quarta-feira, 20 de junho de 2012

Parabéns a Ariano Suassuna e seus 84 anos

buscado no Bule Voador


Dia 16 de junho, foi o aniversário de Ariano Suassuna, nosso querido dramaturgo, que hoje viaja o Brasil apresentando a riqueza da cultura brasileira com suas Aulas-Espetáculo. O video acima é sua apresentação no Sesc São Paulo em abril de 2011. Abaixo vai um texto que explora as influências de uma de suas peças mais famosas e aproveita pra falar de sua irreverência e autenticidade.

Tradição Popular e Recriação no Auto da Compadecida

 


 
Autor:
Braulio Tavarez

 Reza a lenda que certa vez um crítico teatral abordou Ariano Suassuna e o inquiriu a respeito de alguns episódios do Auto da Compadecida. Disse ele: “Como foi que o senhor teve aquela ideia do gato que defeca dinheiro?” Ariano respondeu: “Eu achei num folheto de cordel”. O crítico: “E a história da bexiga de sangue e da musiquinha que ressuscita a pessoa?” Ariano: “Tirei de outro folheto”. O outro: “E o cachorro que morre e deixa dinheiro para fazer o enterro?” Ariano: “Aquilo é do folheto também”. O sujeito impacientou-se e disse: “Agora danou-se mesmo! Então o que foi que o Senhor escreveu?” E Ariano: “Oxente! Escrevi foi a peça!”
O episódio certamente não aconteceu dessa forma, mas não importa; que sirva este exemplo como ilustração dos comentários que se seguem. A verdade de um episódio assim (que o próprio Ariano nunca conta duas vezes do mesmo modo) não necessita de um registro taquigráfico do diálogo acontecido. É um simples pingue-pongue de idéias que pode ser fielmente reproduzido, sem perda, de dezenas de maneiras diferente.
De fato, alguns episódios do Auto da Compadecida baseiam-se em textos anônimos da tradição popular nordestina. No primeiro ato, veem-se trechos do folheto O dinheiro, de Leandro Gomes de Barros (1865-1918), onde se conta o episódio do cachorro morto cujo dono destina uma some em dinheiro para que seu enterro seja feito em latim, o que dá origem a uma série de quiproquós eclesiásticos. No segundo ato, o episódio do gato que “descome” moedas e o da falsa ressurreição ao som do instrumento mágico são inspirados no romance popular anônimo História do cavalo que defecava dinheiro. E no terceiro ato, o julgamento dos personagens no Céu e a intercessão piedosa de Nossa Senhora, a “Compadecida”, correspondem a outro auto popular anônimo, O castigo da Soberba. Estes trÊs textos-fonte, aliás, são reproduzidos no livro de Leonardo Mota, Violeiros do Norte, cuja primeira edição é de 1925; a versão de O castigo da Soberba foi colhida por Mota junto ao cantador Anselmo Vieira de Sousa (1867-1926).

 

