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A Constituição não diz que o direito à propriedade é absoluto. Ou que ele estaria acima dos demais. Muito pelo contrário.
Léo Nogueira [*]
Você está um pouquinho atrasado, dirão
alguns. Mesmo assim, quero escrever sobre fatos ocorridos, no começo
desse ano, no Pinheirinho, área localizada na cidade de São José dos
Campos (interior de São Paulo).
E quero fazer isso pelo seguinte: a ação
da polícia (subordinada, nunca é demais lembrar, ao governo paulista),
do judiciário e de outros atores não identificados não foi algo isolado.
Trata-se de uma ação muito bem coordenada para defender os interesses
de alguns em detrimento dos da maioria. Portanto, isso irá se repetir.
Aliás, já se repetiu. A história se repete… Como alfafa.
Para
rebater os argumentos (risíveis) de gente que defendeu e continua
defendendo a ação, vou me basear em um artigo escrito por Rodrigo Capez,
juiz assessor da presidência do Tribunal de Justiça (TJ) de São Paulo. O
artigo é fraco, bem ruinzinho, mas reúne, talvez, o melhor do senso
comum. Capez, irmão do deputado estadual Fernando Capez, escreveu um
texto, que foi publicado pelo jornal Folha de S. Paulo no dia 29 de fevereiro de 2012, intitulado “Pinheiro: ideologia e fatos”.
“O Pinheirinho evidenciou a submissão de
moradores a interesses ideológicos menos nobres do que o justo direito
ao lar”, escreveu o ás… Digo, o assessor. Pois é. Falou-se muito sobre a
utilização “política” do episódio. Afinal, militantes do Partido
Socialista dos Trabalhadores Unificado (PSTU), entre outros, estariam
organizando a resistência da plebe. Isso é verdade.
Contudo, havia e ainda há (já que muitas
das famílias expulsas continuam vagando por aí) um problema social
grave. Pense comigo, caro amigo: se o cara tivesse o seu emprego, a sua
casa, perspectivas de, digamos, prosperar um tiquinho na vida, o cabra
iria se enfiar em um lugar onde poderia ser despejado a qualquer momento
e, de quebra, ter uns ossos quebrados para que o Estado Democrático de
Direito fosse preservado?
“A Constituição prevê o direito à
moradia e também o direito à propriedade”, escreve Capez no mesmo
artigo. Pois é. Ela prevê esses dois direitos. Mas ela não diz que o
direito à propriedade é absoluto. Ou que ele estaria acima dos demais.
Muito pelo contrário. Como notou José Osório de Azevedo Jr.,
desembargador aposentado do mesmo Tribunal de Justiça de São Paulo, um
dos fundamentos da nossa Constituição é a dignidade da pessoa humana.
“Esse valor permeia toda a ordem jurídica”, escreveu José Osório de Azevedo Jr. em artigo também publicado na Folha de S. Paulo(09/02/2012).
“O grande e imperdoável erro do Judiciário e do Executivo foi
prestigiar um direito menor do que aqueles que foram atropelados no
cumprimento da ordem”, diz o mesmo artigo. “Decisão judicial não se
discute, cumpre-se? Apenas em casos corriqueiros, mas não quando pessoas
indefesas são atingidas; o direito não é monolítico”, acrescenta o
desembargador aposentado.
Concordo com ele. Como não poderia? Um
dos “princípios fundamentais” da nossa Constituição promulgada em 1988 é
“a dignidade da pessoa humana”. Isso tá escrito no Artigo 1º (pode
procurar que tá lá). E se tá no primeiro artigo do documento em questão,
se isso foi colocado logo no início da Constituição, é porque nossos
representantes, lá no final dos anos 80 do século passado, devem ter
considerado que esse era um dos princípios que iria fundamentar o
restante do texto.
Ou seja: “a dignidade da pessoa humana”
fundamenta todos os demais direitos e deveres previstos na Magna Carta. E
“fundamentar”, de acordo com o dicionário UOL Michaelis, significa,
entre outras coisas, “estar fundado”, “apoiar-se” e “basear-se”. A
operação da Polícia Militar do Estado de São Paulo no Pinheirinho não
teria violado “a dignidade da pessoa humana”? Depende. Pobre é gente?
“Os direitos dos credores da massa
falida proprietária são meros direitos patrimoniais. Eles têm fundamento
em uma lei também menor, uma lei ordinária, cuja aplicação não pode
contrariar preceitos expressos na Constituição”, acrescenta o artigo de
José Osório de Azevedo Jr. intitulado “Ainda o Pinheirinho”.
Para
Capez, um imóvel, de acordo com as nossas leis, “não pode ser arrancado
do proprietário, seja quem for, para se transformar em moradia para
terceiros. Ele deve cumprir a sua função social, mas, com a falência, o
falido perde a sua administração.” Perde? É mesmo? Reportagem da
revista Carta Capital assinada por Rico Almeida e Rodrigo
Martins demonstrou que o maior e, talvez, único beneficiário com a
reintegração de posse era o “falido” Naji Nahas. “Credor de si mesmo”,
como escreveu a dupla na edição número 684 da revista.
