segunda-feira, 9 de abril de 2012

A Carne, de Júlio Ribeiro: a condição animal humana

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Em obra de 1888, Júlio Ribeiro ousa e faz da literatura naturalista uma forma sensual de denunciar a eterna condição humana.
A obra mais famosa de Júlio Ribeiro, A carne, publicada em 1888 (dois anos antes da morte do autor [literalmente, Barthes]) é, sem dúvida, um dos romances mais ousados e curiosos do naturalismo brasileiro. Ribeiro coloca em cheque o papel que a heroína vinha ocupando nas obras vigentes na época e inverte a posição da fêmea devastada e do macho opressor, clássica no romance brasileiro. Com uma sensualidade iminente e uma tensão sexual pulsante, A carne ainda mostra que mens sana só existe in corpore sano.
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O romance narra a história de Lenita, jovem burguesa, órfã de mãe e que dedica seus dias à literatura e às ciências. Descrente no casamento, nada se preocupa com os prazeres carnais, ocupando-se apenas com o crescimento do intelecto. Dada a morte do pai, Lenita decide passar uma temporada na fazenda do coronel Barbosa, grande amigo de sua família e pai do divorciado Barbosa. Longe da cidade, a jovem começa a perder o interesse nos estudos e passa a sentir seus primeiros tremores sexuais. Com a chegada de Barbosa filho, Lenita consegue um companheiro à altura para suas atividades intelectuais, mas o homem também se mostra a ela um ser no qual pode saciar seus desejos carnais.
A inversão dos papéis masculino e feminino é notada desde o primeiro momento do livro, em que Lenita, por ser filha única, é quem recebe do pai os conhecimentos necessários para dar continuidade ao nome e à sagacidade da família. Quando já na fazenda, Lenita é quem se aventura nas caçadas, tornando-se uma exímia caçadora, sendo Barbosa seu ajudante, levando-lhe a arma e as caças. Diferente das demais heroínas românticas, a protagonista não se deixa sucumbir quando da possibilidade da realização amorosa: ao perceber que Barbosa não era o homem que ela deveria ter para si, é ela quem toma a atitude de se retirar da fazenda e ir para São Paulo. Ao inverso de, por exemplo, O Primo Basílio, o papel de Luísa recai sobre Barbosa que, ao receber a carta de Lenita sobre o casamento e a fuga para Europa, deixa-se quedar ao leito e sucumbe, morrendo ao final do romance - tomando para si o estigma da heroína romântica.
Palavra muitas vezes citada no texto, a carne é o que guia os personagens para as situações que retomam o papel masculino/feminino e os distanciam de seus fluxos. Quando entregue aos estudos e aos demais exercícios intelectuais, Lenita consegue impor-se e mostrar seu lugar na sociedade machista na qual vive, mas, ao clamar os anseios do corpo, a protagonista se deixa sentir sua natureza animal, a da fêmea posicionada abaixo do macho. Lenita, ao banhar-se na cachoeira, antes da chegada de Barbosa, observa seu corpo com um olhar quase masculino, medindo-se, fixando-se nos seios. As inúmeras passagens em que a personagem sente seu corpo (como, por exemplo, no sonho com o herói de bronze) mostram a tensão sexual que começa a vir à tona nela após a morte de seu pai. Eis aqui um ponto interessante: Lenita passa a enxergar-se como mulher após a perda de sua parte masculina, que seria o elo com seu pai. A consciência de sua animalidade se dá, possivelmente, quando a moça observa o ato sexual entre um boi e uma vaca – apontando o livro para o naturalismo (aqui é importante lembrar as diversas citações a Darwin contidas no texto).
Os personagens, ao se entregarem, passam da posição de seres intelectualmente superiores para a de animais com consciência do que fazem, como pode ser observado na passagem: “A palavra amor é um eufemismo para abrandar um pouco a verdade ferina da palavra cio. Fisiologicamente, verdadeiramente, amor e cio vêm a ser uma coisa só” (1972, p.137). E é tal consciência que os perturba: a de que são realmente animais, guiados pela carne e de que corpo e mente não se equiparam, mas formam uma cadeia hierárquica. Em seus momentos finais, paralisado pelo veneno que se auto aplicara, Barbosa percebe que o cérebro e toda sua inteligência de nada valia sem o corpo – “Tudo morrera: só vivia o cérebro, só vivia a consciência, e vivia para a tortura...” (1972, p.180).


Lenita, no fim do romance, se casa, entrando no sistema que tanto lutara contra. Possivelmente percebera que o maior conhecimento que um homem pode ter é que a inteligência sucumbe ao corpo – percepção tardia em Barbosa. E é essa a essência da obra de Júlio Ribeiro: o intelecto pode até guiar o homem, mas, o que manda, é a carne.

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