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Via CartaMaior
Filha de Tenório Cerqueira Jr. quer Vallejos deportado
Em
entrevista à Carta Maior, Elisa Cerqueira fala sobre o caso do
desaparecimento do pai durante a ditadura argentina. Ela expressa
ceticismo e desesperança com a apuração desse caso e de outros crimes da
ditadura no Brasil e defende a deportação de Claudio Vallejos,
argentino preso por estelionato em Santa Catarina, para a Argentina. "Eu
acho que ele tem que ser deportado, porque aqui é que não vai acontecer
nada com ele. O Brasil ainda não abriu seus arquivos, não reconhece sua
participação, anistiou os torturadores".
Rodrigo Otávio
Rio de Janeiro
- Assim como no pai, o amor pela música é explícito. Se deixar, a
conversa com Elisa Cerqueira segue pelo mundo da música, da literatura e
das artes. No fim de uma tarde de início de outono carioca no Largo do
Machado, a mulher de 43 anos, cabelos curtos e cachecol verde passaria
como mais uma mãe atarefada com a pequena filha na hora do rush.
Infelizmente, inexplicavelmente ou complementarmente, a vida é mais dura
do que doces acordes musicais. Tão dura que volte e meia usa de suas
macabras ironias.
Elisa marcou a conversa com Carta Maior
em uma das principais galerias da região, conhecida pela qualidade dos
quitutes árabes de uma das suas lanchonetes. O nome da galeria é Condor.
Elisa Cerqueira é filha do pianista Tenório Cerqueira Jr., desaparecido
em 18 de março de 1976, em Buenos Aires, após um show com a banda
liderada pelo poeta e diplomata expulso do Itamaraty Vinicius de Moraes.
Seis dias depois, a Argentina era palco de mais um golpe militar na
região e Tenório Cerqueira Júnior declarado morto. Era vítima da rede de
informações e ações das ditaduras sul-americanas. O nome era operação
Condor.
Elisa tinha oito anos. Não entendeu e
embarcou contra a sua vontade em assento privilegiado na nebulosa
jornada de tristeza, suposições, terror e fantasia.
Dezesseis
anos depois, na conversa da noite do Largo do Machado, a hoje chef de
cozinha e mãe de três filhos, refeita, rememora o início do fim da
jornada com a chegada da juventude e de documentos comprovando a morte
de seu pai, trazidos ao Brasil por um dos algozes dele, o argentino
Claudio Vallejos, hoje preso por estelionato em Santa Catarina,
mostra-se cética e descrente quanto à possibilidade do Brasil rever seu
passado com a competência que os argentinos fazem, e afirma que para
“fechar a tampa” dessa estória falta os restos mortais do pai serem
transferidos para o Brasil e o pianista ser enterrado pela família.
Carta Maior – O que você lembra do fim da convivência com seu pai?
Elisa Cerqueira
- Disseram que ele tinha sumido. Aí, dez anos depois, quando o Vallejos
chegou ao Brasil, ele veio trazendo uma farta documentação e
informações do que tinha acontecido. Ele deu entrevistas em que ele
cobrou uma fortuna para mostrar esses documentos, que eram documentos
secretos oficiais da Escola de Mecânica da Armada (ESMA) argentina. Aí é
que a gente ficou sabendo. Quer dizer, para mim, que era criança, eu
não tinha as informações que a minha mãe tinha. Então a minha mãe, e
todo mundo, fazia uma ideia do que tinha acontecido, só não tinha
nenhuma prova, nenhuma informação concreta. Mas pela situação, pelo
momento em que ele sumiu, com todo o cenário armado em volta, era de se
deduzir que ele tinha sido detido.
CM: Você soube das investigações da época?
EC:
Meu avô paterno, que era delegado da Polícia Federal foi para lá. O
Vinicius ficou na Argentina, ele era diplomata e passou um mês em Buenos
Aires atrás de informações. Mas não conseguiram nada. Só quando o
Vallejos veio ao Brasil mesmo, trazendo esses documentos para barganhar,
é que a gente conseguiu saber o que tinha acontecido”.
CM: Falando do Vinicius, quando ele voltou ao Brasil, ele falou alguma coisa com a família de vocês?
