terça-feira, 10 de abril de 2012

Telma Scherer denuncia monopólio editorial externo na Feira do Livro

buscado no Jornal Hora do Povo 
 

Escritora gaúcha despejada do apartamento, depois de viver alguns anos do seu trabalho, resolve denunciar em performance artística na praça da Feira do Livro de Porto Alegre o sistema do livro-enlatado, sendo alvo de ação truculenta da Brigada Militar do governo tucano em final de mandato, chamada por ninguém
SIDNEI SCHNEIDER

O que a escritora e mestre em literatura Telma Scherer fez na Feira do Livro de Porto Alegre, através da denúncia da casinha de cachorro do escritor e da elegância das bolinhas de sabão da sua performance, foi apontar o dedo na testa dos lançadores de livros estrangeiros enlatados, que acabam por definir toda a cadeia produtiva do livro no Brasil, com reflexos nas feiras e bienais, nas editoras e livrarias, e na vida de todo escritor e leitor.
Ao dizer aos policiais e ao público que a truculenta ação daqueles estava “mandando as pessoas para casa ler Dan Brown”, sabia do que falava. Também, quando declarou nas entrevistas que o protesto não era “contra uma pessoa ou instituição”, mas “contra o sistema literário”, e “se o chapéu serviu em alguém” não podia fazer nada. Perdoem-me alguns amigos, mas o alcance desse protesto não pode ser reduzido ao espaço geográfico de uma praça ou cidade. Minimizá-lo assim é ainda nos deixar levar por um sentimento provinciano a ser superado.


