buscado no Xingu Vivo
Por Verena Glass
Ruy Sposati é um jovem jornalista paulistano. Largou a metrópole pra trás e, há um ano, embrenhou-se na Amazônia. Cumpre a solitária tarefa de cobrir o dia-a-dia da construção de uma das maiores obras no Brasil de Dilma: a usina de Belo Monte (Blog Escrivinhador, 6.04.2012).
Sposati, que vive em Altamira, Pará, escreve para o movimento Xingu Vivo para Sempre e paga caro pelo trabalho que faz. Ano passado foi ameaçado de morte e nesta semana foi alvo de uma ação que poderíamos definir como censura judicial.
O Escrevinhador conversou, por e-mail, com o jornalista sobre a sua delicada situação. Sposati (foto) conta ainda como está a situação dos trabalhadores. Após uma semana de greve geral, os operários decidiram suspender a paralisação na última quinta (5).
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Ano passado você foi ameaçado de morte. Por quê? Quem ameaçou? Agora, as ameaças voltaram? O que está acontecendo?
Sim, fui ameaçado de morte por dois homens não identificados, enquanto cobria a demissão de, ao menos, 80 trabalhadores que haviam participado de uma greve uma semana antes, no final de 2011. Consegui fotografar a placa do veículo em que os homens estavam. Depois descobri, com a ajuda do povo do Twitter, que o carro era propriedade da Polícia Militar do Pará. Há uma reportagem no Terra Magazine que expõe bem o contexto em que as coisas aconteceram.
Ameaça de morte eu só recebi essa. Quando cubro Belo Monte, sou sistematicamente perseguido (filmado, fotografado), ameaçado de expulsão ou expulso (por policiais, homens não identificados e/ou diretores do consórcio), recebo ameaças do tipo ”vou te pegar”, sou xingado e questionado (“você não é jornalista”, “você acha que é esperto” é bem recorrente), seja onde estiver.
Empresas responsáveis pela obra teriam pedido na Justiça que você seja impedido de circular pela região. Isso é verdade? Parece uma demanda despropositada. Por que sua presença incomoda tanto? Há outros jornalistas na região?
Sim, é verdade. De fato, sou o único jornalista dedicado a cobrir Belo Monte. Eventualmente temos a presença de jornalistas nacionais e, especialmente, internacionais, mas as pautas deles são, via de regra, aquelas mais generalistas. Não há ninguém, a não ser eu, cobrindo o dia a dia das obras. Isto tem garantido, em alguns momentos, um contraponto interessante das informações oficiais no campo da imprensa – o que, sem dúvida, incomoda o Consórcio Construtor Belo Monte (CCBM).
É surreal. O pedido de liminar do Consórcio me acusa de ser a liderança dessas manifestações, e mistura meu nome a mais outros três – que são verdadeiras lideranças de movimentos, mas que relação nenhuma tiveram com a greve. É curioso o juiz ter dito que a inicial trazia provas irrefutáveis da minha culpabilidade – fotografias que me incriminariam. Na decisão, o juiz afirma que “a turbação encontra-se demonstrada através de fotos (…) juntadas nos autos” e que “com efeito, as fotos trazidas com a inicial revelam existência de ameaças à posse do requerente, que merece proteção”. Hoje fui consultar o processo, curioso sobre as fotos. Em todas elas, eu estou simplesmente empunhando uma câmera e registrando imagens, ou entrevistando os trabalhadores. Na minha leitura, esse interdito judicial está diretamente relacionado à necessidade que o Consórcio tem de censurar a cobertura jornalística que tenho feito sobre Belo Monte.
Em todos esses momentos em que sou seguido, acabo filmado e fotografado – e o processo judicial prova que as filmagens e fotografias são realizadas para tentar me incriminar. Os trabalhadores dizem que é assim também que eles identificam lideranças das greves. Eu mesmo já cobri, no total, cerca de 250 demissões por perseguição política.