EC:
Claro, ele manteve o contato o tempo todo. Ele se empenhou muito, na
verdade. Como eu te disse, ele passou um mês lá a partir do que
aconteceu. Porque ele estava em turnê, ele poderia ter voltado ao Brasil
a partir do que aconteceu, diante do golpe (N.R.: golpe militar na
Argentina, em 24 de março de 1976) e tudo mais. Mas ele ficou procurando
exaustivamente por alguma pista.
CM: Confere que ele se apresentou à embaixada brasileira em Buenos Aires e apresentou um habeas corpus à justiça argentina?
EC:
Eu acho que sim. Não tenho certeza dessas coisas. Esses detalhes da
época eu não sei direito porque era criança, e nem me aprofundei anos
depois porque como a gente já sabia o que tinha acontecido, não vi
motivos para escavar isso mais ainda. O que sei é que ele ficou um mês
ainda lá, e provavelmente deve ter feito vários movimentos para
conseguir algo.
CM: Quando ele voltou de lá, que tipo de informações ele passou a vocês?
EC:
Nenhuma (risos). Nenhuma, nem ele tinha. Sério ! Durante dez anos foi
uma incógnita, claro que eventualmente tinha um sem noção que ia falando
“ah...porque eu vi o Tenório não sei aonde...”, não sei se era muito
entusiasmo, ou muita vontade de querer que ele reaparecesse, ou, enfim,
aquelas informações equivocadas. Isso aconteceu algumas vezes, mas de
realidade, nada. Até a vinda do Vallejos, nada se sabia.
CM: Até a morte dele, quatro anos depois, em 1980, o Vinicius falou algo? Vocês mantiveram relacionamento com ele?
EC:
Não. Não tinha mais contato. Na verdade ele não era íntimo da família,
ele era músico, colega do meu pai, trabalhava com ele. Claro que meu pai
o conhecia e tudo, mas não tinha uma intimidade de frequentar. Na
verdade, como eu já disse, eu era criança. Então, se aconteciam, eu não
sabia. Não tenho como afirmar se aconteciam ou não. Porque quando
acontece uma tragédia dessas com a família as crianças não ficam muito a
parte. Não é uma coisa que os pais, os adultos, discutem com criancinha
de oito anos (risos). Então se esse relacionamento se manteve, se ele
(Vinicius) continuou procurando informações, eu não sei dizer, mesmo.
Porque
na verdade durante muito tempo isso foi muito complicado para mim, para
falar sobre isso. Eu fui meio que desmistificar a coisa já bem mais
velha. Como eu não tinha informações concretas, era muito difícil para
mim, ainda por cima na adolescência, falar sobre isso.
CM: Você tinha o sentimento que poderia reencontrá-lo?
EC:
Esse tempo todo, né ? Principalmente nesses anos em que a gente não
tinha... não soube do que tinha realmente acontecido, era normal você
ter sempre a expectativa...(voz cresce)...de repente toca a campainha e
você vai abrir a porta é o cara. Isso é normal, principalmente para
criança, que fantasia muito. E como a gente não tinha uma exata noção do
cenário político, do que estava acontecendo, o que poderia ter
acontecido com ele depois de preso, como éramos pequenos, não dava muito
para ter uma ideia disso, exata.
CM: E, aos poucos, isso foi besbotando?
EC: Ah, vai, desbota. Não o ocorrido. O ocorrido, claro que não...
CM:...Sim, mas essa fantasia, do abrir a porta...
EC:
...Sim, essa sim, com certeza, com certeza. (Voz firme) Quando o
Vallejos chegou ao Brasil eu já tinha dezoito anos. Então é claro que já
foi outra leitura da situação. Porque aí ele deu entrevistas, saíram
publicações, a documentação e tudo. Aí já foi outra coisa, eu já tinha
um entendimento disso. Então realmente já não tinha nenhum tipo mais de
esperança.
CM: E até essa vinda do Vallejos, pessoas ligadas a você, ou o seu próprio processo de amadurecimento, minimizaram esperanças?
EC:
Com certeza, não tinha uma coisa de ficar alimentando uma esperança...,
mas...(voz emocionada)..., isso dentro do espírito infantil acho que é
normal. (retoma o tom) Você não sabe exatamente o que aconteceu, logo
tudo pode ter acontecido, pode aparecer de uma hora para a outra.
