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Dia 16 de junho, foi o
aniversário de Ariano Suassuna, nosso querido dramaturgo, que hoje viaja
o Brasil apresentando a riqueza da cultura brasileira com suas
Aulas-Espetáculo. O video acima é sua apresentação no Sesc São Paulo em
abril de 2011. Abaixo vai um texto que explora as influências de uma de
suas peças mais famosas e aproveita pra falar de sua irreverência e
autenticidade.
Tradição Popular e Recriação no Auto da Compadecida
Autor: Braulio Tavarez
Reza a lenda que certa vez um crítico teatral abordou Ariano Suassuna e o inquiriu a respeito de alguns episódios do Auto da Compadecida.
Disse ele: “Como foi que o senhor teve aquela ideia do gato que defeca
dinheiro?” Ariano respondeu: “Eu achei num folheto de cordel”. O
crítico: “E a história da bexiga de sangue e da musiquinha que
ressuscita a pessoa?” Ariano: “Tirei de outro folheto”. O outro: “E o
cachorro que morre e deixa dinheiro para fazer o enterro?” Ariano:
“Aquilo é do folheto também”. O sujeito impacientou-se e disse: “Agora
danou-se mesmo! Então o que foi que o Senhor escreveu?” E Ariano:
“Oxente! Escrevi foi a peça!”
O
episódio certamente não aconteceu dessa forma, mas não importa; que
sirva este exemplo como ilustração dos comentários que se seguem. A
verdade de um episódio assim (que o próprio Ariano nunca conta duas
vezes do mesmo modo) não necessita de um registro taquigráfico do
diálogo acontecido. É um simples pingue-pongue de idéias que pode ser
fielmente reproduzido, sem perda, de dezenas de maneiras diferente.
De fato, alguns episódios do Auto da Compadecida baseiam-se em textos anônimos da tradição popular nordestina. No primeiro ato, veem-se trechos do folheto O dinheiro,
de Leandro Gomes de Barros (1865-1918), onde se conta o episódio do
cachorro morto cujo dono destina uma some em dinheiro para que seu
enterro seja feito em latim, o que dá origem a uma série de quiproquós
eclesiásticos. No segundo ato, o episódio do gato que “descome” moedas e
o da falsa ressurreição ao som do instrumento mágico são inspirados no
romance popular anônimo História do cavalo que defecava dinheiro.
E no terceiro ato, o julgamento dos personagens no Céu e a intercessão
piedosa de Nossa Senhora, a “Compadecida”, correspondem a outro auto
popular anônimo, O castigo da Soberba. Estes trÊs textos-fonte, aliás, são reproduzidos no livro de Leonardo Mota, Violeiros do Norte, cuja primeira edição é de 1925; a versão de O castigo da Soberba foi colhida por Mota junto ao cantador Anselmo Vieira de Sousa (1867-1926).
A
reação de estranheza do crítico (supondo-se que o episódio de fato
ocorreu) deve-se certamente à frustração de uma expectativa, a de que o
Autor de um texto teatral deva tirar esse texto inteiro de sua própria
cabeça, de sua própria imaginação. Um Autor que se apropria de cenas
concebidas por outra pessoa pode parecer, por um tal critério, um
sujeito meio desonesto. E se confessa abertamente tê-lo feito, parece,
ainda por cima, cínico. Este modo de pensar do crítico não é de todo
injustificado, porque se olharmos em torno de nós e virmos a pirataria e
a picaretagem que campeiam no mundo das artes e da cultura-de-massas,
pensaremos de imediato que é preciso vigiar muito de perto qualquer
indivíduo que admita ter-se apossado da criação alheia. Não é isto,
entretanto, que ocorre no presente caso.
A Auto da Compadecida,
como as demais comédias teatrais de Ariano Suassuna, procura recuperar e
reproduzir mecanismos narrativos da comédia medieval e renascentista da
Europa e da comédia popular do Nordeste. Um aspecto importantíssimo
desse tipo de teatro é o seu caráter tradicional e coletivo, no qual a
fidelidade a uma tradição é tão importante quanto a originalidade
individual, – ou mais até – e onde o autor não julga que escreve por si
só, mas com a colaboração implícita de uma comunidade inteira.