Os operários estão ou não em greve? Há informações desencontradas…
Não, na quinta (dia 5), que seria o oitavo dia das paralisações, eles decidiram suspender a greve. Sob pressão do sindicato e do CCBM aceitaram “negociar trabalhando”, com medo de retaliação (leia-se: demissão coletiva, como ocorreu em novembro e em dezembro, fora as demissões avulsas). Dia 10 começará uma rodada de negociação com a empresa. Até dia 16, segundo a comissão da greve, se a empresa não cumprir toda a pauta reivindicatória, eles voltarão à greve.
Há uma parcela importante dos envolvidos na história dedicados a costurar uma narrativa própria para o que anda acontecendo: não, não há greve; ou já houve, mas não há mais; ou, não, não é uma greve, são um punhado de trabalhadores baderneiros; não, sequer são trabalhadores, e sim malucos que são contrários às usinas e estão ofendendo o direito do trabalhador de trabalhar, de obedecer à empresa. Isso não é forma de linguagem: está em discursos, panfletos públicos, declarações para jornalistas e documentos oficiais do sindicato, da Federação e do Consórcio. Tudo isso à sombra da maioria silenciosa – em termos midiáticos – dos trabalhadores, que não conseguem furar o bloqueio nem na cidade.
Você, que esta aí, consegue avaliar a cobertura que a chamada “grande mídia” faz da greve e da própria obra de Belo Monte?
De fato, tem havido um problema sistemático na cobertura da grande imprensa em relação a Belo Monte. O contexto desta e das outras greves deixa isto bem nítido. Por um lado, há esta dificuldade territorial – os correspondentes mais próximos ficam em Belém – há 848 km daqui ou, no mínimo, 120 reais pela passagem de ônibus, que leva um dia ou mais pra chegar; ou de 600 a 1200 reais por um trecho da passagem de avião. Por conta disto, ficam todos reféns das versões oficiais dos fatos – e, é claro que, em uma greve, a versão do patrão é sempre muito diferente da versão do trabalhador. Neste caso, há mais um entrave: uma divergência forte entre a base dos operários e o sindicato que os representa. No meio da greve, foi lançado um abaixo-assinado onde a categoria recusa a representatividade dessa organização, ligada à Força Sindical.
Por conta disso, surgiram as versões macarrônicas da boca do Consórcio Construtor, mas também do sindicato e, especialmente, do presidente da Federação Nacional dos Trabalhadores da Construção Pesada (FENATRACOP), que tem atribuído a “movimentos sociais contrários a Belo Monte” a responsabilidade das manifestações. Na esteira dessa acusação, surgiu o interdito proibitório em meu nome, e no nome de mais três pessoas, onde especificamente eu sou acusado de liderar invasões a ônibus, o bloqueio da Transamazônica e outras coisas.
Enfim, ocorrem greves e os jornais patinando, entre a preguiça, a linha editorial comedida e viciada e a apuração vacilante oficialesca por telefone. Ninguém quer falar diretamente com os trabalhadores.
Por que você decidiu largar a vida em São Paulo e mudar pra Altamira para acompanhar todo esse processo?
Já acompanhava a questão de Belo Monte há um tempo, embora nunca tivesse vindo a Altamira, ao Pará ou sequer à Amazônia. Nunca imaginei que viria parar aqui. Em São Paulo, me batia muito aquela sensação “Não existe amor em SP”, da canção do Criolo. Aí topei vir.
Quando cheguei, tinha uma vaga noção de qual seria meu papel – contudo, conforme o tempo passava e eu assimilava mais as coisas, descobri um mundo completamente diverso, ou melhor, descobri uma imposição muito forte de realizar um trabalho que tinha como premissa ser um jornalismo engajado. Nesse sentido, de um ano pra cá, meu papel de assessoria de imprensa tem se transmutado quase que por completo em papel de reportagem pura. É uma demanda muito forte em um lugar quase que absolutamente abandonado pelo Estado. Curiosamente, no dia 2 de abril, dia do interdito proibitório, completei 1 ano de mudança, de São Paulo para cá.
Tem medo de morrer? Há lideranças de movimentos sociais ameaçadas?