CM: Voltando
ao crime, há um documento, cuja veracidade é duvidosa, indicando que os
militares argentinos teriam avisado a embaixada brasileira sobre a
morte de Tenório. O que acha disso?
EC:
Não é duvidosa ! Isso faz parte...isso é da... É duvidoso para o Brasil
! Né ? Que até hoje não assumiu... Essa história é muito maluca. Porque
tinha a tal da operação Condor. O meu pai tinha um primo, tem um primo,
que está vivo ainda, que na época era militante e estava na
clandestinidade porque ele era da luta armada. Quando meu pai foi preso
em Buenos Aires, eles associaram. Meu pai não era militante político,
com certeza não era. Tinha uma visão de esquerda e tudo, mas não tinha
nenhuma vivência política. E por ser primo em primeiro grau do Luiz
Tenório, isso influenciou para eles o terem mantido, terem torturado.
Porque talvez pudesse ser uma prisão de averiguação e tivessem soltado.
Essa informação, como outras, foram dadas pelo governo brasileiro. Eles
tinham uma conivência, uma troca de informações, enfim.
CM: O primo do seu pai estava lá?
EC:
Não. O primo do meu pai estava aqui no Brasil, aqui no Rio, na
clandestinidade. Se não me engano o Luiz não chegou nem a se exilar.
Acho que ele nem foi preso.
CM: Mas as autoridades argentinas tinham o conhecimento do nome ser ligado a alguém daqui?
EC:
Óbvio que tinham. Óbvio. O Vallejos trouxe toda essa documentação. Se
eu não me engano, ele divulgou mas não entregou os documentos. Foram
mostrados em fotocópias e tal, mas ele não entregou os originais. Mas
nos documentos têm tudo.
E por ele ser o que ele
era, né ? Pela aparência dele. Um cara cabeludo, barbudo, músico,
enfim. Esse estereótipo dele claro que contribuiu para mantê-lo ali,
porque era o estereótipo do revolucionário, do cara de esquerda.
CM: Você tem alguma informação a mais sobre a morte dele, supostamente no dia 25 de março de 1976?
EC:
A única informação que a gente tem é essa documentação. Porque na
verdade o governo argentino reconheceu a participação, indenizou a
gente, estão lá prendendo e julgando e condenando os seus bandidos. Mas
fora isso não tem nenhuma outra informação. A única informação que eu
tenho são as que todo mundo tem, que foi o Astiz que deu o tiro de
execução.
CM: Qual a sua opinião sobre a abertura de processo na Argentina para a captura internacional de Vallejos?
EC:
Sendo deportado, o Vallejos vai ser julgado e provavelmente condenado,
como todos foram. O Astiz está preso e condenado à prisão perpétua. Eu
acho que ele tem que ser deportado, porque aqui é que não vai acontecer
nada com ele. O Brasil ainda não abriu seus arquivos, não reconhece sua
participação, anistiou todos os torturadores. Então eu acho que ele tem
mais é que ir para lá porque lá a justiça vai ser feita.
CM: Você acredita mais no processo argentino do que no brasileiro, mesmo com a Comissão da Verdade se avizinhando?
EC:
Quem é a nossa presidente ? A mulher não sofreu tortura, não foi uma
vítima? Ela mesma foi a primeira a tirar o corpo fora, como o Lula já
tinha tirado, da abertura desses arquivos. Eu duvido muito que algo
aconteça aqui. Ela não fez um movimento, ela se esquiva, não vai fazer
nada. Se eu estivesse no lugar dela teria sido a minha primeira ação.
Até a trajetória política dela mostra que ela passou uma borracha, ela
não tem interesse pessoal nisso. Muito menos interesses políticos de se
confrontar com aquela corja toda com que ela convive, quando ela é
obrigada a beijar a mão e dar abraço e sair na foto sorrindo. Eu não
acredito, mesmo, “so sorry”.
CM: Você acha que a presidenta Dilma não tem tanta vontade política de acelerar esse processo, mesmo com o perfil dela?
