Por Redação,
Depois de oito anos fora do Brasil, a jornalista Cristina Guimarães, 47, colega de Tim Lopes –que ganhou o Prêmio Esso em 2001 pela série “Feira das drogas” veiculada no Jornal Nacional, da TV Globo, mas foi morto por traficantes do Rio de Janeiro no ano seguinte– afirma que vive de luto e teve que reconstruir a sua vida após fugir do país sob ameaças de traficantes.
Ameaçada de morte, a jornalista e ex-produtora da TV Globo saiu da emissora sete meses antes do assassinato de Tim Lopes, alegando que não tinha proteção da empresa. Cristina Guimarães contou, em entrevista ao UOL Notícias, que comunicou as ameaças à direção de jornalismo da Globo, mas que a empresa não teria lhe dado ouvidos.
Procurada pela reportagem, a TV Globo, por meio de sua assessoria de imprensa, afirmou que “não vai se manifestar sobre esse caso, porque ele envolve fatos que são objeto de ação judicial proposta contra a empresa”.
Para Guimarães, a morte de Tim Lopes foi um “caso anunciado”. O repórter teria ido à Vila Cruzeiro, nove meses depois de fazer a reportagem da “Feira das Drogas” no Complexo do Alemão, para checar uma denúncia de atividades do tráfico nos bailes funk.
“Eu não tenho culpa de ter dito sete meses antes que um de nós ia morrer”, afirmou Guimarães que hoje assume oficialmente ter voltado ao Rio de Janeiro. Sem querer ter sua imagem veiculada, a jornalista e produtora disse ter se “acostumado com a dor” e preparado um livro para relatar a sua história e “tudo o que sabe”. O livro inicialmente será lançado no ano que vem fora do Brasil.
Veja os principais trechos da entrevista:
Você é conhecida por ter realizado duas reportagens na série da “Feira de drogas” nas favelas da Mangueira e Rocinha, no Rio de Janeiro. Como foi esse período em que você trabalhou na TV Globo?
O Tim [Lopes] fez a matéria exibida na quarta-feira feira [dia 8 de agosto de 2001]. E todos nós sabíamos que a feira de drogas existia. Uma editora do JN [Jornal Nacional] me chamou. Eu até disse que achava muito arriscado, todo mundo sabia que existia e era perigoso. Ela falou ‘pois eu quero que você faça duas’. Eu sempre fui um camaleão, qualquer coisa que me pedissem para fazer eu ia fazer. Eu tinha que escolher duas favelas. O Tim estava de férias, a primeira matéria dele foi veiculada numa segunda-feira [dia 6 de agosto de 2001] e eu tinha quinta, sexta e sábado. ‘Você tem que ir, trazer as imagens para ver se estão boas, se não você volta lá e faz de novo’, disse. Eu voltei três vezes na Rocinha e duas na Mangueira no período de três dias. Eu entregava o material e nunca estava bom. Eu andava com uma microcâmera sempre escondida. Eu fiz mais de 300 matérias para o Jornal Nacional, de 1995 a 2001.
Você sabia que corria risco?
Sempre soube. Mas essa matéria, eu não queria fazer. Dia 13 de agosto de 2001, tive que ser operada e saí de licença. Quando voltei, no dia 12 de setembro de 2001, um dia depois do ataque ao World Trade Center, assim que entrei na redação da TV Globo, um assistente de estúdio que morava na Rocinha disse que eu havia ‘pegado pesado’ e que todo mundo lá queria saber quem tinha feito a matéria. ‘A tua cabeça está valendo R$ 20 mil, 25 mil’. Quando eu liguei meu telefone, tinha um monte de mensagens de ameaças. Em novembro de 2001 eu saí da TV Globo. A minha vida não valia o quanto eu ganhava: R$ 3.100 era o meu salário. Não valia isso.
Você sempre gostou de fazer jornalismo investigativo com câmera escondida?