ABOLINDO A CONCORRÊNCIA
Há cerca de um par de décadas, corporações globais com uma prática de arrasa quarteirão passaram a jogar pesado no mercado nacional, um dos maiores do mundo apesar do ainda reduzido hábito de leitura dos brasileiros, buscando abolir esse mercado pela abolição da concorrência. Setor altamente monopolizado, os doze maiores grupos editoriais do planeta, segundo pesquisa da consultoria Euromonitor, são responsáveis por 52% das vendas em 19 países de grande comércio livreiro, incluído o Brasil. Os quatro maiores (Bertelsmann, Thompson, Pearson e Vivendi-Veolia), detém 36%. Para se ter uma ideia, estudo do BNDES de 2005 aponta que a receita da Random House, setor editorial da Bertelsmann, era de R$ 6,413 bilhões, enquanto todas as editoras brasileiras chegavam a R$ 2,477 bilhões, valores da época (Fábio Sá Earp e George Kornis, A economia da cadeia produtiva do livro, BNDES, 2005).
LIVRO DIDÁTICO
O monopólio francês Vivendi-Veolia, segundo seu site internacional, atua em quatro áreas: lixos e esgotos, energia, transportes e águas. Não se conseguiu apurar se o setor livreiro do grupo pertence efetivamente a área de lixos e esgotos, mas a Veolia (nome atual da Vivendi) também é dona da gravadora Universal Music e da GVT brasileira, e abarca junto com a Nestlé o setor de águas (Perrier, Pure Life, São Lourenço, Petrópolis, etc).
Depois de comprar as editoras brasileiras Ática e Scipione, desnacionalizando o setor do livro didático, revendeu-as em 2004 para sua sócia menor, a editora Abril. O que está longe de configurar uma nacionalização: a Abril, como já apontou Carlos Lopes nestas páginas, além do passado (o envio do cidadão americano Victor Civita dos EUA ao Brasil em 1950, e de um seu irmão para a Argentina, para operar num setor em que estrangeiros estavam, então, proibidos de entrar), é uma associação entre a Viacom americana, a Naspers da África do Sul, triste mantenedora do apartheid, e a dos Civita, que é tudo, e qualquer coisa, menos brasileira.
A transnacional espanhola Santillana controla a Salamandra e 75% da Objetiva, e já foi dona da Moderna, também especializada em livros didáticos, mas repassou-a igualmente para a Abril, esta objetivando as compras do MEC. A mobilidade dos grupos no compra-e-vende é grande, difícil até de acompanhar: atuam aqui as espanholas Planeta e Oceano; a holandesa Elsevier, dona da Campus, Negócio, Alegro e Ímpetus; a francesa Larousse, que já integrou o grupo Vivendi-Veolia, mas agora é da Hachette Livre, ligada também ao Grupo Escala;a americana Thomson, renomeada para Cengage Learning; a espanhola SM, entre outras (José de Souza Muniz Júnior, Movimentos recentes das editoras de livros e a situação dos trabalhadores do setor, ECA-USP, 2008).
O grupo Record (editoras Record, Bertrand, Civilização Brasileira, José Olympio, Best Seller e Verus), conforme o proprietário Sérgio Machado, seguidamente é sondado pelo capital estrangeiro, para o qual não existem barreiras legais, como no Canadá. Entre as dez maiores editoras locais, sete são estrangeiras. Editando uma enxurrada de publicações de baixa qualidade, esses grupos passaram a comprar, recentemente, o passe de alguns escritores brasileiros importantes, buscando liquidar com as nossas editoras, mas nada garante que não os abandonem na primeira oportunidade.
Com campanhas milionárias de divulgação, fazem o seu produto, papel encadernado com textos pífios, aparecer nos grandes jornais, revistas semanais ou pseudo culturais, e programas de tevê. O até então desconhecido autor internacional será objeto de entrevistas e, se possível, comparecerá a feiras e bienais do livro. De maneira que até o único jornal de uma cidade pequena, impotente ante a avalanche, tome espontaneamente tal livro como tema.
Essa ação, pensada globalmente desde fora do nosso país, acaba fazendo com que o distribuidor aposte mais nesses títulos (se já não for monopolizado), a megastore os priorize nas suas geralmente péssimas revistas, grande parte dos livreiros (os guerreiros da cultura e do saber estão minguados, mas ainda existem) os coloque nas vitrines ou nas bancas de alguma feira.
Ficando prejudicada a literatura brasileira e o que de bom poderia nos chegar de fora.
JABACULÊ
O leitor, de sua parte, compra um livro do qual pelo menos já ouviu falar. A inocência nos impede de pensar que o jabaculê corre solto para que o produto se afirme e comece a aparecer na lista dos mais vendidos da Veja. A mensagem da lista é clara: se todo mundo está comprando o livro deve ser bom, compre-o também. Assim, depois de algum tempo, o que era mera sugestão começa a se aproximar da realidade de vendas, mesmo que o leitor depois se frustre ou nem leia o livro, como demonstram pesquisas em outros países. No dia em que escrevo, sem entrar no mérito de cada obra, dos vinte livros de ficção mais vendidos, apenas quatro são de autores brasileiros.
A tiragem gigantesca dos livros enlatados barateia o custo gráfico-editorial unitário do produto para bem menos do que 10% do preço de capa, sem nenhum reflexo para o consumidor. Ao contrário, quanto mais dominam a área, mais livres se sentem para colocar o preço que quiserem, nunca transferindo a isenção de impostos a que o livro faz jus. Na verdade, encarecem o custo de produção e o preço final de todos os outros livros editados no país. Como? Vejamos: depois do furacão global de alto faturamento, sobra o quê para o “mercado”? Tentar colocar edições de mil a três mil exemplares em todo o país, sem nenhum carro chefe de vendas como uma vez o foram Jorge Amado e Erico Veríssimo, e, mais recentemente, um ou outro como Cristóvão Tezza, ao conseguir emplacar uma edição (este pela Record, o maior grupo editorial de literatura do país). Em escala pequena, uma atividade muito mais trabalhosa, e o que é pior, em condições completamente injustas quanto à publicidade.
Edições pequenas saem unitariamente mais caras, e para viabilizar a sua venda, pagar as contas e obter um mínimo de retorno, também não são oferecidas por um valor menor. Além de tudo, muitas empresas quebram ou são engolidas, mesmo quando se unem e formam um grupo de porte médio. O autor brasileiro, que recebe apenas 10% do preço do livro vendido, não raro é convidado a esperar ou a renegociar o pouco que lhe caberia. Quando não, a pagar à editora para ser publicado. O país perde com a menor circulação de ideias e da verdadeira arte literária.
VIVER DA ESCRITA
O escritor, o poeta, aquele que trabalha três, cinco, dez anos para finalizar uma obra, mesmo tendo conquistado o apreço dos leitores e o seu espaço enquanto autor reconhecido, como é que fica? Ou vai trabalhar em outra área ou vai ficar sem condições de vida, semelhante ao que aconteceu a Telma. Exceções existem, mas dependem exageradamente da visibilidade do autor na mídia, quase sempre os que nela trabalham.
Assim, se você, depois de alguns anos tentando viver da escrita, perdeu a sua casa, os seus móveis, teve que enviar os livros para a casa dos pais no interior e, o pior do pior, ficou sem local de trabalho para, como no caso de Telma, terminar um romance, deve agradecer aos céus, e não ir para a Feira do Livro com uma performance artística que sensibilize o público. Esse é o recado de quem chamou a Brigada Militar.
A nota oficial da Câmara Rio-grandense do Livro, endossando a versão de que a Brigada Militar foi chamada por “mãe e filho cadeirante que não conseguiram prosseguir em um corredor do evento” não é das mais edificantes que essa instituição já emitiu.
Os policiais talvez não tenham entendido o recado de Telma, mas seguramente ele não estava fora do alcance dos organizadores da Feira.
Melhor avaliar bem de que lado se está nesse jogo: do lado das corporações invasoras, submetendo-se a elas, e correndo o risco de mais tarde ser engolido, ou do lado dos escritores e produtores, da arte e da literatura, da soberania e da economia nacional. Em suma, da civilização ou do que leva à barbárie.
Não dá para fazer nada? Dá sim, a grande repercussão do caso e a solidariedade que Telma recebeu o demonstram. E o novo governo federal precisa tratar urgentemente da questão livro. Pode demorar um pouquinho resolver tudo isso, mas já nos livramos de coisas bem piores como sabe o leitor.

pagina8
Nº 2917.
24 de novembro de 2010

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