Note-se
que Suassuna não pediu emprestadas cenas de outra peça de teatro, mas
sim episódios narrados em verso nos romances populares. O episódio é
transposto do verso para a prosa, e da narrativa indireta para a
encenação direta. O “cavalo que defeca dinheiro” transforma-se num “gato
que descome dinheiro”, a rabequinha mágica do romance popular é
substituída na peça por uma gaita. O autor da peça apropria-se de
episódios já existentes mas não tem com eles a atitude reverente ou
respeitosa de autores eruditos que recorrem às “fontes populares” Ele
muda o que lhe convém, mantém intacto o que lhe interessa, e parece
sentir-se totalmente à vontade com isto.
Ao
usar episódios tradicionais, Suassuna adota a mesma atitude
apropriativa dos artistas medievais ou nordestinos. A Tradição é um
imenso caldeirão de ideias, histórias, imagens, falas, temas e motivos.
Todos bebem desse caldo, todos recorrem a ele. Todos trazem a
contribuição de seu talento individual, mas cada um vê a si próprio com
apenas um a mais na linhagem de pessoas que contam e recontam as mesmas
histórias, pintam e repintam as mesmas cenas, cantam e recantam os
mesmos versos. Histórias, cenas e versos são sempre os mesmos, por força
da Tradição, mas são sempre outros, por força da visão pessoal de cada
artista.
Um folheto de cordel e uma
peça de teatro têm, além disso, um elemento em comum: são obras de
Literatura Oral Que só se transformam em livro por questões de ordem
prática: preservação e transporte do texto. Mas um folheto de cordel é
feito para ser recitado em voz alta: uma peça é feita para ser encenada
por atores. Shakespeare ou José Pacheco podem ser lidos no silêncio de
uma sala e dar ao leitor uma experiência recompensadora. Mas não é para
este tipo de leitura que tais obras foram escritas, e sim para a
transmissão oral, viva, em carne e osso, “som e fúria”.
O
gesto de Ariano Suassuna ao teatralizar um texto em verso equivale ao
gesto de cordelista ao versar uma história em prosa. O verbo versar
é de uso corrente entre os autores de cordel. Trata-se de pegar uma
história já existente, seja um livro ou uma narrativa oral (lenda
popular, conto de fadas, etc.) e recontá-la em forma de sextilhas.
Quando um cordelista versa o Romeu e Julieta de Shakespeare,
assina-a como obra sua, assim como Shakespeare assinou como obra sua a
própria peça, cujo argumento original – a propósito – não é do bardo
inglês. Suassuna cita com frequência em suas aulas-espetáculo o caso
desse folheto, em que o poeta popular narra a história como ela se
passou, mas nos versos finais faz uma ressalva, dizendo que contou a
história daquele jeito para ser fiel a ela, mas que não concorda com o
final.
O cordelista, ao versar uma história alheia, faz uma distinção intuitiva entre as peripécias que são narradas e as palavras escolhidas
para a narração. Recontar uma história alheia, para o poeta e o
dramaturgo popular, é torná-la sua, porque parece existir na cultura
popular a noção de que a história, uma vez contada, torna-se patrimônio
universal e transfere-se para o domínio público. Autoral, apenas, é a
forma textual dada à história por cada um que a reescreveu e
reescreverá.
Se isto ocorre com uma
narrativa inteira, muito mais frequente é a reutilização de pequenos
quadros, de cenas curtas, que podem ser recortadas inteiras de uma obra e
coladas em outra sem que o seu sentido se perca. Uma tal sem-cerimônia
pode ser vista com restrições na mentalidade autoral que vigora na
literatura erudita, na qual a imitação é um defeito, e o plágio, um
delito. Mas é um processo de uso generalizado nas artes populares: o
circo, o teatro de rua, o cordel, o Romanceiro das línguas latinas, as
Baladas de língua inglesa. Fatias inteiras de uma obra são transpostas
para outra e isto é considerado um recurso moralmente legítimo e
esteticamente enriquecedor.
Os
dramaturgos populares têm mentalidade coletiva; gostam de recorrer a um
repertório de motivos que compartilham com seu público. Os lazzi (cenas curtas, completas em si mesmas) da Commedia dell’Arte e as routines dos cômicos do teatro de vaudeville
ou do cinema mudo norte-americano têm o mesmo DNA dramatúrgico dos
episódios da gaitinha mágica, do testamento do cachorro e das moedas
escondidas no fiofó do gato. São pequenos blocos de engenhosidade
narrativa, capazes de serem encaixados em diferentes contextos – um
filme, uma peça, um conto em prosa, um folheto em verso, um esquete de
palco, uma história em quadrinhos – sem que nada se parca da eficácia de
sua construção ou da universalidade de seu entendimento.
