Via JB
Mauro Santayana
Rigoroso senhor de sua privacidade, Getulio Vargas só se revelou, em toda sua modéstia, em dois grandes momentos: o do exílio em sua fazenda de Itu, no Rio Grande do Sul, e ao disparar contra o coração, na manhã de 24 de agosto de 1954.
No depoimento que deixou – e não teve a repercussão merecida quando editado – sobre aqueles 20 dias de agosto, o embaixador José Sette Câmara, que trabalhava com Lourival Fontes, na Casa Civil da Presidência – durante o mandato constitucional de Getulio – revela como o presidente vivia. Naquela manhã desesperada, ao entrar no quarto amplo de Getulio, ficou espantado com a singeleza do aposento. “Impressionou-me a austeridade e quase pobreza dos móveis negros e pesados. Uma cama de casal de madeira lisa, cinco armários, uma cômoda, um espelho. Nenhuma alfaia, nenhum tapete de luxo”.
Há poucos meses, Villas-Bôas Corrêa lembrava a modéstia de sua vida na estância, longe da família, entre 45 e 50. Ao visitá-la, Villas ficou surpreso: os amplos cômodos com os poucos e indispensáveis móveis rústicos, o quarto com a cama de solteiro, desarrumada, a cadeira que servia de cabide para a roupa de todos os dias, a mesa de trabalho. Assim era o doutor Getulio.
Muito já se escreveu sobre Vargas e seu poder. Com devoção de asceta, a quem ele servia: ao povo brasileiro ou a si mesmo, à sua íntima satisfação de governar? Há na história exemplos de homens assim dedicados ao mando, e também sobre eles perdura o mistério. É este o caso dos dois grandes rivais europeus do século 17, Richelieu e o Conde-Duque de Olivares. Sobre o espanhol existe o belo estudo de Gregório Marañon, La pasión de mandar. Olivares, se concordamos com seu biógrafo, queria o poder pelo poder e suas pompas. No caso de Richelieu, ainda que, no início, tivesse havido a ambição pessoal, a partir de sua vitória sobre a rainha mãe, Maria de Médicis, em novembro de 1630, com o apoio de Luís XIII, ele exerceu o poder pensando só no Estado nacional.
A realidade indica que o momento mais alto – e definitivo – de cada ser humano é o da morte. Se a morte tudo desfaz, não desfaz a vida que houve; ao dar-lhe o ponto final, o destino revela o homem que existiu, em sua perdição ou grandeza. O governo de Vargas foi ditatorial, nos primeiros anos e durante o Estado Novo. Seus inimigos – à direita e à esquerda – nele debitam a violência da polícia política, chefiada por Filinto Müller e seus sequazes nos estados. Mas os fatos históricos – em uma década de depressão mundial e de duros confrontos ideológicos, que levariam à Segunda Guerra Mundial – parecem justificar o autoritarismo do regime do Estado Novo, que durou oito anos, menos 40 dias.
Ao disparar contra o coração, aos 71 anos – em plena vitalidade intelectual – Vargas não o fez para expiar culpas, mas, sim, e isso se torna a cada dia mais claro, para dar ao povo uma bandeira de resistência contra os inimigos que o haviam acossado naquele agosto sombrio. O poder, para Vargas, era a dedicação plena e austera ao Estado. Ele só usufruía de prazeres frugais, como os passeios curtos de automóvel, conforme seu diário.
Uma coisa nos parece certa, nestes meses de morna campanha eleitoral: faltam líderes que saibam o que é o Estado, e se disponham a entregar-se inteiramente à nação, até o ato final, como foram Getulio e, em sua própria circunstância, Tancredo Neves.
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