Não tenho medo de morrer. Acredito que as ameaças, no meu caso, em geral, venham mais para intimidar e coagir do que para propriamente eliminar a mim. Também confio que haja uma orientação expressa do governo para que se evite qualquer tipo de crise que tenha como consequência a morte de alguém. Contudo, o modus operandi das coisas no Pará, como se vê, é outro e me preocupa quando envolve a polícia e pessoas sem identificação… Agora, acho que isto é mais preocupante para as lideranças de movimentos sociais ameaçadas. A “regra” paraense se aplicaria mais a estes casos.
Contudo, eu, pessoalmente, acho que perseguição, censura, criminalização e difamação dos movimentos que combatem a construção da usina se dão, aqui, de maneiras muito mais sofisticadas – através de um intenso trabalho de assessorias de comunicação multi-milionárias junto à imprensa, cooptação da imprensa local, workshops, depoimentos de ministros e secretários, flexibilização de leis, interditos proibitórios, processos judiciais – do que, propriamente, com violência.
Agora, é claro que, para quem está no front, como eu, são muito recorrentes perseguições e coações que sempre deixam claro que, se eu fosse adiante, eu seria espancado. Isso eu sinto o tempo todo. Na quarta-feira (dia 4 de abril), na greve, tirei fotografias de pelo menos 5 pessoas, entre policiais, funcionários da assessoria de imprensa FSB Comunicação (que presta serviços ao CCBM), homens não identificados e “camisas azuis” (uniforme das chefias do Consórcio) que me seguiam, me fotografavam e tentavam me intimidar ostensivamente. Um outro diretor do Consórcio tentou tomar minha câmera, tomando um pito até do policial, que negociava com ele e os grevistas. Tenho fotografias e vídeos de quase todas essas ocasiões. Acontece que, para a imprensa, de maneira geral, vale mais a nota oifcial do Consórcio ou, quando interessa, do sindicato.
A população local, em geral, apoia a obra ou é contra (deve haver nuances, você poderia nos explicar isso)?
Eu responderia: a população não apoia a obra. Mas, acredito que a coisa não seja tão binária, ou ainda maniqueísta, como alguns tentam apontar (inclusive quem se posiciona contrário ao projeto). A consciência da população local me parece bastante complexa. Se pergunto a alguém, no final de uma entrevista: “você é contra ou a favor da barragem?”, a resposta mais comum que recebo é “nem contra nem a favor. Eu era contra, mas aí começou… Eu sou a favor porque agora tem bastante emprego, mas um monte é pra gente de fora. Mas é bom pro desenvolvimento do país, né? Por outro lado, sou contra porque vai destruir nosso rio, a floresta, vai alagar nossa cidade, aumenta o preço das coisas, aumenta a violência”. Esta é uma resposta artificial, mas, representa bem, para mim, toda a confusão da opinião das pessoas. Agora, é infinitamente mais fácil encontrar uma fonte que desça o sarrafo na usina, do que uma que defenda. Quem defende de verdade são os latifundiários, empresários, grandes comerciantes, empreiteiros e afins.
As populações locais tem pouca dimensão do debate que Belo Monte representa para o mundo. E não sabem, por exemplo, que Belo Monte está longe de ser um fato consumado, já que a maior parte do empréstimo do BNDES, de mais de 20 bilhões de reais, ainda não foi liberada, e que há outras experiências de obras semelhantes, em contextos muito semelhantes – depois de já terem ocorrido desapropriações e indenizações -, como no caso da hidrelétrica chinesa em Burma, no rio Irrawaddy, em setembro de 2011.
Também é interessante analisar que, quando este projeto se torna um projeto do governo federal, da gestão do Partido dos Trabalhadores, as organizações ligadas a este campo político também passam a tomar uma postura diferenciada, o que refreou em grandes proporções a resistência organizada de movimentos e parlamentares que tradicionalmente lutaram contra a barragem.
Qual sua opinião pessoal sobre a obra de Belo Monte?
Sou absolutamente contrário à construção da usina. E devo dizer, por óbvio, que esta não é a última no rio Xingu. O que reforça ainda mais minha posição. São Paulo e os chineses que se reinventem; isto aqui não é um quintal de alcateias.
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