Os
peisódios usados por Ariano têm uma mecânica narrativa simples e
divertida, prestam-se à sátira social e lidam com imagens fortes, de
impacto imediato. Falsa morte e falsa ressurreição; o dinheiro igualado
ao excremento; o ambicioso que engole uma história absurda porque a
ambição o cega; os “efeitos especiais” tipicamente de palco (a bexiga
com o falso sangue); o cachorro que deixa herança igualado ao gato que
descome dinheiro; as sentenças de um juiz severo sendo imediatamente
diluídas pelo perdão de um juiz benevolente – são temas e motivos
recorrentes no fabulário popular. Sua linguagem é ideogrâmica, visual,
palpável e exprime-se mais por imagens concretas (como os “rébus”, ou
enigmas figurados, das publicações charadísticas) do que por conceitos
abstratos.
Incrustados numa estrutura
teatral mais ampla e mais encorpada do que a das peças populares,
porque se beneficia da identificação do autor com o teatro clássico
europeu do Século de Ouro, esses pequenos episódios são como figuras que
ilustram um texto, ou como canções já prontas que surgem a certa altura
em um musical. Mantêm sua unidade original, mas são revistas noutro
contexto, enriquecendo-o e sendo renovadas por ele.
O
mesmo processo de apropriação e renovação ocorro com o uso do
personagem João Grilo. Ariano já afirmou que ao dar o nome de João Grilo
ao protagonista do Auto da Comparecida pensava estar fazendo
uma ponte entre o seu teatro e o cordel nordestino, numa homenagem ao
herói do romance de cordel de João Martins de Athayde (1877-1959),
intitulado As proezas de João Grilo, e “a um vendedor de jornal
astucioso que conheci na década de 1950 e que tinha este apelido”.
Descobriu depois, através do português José Cardoso Marques, que em
Portugal também existia um herói picaresco com este nome.
João
Grilo é claramente uma nova encarnação de Pedro Malazarte, talvez o
nosso herói espertalhão mais conhecido, e que na Península Ibérica tinha
o nome de Pedro Urdemalas. Outro antepassado ilustre seu é Lazarillo de
Tormes, o guia de cego que luta para sobreviver no meio da miséria e da
violência, sendo forçado a tornar-se sagaz, trapaceiro e por vezes
cruel. Também se relaciona com personagens da Commedia dell’Arte
europeia, como o Arlequim: espertalhão, cheio de espírito lúdico.
Todos
são típicos heróis pregadores-de-peças, e suas vítimas tanto podem ser
os ladrões e bandidos como os burgueses ricos e as autoridades. Foram os
modelos em que se inspiraram os demais heróis picarescos do cordel: o
“Canção de Fogo”, dos folhetos de Leandro Gomes de Barros (1905-1992),e
outros. Cada um deles é uma espécie de reencarnação dos anteriores, mas
ao dar-lhe um novo norme o autor meio que se apropria dessas
características universais e sente-se à vontade para modificar o
personagem de acordo com a sua conveniência.
A
interferência mais eficaz feita por Ariano no personagem João Grilo foi
dar-lhe um companheiro: Chicó, o mentiroso inofensivo. Inspirado numa
figura real que Ariano conhecera em Taperoá, Chicó veio trazer para esse
personagem ibérico e cordelesco uma terceira pátria literária: o Circo.
Juntos, João Grilo e Chicó reproduzem a tradição circense de mostrar um
palhaço espertalhão, cheio de recursos, que gosta de se meter em
situações arriscadas, e outro palhaço ingênuo, meio covarde, que se
deixa influenciar pelo outro e às vezes acaba atrapalhando-o. Os dois
tipos, observa Suassuna, são exemplarmente batizados pelo povo com as
denominações de O Palhaço e o Besta.
O
modo como Ariano Suassuna utiliza nesta peça episódios e personagens de
uma tradição antiga, com séculos de existência, dá-nos um bom exemplo
de como recorrer a estas fontes. Copiar, mas transformando. Reutilizar,
mas dando sangue novo. Na medida do possível, tentar escrever algo tão
novo e tão vivo quanto o original; procurar fazer da cópia uma obra que o
autor do original pudesse apreciar com prazer e aplaudir com orgulho.
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