EC:
Eu acho. Acho que se fosse para acontecer, já teria acontecido. Como
eles já anistiaram todos, estão todos aí. A partir do momento que eles
abrirem esses arquivos, que essas verdades forem expostas, vai virar uma
saia justa. Como eles vão fazer ? Vão manter esses criminosos em
liberdade, sem julgamento, sem nenhum tipo de punição ? Vai ser
simplesmente para que a gente saiba dos detalhes sórdidos do que
aconteceu ? Então acho que não tem interesse em abrir isso. O único
interesse que haveria seria se realmente eles fossem levados a
julgamento pelos seus crimes. E isso não vai acontecer, a política daqui
é muito diferente de lá (Argentina). Muitos ainda estão no poder aqui, é
muito complicado. Eu acho que não tem nenhum interesse, nenhum
interesse.
CM: Você teria interesse em falar na Comissão?
EC:
Não tenho nada para falar para a comissão, eu era uma criança na época.
Não tenho nada para falar. Eu sei que parece frio o que eu tô falando,
mas é porque realmente eu não consigo ver algo. Eu adoraria que nosso
país fosse um país diferente, eu adoraria que desse a volta por cima
como eu vi outros países fazendo. Abrir seus armários, tirar seus
esqueletos, encarar seus demônios, mas o brasileiro não tem esse
espírito, eu não vejo esse espírito. E a política brasileira funciona de
forma completamente centralizadora. (Voz triste) Eu não acredito que se
faça algo.
CM: Não vê esse como o momento certo para o Brasil aprofundar esse acerto de contas com o passado?
EC:
Eu acho que não há nenhum interesse. Acho que há interesses políticos
muito maiores entre essas pessoas, tanto a situação como esses
criminosos, muito maiores do que ficar desenterrando osso e julgando
criminosos. Parece horrível a maneira como eu falei, mas acho que eles
pensam desse jeito. Acho que eles viraram a página. Não tem interesse,
mesmo. Não vai acontecer nada aqui, eles não vão pegar essas pessoas e
colocar no banco dos réus, e condenar.
Sou
totalmente desesperançada. Não acredito mesmo, não acredito mesmo !
Infelizmente. Eu morro de vergonha, se você quer saber. Eu já fui à
Argentina várias vezes, tenho um monte de amigos argentinos que sabem da
história, sabem da história do meu pai, muita gente que têm parentes lá
que também foram mortos ou foram vítimas da ditadura de lá. Vejo uma
diferença explícita entre lá e aqui. Lá há uma mobilização, a coisa é
feita em regra, como deveria ter sido feito aqui desde a anistia, desde
1979. E a visão dos meus amigos argentinos em relação ao Brasil, que eu
acredito que é a visão que os estrangeiros têm do Brasil nesta questão, é
a mais depreciativa possível.
A postura do
brasileiro em relação a isto é muito comodista, muito complacente. E o
governo brasileiro é totalmente omisso, sempre foi, se manteve assim
este tempo todo. Quando entrou o Lula era uma esperança. Quando entrou a
Dilma foi uma esperança maior ainda, e é óbvio que a coisa não vai
acontecer. Não vai haver esse julgamento, não vai haver um banco dos
réus ou condenações.
Em 2006 a Comissão de
Mortos e Desaparecidos do governo brasileiro pagou uma indenização
padrão por todos os desaparecidos. Foram R$ 150 mil para a família. Uma
vergonha ! Não é nem pelo dinheiro, mas pela maneira que eles trataram a
coisa. Deram tipo um “cala a boca” para as famílias, e em contrapartida
figuras públicas receberam indenizações milionárias, estando vivas, sem
terem passado por uma repressão mais contundente, apenas pelo fato do
que eles teoricamente perderam financeiramente pelo tempo que foram
vítimas. Quer dizer, é uma palhaçada, é um deboche para as famílias que
tiveram seus entes queridos realmente torturados e executados.
CM: Entre o Vallejos depor aqui e depor lá, você prefere lá?
EC:
Primeiro, o cara é um mercenário. Ele não vale nada. Ele ainda está
pedindo dinheiro para ser entrevistado. Até hoje, preso, com uma
condenação quase certa lá, ele ainda pede dinheiro para falar. Eu
acredito que tudo que ele tinha para ser dito, ele fez naquela época,
que foi quando ele encheu o bolso dele para se esconder aqui no Brasil
até hoje. Porque naquela época ele deu muitas entrevistas, extorquiu
para fazer o pé de meia e ficar escondido na clandestinidade.