Eu sempre achei que tivesse proteção. É uma adrenalina. Eu sempre me expus mais e voltava várias vezes. Eu não queria fazer [a reportagem da ‘Feira das drogas’], mas tive que fazer duas matérias. O Tim Lopes fez a matéria dele e eu fui fazer a minha. Hoje a Justiça acha que o meu trabalho era secundário. Foi tão desmerecedor, tão humilhante as pessoas dizerem que o importante foi só o Tim. Acho que nenhum deles deveria ter ido pessoalmente pegar o Prêmio Esso, deveria ter ido um diretor receber o prêmio para não expor um jornalista.
Como foi a sua saída da emissora?
Eu saí dia 14 de novembro de 2001 da TV Globo. Saí para nunca mais voltar naquela situação, naquela administração, porque eu sabia que alguém iria morrer. Eu queria segurança. Tive em outras épocas, em outras administrações. Um dia, quando eu estava de plantão na subchefia de reportagem, abri um dos jornais e li que um jornalista do esporte da TV Globo tinha sido sequestrado para contar quem tinha feito a matéria [da “Feira das drogas”]. Eu não tinha proteção e comecei a ficar em paranoia. Tive um colapso nervoso e pedi licença. Era uma impotência total. Você faz uma coisa que é apaixonada, dá a vida pela empresa… Eu fui procurar advogados e, sete meses antes do [desaparecimento do] Tim, eu pulei fora. Alguma coisa ia acontecer. Um de nós ia morrer. Ninguém me ouviu. Eu saí porque eu estava jogada.Qual era a sua relação com o Tim Lopes? Como você soube do desaparecimento dele?
Éramos colegas de redação e é claro que a gente conversava. Ele sabia que eu estava sendo ameaçada. Em maio de 2002 houve um assalto na minha casa no Rio de Janeiro e não foi investigado. Exatamente uma semana depois, dia 2 de junho de 2002, eu recebi uma ligação de que o Tim havia sumido. Desliguei o telefone e fiquei em prantos porque sabia que ele tinha morrido.
Foi um caso anunciado. A única coisa que eu me arrependo foi de não ter gritado mais, falado mais sobre isso. Se não tivessem feito pouco, ou se tivessem dado proteção a ele. Onde em sã consciência alguém deixaria uma pessoa voltar e fazer matéria onde já fez e tinha mostrado a cara?
Se as pessoas falarem a verdade vão ver que o erro não é só de um. Eu nunca vi baile funk começar antes da meia-noite, por que então ele [Tim Lopes] marcou com o motorista às 22h? Eu estava no Rio de Janeiro quando eu soube [do seu desaparecimento] e fui embora. Fiquei mais alerta ainda.
Como estava a sua vida naquele momento que você saiu da TV Globo?
Eu não estava com condições psicológicas nenhuma. Eu era casada, o meu casamento acabou. Saí, fui passar uns dias fora daqui. Soube que estava concorrendo ao Prêmio Esso, eu estava um bagaço, mas achei que aquilo fosse legal. Eu não fui [pegar o prêmio pessoalmente] porque o jornalista investigativo não pode aparecer. Eu não fui ao Prêmio Esso, no dia seguinte liguei ao Tim dando parabéns a ele.
O que você fez todos esses anos após se desligar da emissora?
Eu dei parte na delegacia para conseguir dar entrada aos trâmites na Anistia Internacional e no governo americano. Eu fui incluída no relatório de direitos humanos dos EUA. Fui pra fora do Brasil, fiquei perambulando por oito anos América do Sul e parte da Europa, foram 15 países em oito anos. Vendi casa, carro, eu fui sobrevivendo com alguns amigos e com ajuda da minha mãe. Nem a minha mãe sabia onde eu estava. Eu abri mão da minha vida. Era uma forma de me proteger e de proteger os outros. Tinha certeza absoluta que ia morrer. Estou no Brasil faz dois anos. Acho que me acostumei com a dor, a dor da perda do trabalho, da identidade. Me acostumei a ficar calada. É um luto.Como você reconstruiu a sua vida?