E Nahas, homem sabido demais, não parece
ter perdido a “administração” do local conhecido como Pinheirinho (ao
contrário do que a justiça paulista vem pregando desde então). “Eu faço o
que eu quiser do terreno. É problema meu. É engraçado me censurarem por
eu ser o único beneficiário dessa reintegração de posse. Sou, sim, mas
sou o dono”, disse o sincerão em reportagem publicada no caderno Ilustríssima, do jornal Folha de S. Paulo, no dia 11 de março de 2012.
Quando se fala em falência e credores a
gente pensa: bom, eles cumpriram a reintegração de posse (da área antes
pertencente a uma empresa falida) para pagar fornecedores, quitar
dívidas trabalhistas etc. A gente até pensa um pouco mais: talvez seja
justo, um monte de gente irá ser prejudicada se a área não for, digamos,
retomada pela justiça. Mas o beneficiário da expulsão de 1.300 famílias
(segundo as estimativas mais tímidas) foi o próprio Nahas. E ele vai
muito bem. Nababo Nahas.
De acordo com a mesma reportagem da Folha de S. Paulo de
11 de março deste ano, a paixão do “megaespeculador” (uso um termo
utilizado pelo próprio jornal) levou-o “a adquirir o Haras Inshalla, em
Bagé (RS), com 120 éguas e 160 potros.” Ainda de acordo com o mesmo
jornal, Nahas também é o dono “da cocheira mais luxuosa do Jockey Club
de São Paulo”.
O
interesse no terreno era tamanho que, antes mesmo de qualquer decisão
judicial, o destino do local já estava definido. “O governador Geraldo
Alckmin (PSDB) decidiu pela operação da PM no Pinheirinho na sexta. Só
no dia seguinte o governo foi avisado pelo TJ que poderia fazer a
reintegração de posse”, diz matéria da Folha de S. Paulo do dia
24 de janeiro de 2012. Em troca, o TJ (Tribunal de Justiça) assumiu que
ação era da sua inteira responsabilidade. Nota da coluna Painel, do mesmo jornal, publicada quase um mês mais tarde liga os pontos (até eu que sou meio lento entendi):
Justiça fiscal Depois
de assumir, em nota oficial, a responsabilidade pela reintegração de
posse do Pinheirinho, o desembargador Ivan Sartori cobra da base de
Geraldo Alckmin na Assembleia prioridade a dois projetos que oneram o
Estado: o que transfere ao TJ-SP as custas judiciais e o que cria cargos
de assistentes de juízes.
Além disso, liminar da justiça federal
entregue ao comandante da operação no dia do início da reintegração de
posse, em tese, paralisaria a ação da PM. No YouTube há um vídeo que
traz o depoimento do defensor público Jairo Salvador, que atuou no caso,
durante uma audiência pública ocorrida na Assembleia Legislativa do
Estado de São Paulo (ALESP). Ele explica como uma ordem judicial foi
ignorada por um servidor público e termina com uma constatação pueril,
mas, talvez por isso mesmo, precisa: no Brasil, a lei é o dinheiro (o
vídeo está disponível aqui).
Muitos interessados no terreno e o povão
se fudeu. Simples assim. Mas tem mais. A área conhecida como
Pinheirinho é, provavelmente, fruto de grilagem. Ou seja: suspeita-se
que a posse atribuída a Nahas é tão ilegal quanto uma nota de três
reais.
Tive
um professor na Faculdade Cásper Líbero, quando cursei jornalismo na
mesma, que se chama Edson Flosi. Ele é jornalista e advogado. Recordo de
uma reportagem de sua autoria, que ele apresentou em aula. Era sobre o
assassinato de um casal de alemães ocorrido em 1969. Eles moravam em uma
fazenda na região do munícipio de São José dos Campos.
Como o casal não tinha herdeiros, o
terreno, com a morte dos dois, em tese, tornou-se propriedade do Estado.
A fazenda, anos mais tarde, transformou-se em uma área que hoje engloba
o local conhecido como Pinheirinho. A área, que deveria ser do Estado,
ou seja, pública, sabe-se lá como, foi parar nas mãos de um sabichão de
origem libanesa que eu me recuso a repetir o nome.
Em Pinheirinho, assim como em Sampa
(onde moro), a lógica é a mesma. Pra ter algum direito é necessário ter
dinheiro. Como bem lembrou Maria Cecília Sampaio, diretora da Secretaria
Municipal de Habitação de São Paulo, “pra ser cidadão” na capital
paulista “tem que ter condição de pagar” (mais detalhes da fala da
falastrona aqui).
Ela, desconfio, não é voz isolada. A Maria vai com as outras. E com elas vão muitos outros.
[*] Léo Nogueira é
jornalista, dramaturgo, contista, roteirista e um romântico romancista
iniciante. Ele também é servidor da Secretaria de Desenvolvimento Social
do Estado de São Paulo.
2 comentários:
Onde estava os Direitos Humanos?
Não estava Janice Adja.
Infelizmente não existe para escravos de todos os tempo.
Espero que apareça um grande lider para os libertar.
Grande abraço.
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