Então
eu acho que o que ele tinha para falar ele já falou. A menos
que...talvez essas informações que liguem figuras físicas brasileiras
aos acontecimentos na Argentina, à Operação Condor, talvez ele possa dar
algumas informações a mais, porque na época ele cobrou para falar mais
sobre o meu pai porque meu pai era uma figura mais eminente do que a
maioria dos desaparecidos. Mas não acredito que ele tenha muita coisa a
mais. E ele ficando aqui corre o risco de ele se dar bem. Eu acho que
ele tem que ser deportado, porque lá ele vai ser julgado, com certeza, e
vai ser condenado.
O argentino é um povo
engajado, seja para bem ou para mal. E com relação a esse período da
ditadura eles foram exemplares nas punições. Eles realmente perseguiram,
julgaram, condenaram e prenderam todos que eles conseguiram colocar as
mãos até agora. Eu acho que ele (Vallejos) tem que ir para lá.
CM: Você acha que, para a sua família, estão mais próximas reparações pelo argentino do que por aqui?
EC:
Olha, os argentinos já nos deram uma indenização. Que foi dada ao longo
de dez anos em títulos do governo e tal. Essa reparação, eles fizeram
quase toda, já se desculparam oficialmente. No final do ano passado
inauguraram uma placa no hotel onde meu pai estava hospedado. Nesse
ponto eu acho que sim.
A única coisa que faltou
mesmo nessa história é o corpo dele ter voltado. Nesses documentos que o
Vallejos trouxe diz que ele está enterrado com nome falso no
cemitério...bem, esqueci o nome. Um cemitério famoso lá com nome
indígena (N.R.: Chacarita). E a única coisa que faltou foi fazer a
exumação e trazer os restos de volta para a gente poder enterrar o cara
aqui e dar aquele ponto final, entendeu, (voz forte) que só um enterro
dá !
Acho que o quê faltava era isso mesmo. Era
só ter essa delicadeza. E isso é uma coisa que até o governo brasileiro
podia ter feito, a partir do momento que, de certa forma pagando aquele
“cala-boca” ali, ele meio que reconheceu, podia ter se mobilizado para
isso, “cadê o corpo ? Devolve o corpo pelo menos”. E os argentinos
poderiam ter feito também. Foi a única coisa que ficou meia no débito, a
única coisa que não fechou a tampa do negócio.
CM: Essas suas idas a Argentina estão relacionadas com o caso do seu pai?
EC:
No início foram. A gente recebia essa indenização em bônus do governo
argentino, títulos, aí tinha um juros... Eu sei que nós recebíamos isso
mensalmente e tinha uma advogada do movimento de justiça e direitos
humanos da Argentina que, como era um valor baixo, esperava não sei
quantos meses e enviava tudo junto para a gente. Mas aí ele teve um
problema. Como ela era uma ex-presa política também torturada, ela teve
um problema de saúde, era idosa e tal. E para não complicar a situação
eu passei a ser procurante da minha família e passei a ir lá para
receber isso de seis em seis meses. Aí depois virou uma coisa mais
regular, eu comecei a fazer amigos, e hoje em dia vou regularmente.
CM: E sente alguma emoção quando está lá?
EC:
No começo foi punk, né ? Eu fui nos lugares todos. Fui lá na Escola da
Armada, mas, depois...cara...hoje em dia o sentimento que eu tenho pela
Argentina é... eu moraria lá (risos). É muito legal, eu gosto muito de
lá, acho que o quê aconteceu ali durante aquele período não desmerece o
povo, a educação e tudo.
CM: E você está cética quanto ao Brasil? Neste momento também há uma tentativa de mobilização por aqui.
EC:
Eu acho superlouvável, superlouvável. Eu não tenho esse espírito de
militância nas coisas, eu sou muito cética mesmo, bem pragmática com as
coisas. Tomara que eu esteja errada, mesmo ! Mas eu tenho muito pouca
esperança. Não vou dizer que eu ache que não vai acontecer, a esperança
sempre existe, mas eu não vejo acontecendo.