Eu deixei de fazer o que eu mais gostava, ser jornalista investigativa, eu sempre gostei muito de jornalismo. É uma profissão que não fica atrás do balcão, não tem rotina. Eu sou repórter cinematográfica também, por isso eu saía com a microcâmera sozinha, eu tinha uma liberdade que os outros não tinham. Me chamaram de mentirosa, que eu queria tirar vantagens financeiras da TV Globo. Acabaram com a minha vida. Eu não tenho culpa de ter dito sete meses antes que um de nós ia morrer.Eu redirecionei a minha vida, ensinei, em cursos, as pessoas que saem da faculdade e querem fazer o jornalismo investigativo. Há dois anos eu dou cursos e é a primeira vez que eu assumo ter voltado para o Rio de Janeiro. Eu ganho meu dinheirinho dando aulas, dou assessoria, sou uma pessoa que fala com todos e vejo que o mundo está cada vez mais cruel. Vejo hoje o jornalismo de uma forma muito ambígua e baixa. Quando entrei na televisão, nós brigávamos por Ibope de 100%, hoje se vive com 40%. Nos meus cursos de jornalismo investigativo eu ensino que é preciso proteger-se, aprender a ser solitário, ir e voltar para contar a história, mas contá-la bem, mesmo que a verdade seja só sua ou que achem que a matéria não vale. Antes de destruir qualquer pessoa, você tem que saber se você não vai ser destruído. Eu não disse não quando eu tinha 38 anos.
Se tivesse chance de voltar hoje, você retornaria ao jornalismo investigativo?
Eu tentei voltar, até dezembro do ano passado eu estava em Brasília tentando voltar para a redação, para a televisão e fazer as mesmas coisas. Eu fui evitada. Hoje há uma certa proteção [aos jornalistas], eu voltaria não só em condições diferentes, mas acho que devem dar proteção a todo mundo.
Você acha que seu caso pode ser esquecido na Justiça?
Juridicamente acho que sim. Eu entrei com uma ação, em 2005, pedindo danos morais e materiais contra a TV Globo. Fiquei muito tempo sem trabalhar e continuo nessa luta. Eu mantenho a minha integridade. Sempre existe solução para a vida.Você está preparando um livro?
O livro vai deixar muita gente com a cara no chão, eu falo porque eu virei jornalista, não foi só para mudar o mundo nem mudar a história. Pelo menos eu queria que o meu país não estivesse na situação que está. Eu nasci em 1964 no meio da ditadura. Comecei primeiro na área do radialismo com 19 anos. Sou carioca, me formei em publicidade, fiz Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM) e fiz Comunicação Social e Radialismo na UNB, em Brasília, e depois terminei na UFRJ.
A ideia [de escrever um livro] já existe há oito anos. Comecei a escrever no começo de 2010. O ponto crucial é nunca perder a sua verdade. Vai ser [bombástico] por vários momentos, mexe com a história, com dois grandes poderes, primeiro porque cocaína e maconha não se plantam em favela e arma não é fabricada pela playmobil. Tem capítulos muito interessantes onde eu questiono a vaidade, o poder e o ego.
No livro você dá nomes?
Eu dou, não tenho medo de ser processada, e nem podem me processar porque eu tenho todos os documentos. Vai ser lançado entre março e agosto de 2012 fora do Brasil. Acho que até chegar ao Brasil, se permitirem que o livro chegue ao Brasil, só pessoas que ‘tenham cabeça’ vão tentar ler esse livro.
Como é a sua vida hoje?
Hoje é escrever e trabalhar para pagar as contas. Moro com meus três gatos. Depois que lançar o livro eu não sei. Eu vivo aonde eu posso viver, mas com toda a minha integridade. Acho que vou ter que viajar muito, continuo não querendo aparecer. Hoje o meu objetivo é ser independente, manter a minha autonomia e viver. Eu preservo a minha imagem total. A nossa sociedade brasileira ainda acredita que a TV Globo é acima de qualquer coisa. Se eu não gostasse tanto de mim própria, não teria chegado aonde eu cheguei. Muitas vezes fui tentada a sumir do mundo, a desistir.
(*) Entrevista concedida a Fabíola Ortiz no Uol Notícias.
Buscado no Fazendo Média
Nenhum comentário:
Postar um comentário