Posted by Quem tem medo da democracia?
Nota do QTMD?: De fato, o texto abaixo não é encontrável na internet. Pelo menos, não pelo todo-poderoso Google. Eu o achei numa revista antiga e, dada a beleza e raridade, resolvi transcrever. A revista – “Cláudia” – estava sem data, então, não sei de quando é, mas Vinícius morreu há 31 anos. Sem amor, não há democracia. Na verdade, sem amor não há vida. Portanto, vale leitura. E, como diz Vinícius ao final, espero que façam bom proveito.
A teoria dos módulos
Por Vinícius de Moraes
A cada ato de ódio e ressentimento, corresponde uma reação oposta e imediatamente contrária: um ato de amor. O homem que tem na mão o poder de apertar o botão que aciona o mecanismo da guerra atômica não sabe, ou prefere fingir ignorar, que o botão do seio da mulher amada, de cujo corpo ele usufrui na relação carnal, tem um poder infinitamente maior que qualquer arma nuclear, ou sua soma. Dali nasce a vida, de um contato de dois corpos feitos para se amar; gozar da plenitude física e espiritual desse amor e continuar a vida, no ato da criação.
Nada existe de mais revolucionário – porque evolucionário – que a consciência de que só o amor pode salvar o mundo. O amor é a única arma de que dispõe o homem para atravessar uma existência fatalizada pelo sofrimento de nascer, crescer, conviver, trabalhar, amadurecer e por fim morrer dentro de uma sociedade condicionada pelo lucro, pelo prazer e pela intolerância. Uma sociedade cuja cúpula odeia o amor e o considera, no fundo, uma desconversa diante de entidades mais importantes, quais sejam o poder econômico e político, o sentimento de mando, a superioridade hierárquica e de casta: a Supremacia e o Preconceito, enfim, sob todas as suas formas.
O terrível nisso tudo é que se vai fazendo cada dia mais difícil amar, dentro de um mundo neurotizado por mil problemas marginais aos da verdadeira existência, e coexistência, com o resultado de uma debilitação existencial enorme. Está ficando cada dia mais difícil amar direito, amar como deve ser: com o verdadeiro encontro de almas e de corpos totalizados num grande, num imenso entendimento comum. Nada me parece mais importante que a busca desse encontro, sem o qual nenhuma felicidade é possível, nenhum diálogo é provável, nenhum êxtase é absoluto.
Eu estou cada vez mais convencido de que o crescente desajustamento entre os sexos, a que corresponde também o crescente aumento de um sexo intermediário, é fundamentalmente um problema da personalidade. É o que procuro explicar aqui com o que chamo de Teoria dos Módulos. Quando dois seres se apaixonam e se querem unir, eles são como dois módulos lunares gravitando no sentido de um indispensável acoplamento. Até aí, cada um está, como se diz agora, “na sua”. Mas o grande, o infinito impulso de ambos é estar “na deles”.
E enquanto seu lobo não vem, as personalidades-módulos se aproximam, se estudam os ângulos de encaixe, se tateiam, se provam, se experimentam. A aspiração maior, como é claro, é o acoplamento o mais rápido possível. O problema é que, nesse interregno, as personalidades se expõem desvairadamente, naquele anseio de absoluto que o amor exige, naquele sentimento de dar-se e receber em troca. E aí é que está the heart of the matter, o nó da questão. Porque o amor é ao mesmo tempo maravilhosamente dadivoso e furiosamente antropofágico.
Assim, nesse constante confronto, a personalidade mais dependente começa a aderir à mais rica e, quando menos se espera, a passar para o módulo da outra, por isso que é tão mais confortável, e dá tão menos trabalho, largar o corpo. E deixa o módulo próprio vagando sozinho no espaço. Resultado: acoplamento impossível. Conseqüências futuras: a personalidade mais rica e forte começa a dominar instintivamente a mais pobre e dependente. Panorama geral: a quantidade infinita de mulheres despersonalizadas, servilmente submissas, verdadeiras escravas de homens déspotas, que fazem delas gato e sapato. Ou, menos freqüentemente, o desagradável caráter de mulheres dominadoras, que humilham o homem que têm sempre que podem.
Esse tipo de união, a meu ver, nunca é feliz, por isso que evidencia a omissão de uma das personalidades em jogo. Para que haja uma verdadeira felicidade, os dois têm que “estar na deles” ao mesmo tempo em que cada um nunca deixa de “estar na sua”. É a minha Teoria dos Módulos. Comigo está dando certo. Façam muito bom proveito.
Nenhum comentário:
Postar um comentário