A reação de estranheza do crítico (supondo-se que o episódio de fato ocorreu) deve-se certamente à frustração de uma expectativa, a de que o Autor de um texto teatral deva tirar esse texto inteiro de sua própria cabeça, de sua própria imaginação. Um Autor que se apropria de cenas concebidas por outra pessoa pode parecer, por um tal critério, um sujeito meio desonesto. E se confessa abertamente tê-lo feito, parece, ainda por cima, cínico. Este modo de pensar do crítico não é de todo injustificado, porque se olharmos em torno de nós e virmos a pirataria e a picaretagem que campeiam no mundo das artes e da cultura-de-massas, pensaremos de imediato que é preciso vigiar muito de perto qualquer indivíduo que admita ter-se apossado da criação alheia. Não é isto, entretanto, que ocorre no presente caso.
A Auto da Compadecida, como as demais comédias teatrais de Ariano Suassuna, procura recuperar e reproduzir mecanismos narrativos da comédia medieval e renascentista da Europa e da comédia popular do Nordeste. Um aspecto importantíssimo desse tipo de teatro é o seu caráter tradicional e coletivo, no qual a fidelidade a uma tradição é tão importante quanto a originalidade individual, – ou mais até – e onde o autor não julga que escreve por si só, mas com a colaboração implícita de uma comunidade inteira.
Note-se que Suassuna não pediu emprestadas cenas de outra peça de teatro, mas sim episódios narrados em verso nos romances populares. O episódio é transposto do verso para a prosa, e da narrativa indireta para a encenação direta. O “cavalo que defeca dinheiro” transforma-se num “gato que descome dinheiro”, a rabequinha mágica do romance popular é substituída na peça por uma gaita. O autor da peça apropria-se de episódios já existentes mas não tem com eles a atitude reverente ou respeitosa de autores eruditos que recorrem às “fontes populares” Ele muda o que lhe convém, mantém intacto o que lhe interessa, e parece sentir-se totalmente à vontade com isto.
Ao usar episódios tradicionais, Suassuna adota a mesma atitude apropriativa dos artistas medievais ou nordestinos. A Tradição é um imenso caldeirão de ideias, histórias, imagens, falas, temas e motivos. Todos bebem desse caldo, todos recorrem a ele. Todos trazem a contribuição de seu talento individual, mas cada um vê a si próprio com apenas um a mais na linhagem de pessoas que contam e recontam as mesmas histórias, pintam e repintam as mesmas cenas, cantam e recantam os mesmos versos. Histórias, cenas e versos são sempre os mesmos, por força da Tradição, mas são sempre outros, por força da visão pessoal de cada artista.
Um folheto de cordel e uma peça de teatro têm, além disso, um elemento em comum: são obras de Literatura Oral Que só se transformam em livro por questões de ordem prática: preservação e transporte do texto. Mas um folheto de cordel é feito para ser recitado em voz alta: uma peça é feita para ser encenada por atores. Shakespeare ou José Pacheco podem ser lidos no silêncio de uma sala e dar ao leitor uma experiência recompensadora. Mas não é para este tipo de leitura que tais obras foram escritas, e sim para a transmissão oral, viva, em carne e osso, “som e fúria”.
O gesto de Ariano Suassuna ao teatralizar um texto em verso equivale ao gesto de cordelista ao versar uma história em prosa. O verbo versar é de uso corrente entre os autores de cordel. Trata-se de pegar uma história já existente, seja um livro ou uma narrativa oral (lenda popular, conto de fadas, etc.) e recontá-la em forma de sextilhas. Quando um cordelista versa o Romeu e Julieta de Shakespeare, assina-a como obra sua, assim como Shakespeare assinou como obra sua a própria peça, cujo argumento original – a propósito – não é do bardo inglês. Suassuna cita com frequência em suas aulas-espetáculo o caso desse folheto, em que o poeta popular narra a história como ela se passou, mas nos versos finais faz uma ressalva, dizendo que contou a história daquele jeito para ser fiel a ela, mas que não concorda com o final.
O cordelista, ao versar uma história alheia, faz uma distinção intuitiva entre as peripécias que são narradas e as palavras escolhidas para a narração. Recontar uma história alheia, para o poeta e o dramaturgo popular, é torná-la sua, porque parece existir na cultura popular a noção de que a história, uma vez contada, torna-se patrimônio universal e transfere-se para o domínio público. Autoral, apenas, é a forma textual dada à história por cada um que a reescreveu e reescreverá.
