a uma classe social”, defende Charles.
Clique aqui para ler o primeiro artigo da série, que fala sobre as sequelas físicas e psicológicas do massacre
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