CM: Você acha que esse ciclo possa se encerrar?
EC:
Isso não vai se fechar nunca, na verdade. Para fechar a tampa dessa
estória, como eu te falei, é mandarem o corpo, acabar, encerrar essa
estória. Mas isso nunca se encerra, porque volta e meia acontece alguma
coisa e aí procuram a gente... De vez em quando acontece alguma coisa e
aí essa estória vem à tona. Só serve para ficarem ali futucando,
futucando com a gente mais uma vez, e ficarem ali falando, repetindo as
mesmas coisas. Acaba não tendo nenhum valor porque nada acontece, não
muda o panorama.
CM: Quanto a Vallejos, você acredita nele, ou acha que é um aventureiro?
EC:
Ele é... Cara, não dá para saber. Eu acredito no que ele trouxe
documentado, eu acredito na veracidade da documentação. Porquê ele não é
burro, de burro ele não tem nada, ele é um estelionatário formado. Ele
não ia trazer uma documentação falsa para tentar fazer um ganho. Quando
ele chegou, ele chegou para isso, chegou trazendo aquilo para ser um
tesouro negociável.
Eu acredito na veracidade da
documentação sim, tanto que o próprio governo argentino reconheceu os
fatos que estão documentados. Eu acho que se houvesse uma falsidade
nessas documentações os argentinos não teriam endossado isso. Agora, nos
depoimentos que não sejam documentados, só verbais, eu acho que ele
possa tentar dar uma enfeitada no negócio para ter um valor maior. Aí só
vendo o que ele tem para dizer.
CM: Você acha que ele deveria ser levado à Comissão da Verdade?
EC:
Deveria... Mas já te falei isso, é mais garantido que ele seja
deportado. Porque aqui, se ele vier a dar depoimento na Comissão da
Verdade, como muita coisa não tá documentada aqui, pode ser um
depoimento falso, que crie dúvidas e... eu acho que cria uma
possibilidade de ele conseguir escapar de novo. Não sei, não sei como
funciona isso aqui, não sei se ele ficaria aqui sob custódia para depois
ser extraditado. Aqui ele pode ser solto por qualquer bobagem, por isso
o governo argentino pediu a extradição dele. E lá ele vai responder
pelos grandes crimes que ele cometeu. (Voz enfática) Ele tem que ir para
lá, cara. O quê que o cara vai ficar fazendo aqui. Daqui a pouco ele
vai ser solto. Todo mundo é solto aqui ! (risos). Você entende o meu
ceticismo ? Ele não é em vão.
Se ele ficar aqui
ele vai acabar escapando, de novo. Ele ficou solto esse tempo todo.
Quando ele chegou aqui, em 1986, qual seria a ação correta do governo
brasileiro, estando um cara aqui com aquele tipo de documento ? Teria
que ter sido detido na mesma hora. O cara ficou esses anos todos
escondido, vivendo bem lá naqueles paraisozinhos do interior do Paraná.
Foi preso por um deslize dele, porque ele é um cara mau caráter, um
bandido. Foi preso por um deslize e vai se safar se ele ficar. Talvez
tudo que ele queira seja dar esse depoimento à Comissão da Verdade,
fictício ou não, para poder ter mais uma chance de se manter aqui.
Porque se ele for extraditado ele vai ser preso e vai ser condenado. Com
certeza ele vai ser condenado, todos foram.
CM: Você acha que a aposta dele é ficar aqui e o caso ser esquecido em 10, 15 anos...?
EC:
...Não precisa nem tanto tempo. Nem tanto tempo. Exatamente isso. Eu
acho que ele tem que ir, eu não faria nenhum movimento para mantê-lo
aqui, mesmo. E eu duvido muito que ele tenha alguma coisa realmente nova
para dizer. Eu acho que a única coisa que o Vallejos tem de verdadeiro
mesmo, e que sirva para ele como uma moeda, é essa questão do meu pai,
porque na verdade ele era um soldado raso, tanto que quando ele veio em
86 ele tinha vinte e poucos anos. Ele participou das ações como um
comandado, um subalterno. Ele não era o braço-direito do Astiz que
executou junto. Não foi bem assim. Isto está bem claro no depoimento
dele da época, nos documentos e nos depoimentos do Astiz lá.
CM: Você
disse que não gostaria que ele ficasse por aqui porque poderia acabar
sendo solto. Alguma vez já ocorreu algum episódio conexo a isso com você
ou com alguém de sua família?
EC: Como assim?
CM: Tipo perseguição ou intimidações, como acontece muito em países sob ditadura ou pós-ditadura...
EC:
Entendo, entendo. Mas não. Talvez por a gente ter ficado no vazio, né ?
No limbo, em relação ao que aconteceu, sem ter informação durante tanto
tempo, não tinha muito o quê fazer. O que pôde ser feito foi feito pelo
meu avô e pelo Vinicius na época, não tinha muito o que fazer. Como a
família não tinha essa movimentação de buscar, porque não se sabia nem
por onde começar, então nunca aconteceu nada. Nesse ponto, com certeza
nunca aconteceu nada, nem como ameaça nem como apoio. Nem de um lado nem
de outro.
CM: Você já teve alguns
fantasmas? Aqueles sentimentos de dúvidas, ou até de investigação, aqui
ou na Argentina, como alguém ou em algum lugar? Tipo, será que essa
pessoas estava envolvida? O que está fazendo aqui? Quem é ela?
EC:
Sentimento de perseguição ? Não, não. O fato mesmo é que o cara tava
lá, um puta músico, fazendo um trabalho maravilhoso, entendeu ? Tava ali
e se não tivesse acontecido isso com ele a projeção de carreira dele
seria fantástica...(emocionada)... Para mim não tem..., eu entendo que
para muitas famílias isso seja de suma importância, principalmente para
aqueles que desapareceram mesmo na luta. Meu pai não era militante, ele
não estava envolvido nisso dessa maneira.
Eu não
sei o que dizer, mas eu não tenho essa... Claro que eu quero que a
justiça seja feita, por isso que eu quero que o Vallejos vá. Até porque
já está tudo esclarecido, na verdade. De certa forma já está tudo
esclarecido. O quê eu quero saber, detalhes da sessão de tortura ? Eu
não quero saber isso, entendeu ? Isso não me interessa, eu não quero
saber os detalhes sórdidos, dispenso.
O que eu
gostaria de ver era os militares brasileiros que estavam envolvidos na
época, que deram os nomes, punidos. Esses eu gostaria de ver, isso eu
gostaria de saber. Mas isso não vai acontecer, é óbvio que não vai
acontecer, ou quando vier a acontecer eles já não vão estar vivos. Já
estavam todos à beira da taxidermia na época, hoje então nem se fala.
Não vai rolar.
CM: Você tem
acompanhado essas ações de jovens denunciando os ex-torturadores, indo
às casas deles, apontando para vizinhos e sociedade em geral o passado
deles?
EC: Mas isso... sabe o quê
acontece, isso não é legal. Eu acho isso covarde. A mesma covardia que
eles tiveram em relação aos militantes políticos, isso de perseguir a
família, de estigmatizar os parentes e filhos. Eu acho isso
supercovarde, entendeu ? Ir lá na casa dos caras, pichar, estigmatizar
os filhos na escola, agredir a família. Eu não faria isso. O que ele fez
ninguém pode responder a não ser ele, ou os superiores dele. Não acho
certo isso, de verdade, eu acho lamentável.
Sabe
o quê vai acontecer ? Os filhos desses infelizes vão crescer e vão
viver da mesma maneira que os filhos dos infelizes que foram torturados e
assassinados viveram. Vão crescer com estigma. Isso não aconteceu com a
minha família, podiam ter ido lá pichar a parede do meu prédio chamando
meu pai de subversivo. Eu não ia querer isso, eu acho que ninguém é
herdeiro de uma merda dessas. Ninguém merece uma herança dessas. Então
não acho isso certo. Acho que tem pegar o cara, levar o cara, julgar e
condenar o cara. Não é pegar e jogar tudo no mesmo saco, as novas
gerações, que não têm nem entendimento do que aconteceu, totalmente
inocentes, que não pediram para nascer filho desses infelizes. Acho
totalmente errado.
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