Se isto ocorre com uma narrativa inteira, muito mais frequente é a reutilização de pequenos quadros, de cenas curtas, que podem ser recortadas inteiras de uma obra e coladas em outra sem que o seu sentido se perca. Uma tal sem-cerimônia pode ser vista com restrições na mentalidade autoral que vigora na literatura erudita, na qual a imitação é um defeito, e o plágio, um delito. Mas é um processo de uso generalizado nas artes populares: o circo, o teatro de rua, o cordel, o Romanceiro das línguas latinas, as Baladas de língua inglesa. Fatias inteiras de uma obra são transpostas para outra e isto é considerado um recurso moralmente legítimo e esteticamente enriquecedor.
Os dramaturgos populares têm mentalidade coletiva; gostam de recorrer a um repertório de motivos que compartilham com seu público. Os lazzi (cenas curtas, completas em si mesmas) da Commedia dell’Arte e as routines dos cômicos do teatro de vaudeville ou do cinema mudo norte-americano têm o mesmo DNA dramatúrgico dos episódios da gaitinha mágica, do testamento do cachorro e das moedas escondidas no fiofó do gato. São pequenos blocos de engenhosidade narrativa, capazes de serem encaixados em diferentes contextos – um filme, uma peça, um conto em prosa, um folheto em verso, um esquete de palco, uma história em quadrinhos – sem que nada se parca da eficácia de sua construção ou da universalidade de seu entendimento.
Os peisódios usados por Ariano têm uma mecânica narrativa simples e divertida, prestam-se à sátira social e lidam com imagens fortes, de impacto imediato. Falsa morte e falsa ressurreição; o dinheiro igualado ao excremento; o ambicioso que engole uma história absurda porque a ambição o cega; os “efeitos especiais” tipicamente de palco (a bexiga com o falso sangue); o cachorro que deixa herança igualado ao gato que descome dinheiro; as sentenças de um juiz severo sendo imediatamente diluídas pelo perdão de um juiz benevolente – são temas e motivos recorrentes no fabulário popular. Sua linguagem é ideogrâmica, visual, palpável e exprime-se mais por imagens concretas (como os “rébus”, ou enigmas figurados, das publicações charadísticas) do que por conceitos abstratos.
Incrustados numa estrutura teatral mais ampla e mais encorpada do que a das peças populares, porque se beneficia da identificação do autor com o teatro clássico europeu do Século de Ouro, esses pequenos episódios são como figuras que ilustram um texto, ou como canções já prontas que surgem a certa altura em um musical. Mantêm sua unidade original, mas são revistas noutro contexto, enriquecendo-o e sendo renovadas por ele.
O mesmo processo de apropriação e renovação ocorro com o uso do personagem João Grilo. Ariano já afirmou que ao dar o nome de João Grilo ao protagonista do Auto da Comparecida pensava estar fazendo uma ponte entre o seu teatro e o cordel nordestino, numa homenagem ao herói do romance de cordel de João Martins de Athayde (1877-1959), intitulado As proezas de João Grilo, e “a um vendedor de jornal astucioso que conheci na década de 1950 e que tinha este apelido”. Descobriu depois, através do português José Cardoso Marques, que em Portugal também existia um herói picaresco com este nome.
João Grilo é claramente uma nova encarnação de Pedro Malazarte, talvez o nosso herói espertalhão mais conhecido, e que na Península Ibérica tinha o nome de Pedro Urdemalas. Outro antepassado ilustre seu é Lazarillo de Tormes, o guia de cego que luta para sobreviver no meio da miséria e da violência, sendo forçado a tornar-se sagaz, trapaceiro e por vezes cruel. Também se relaciona com personagens da Commedia dell’Arte europeia, como o Arlequim: espertalhão, cheio de espírito lúdico.
Todos são típicos heróis pregadores-de-peças, e suas vítimas tanto podem ser os ladrões e bandidos como os burgueses ricos e as autoridades. Foram os modelos em que se inspiraram os demais heróis picarescos do cordel: o “Canção de Fogo”, dos folhetos de Leandro Gomes de Barros (1905-1992),e outros. Cada um deles é uma espécie de reencarnação dos anteriores, mas ao dar-lhe um novo norme o autor meio que se apropria dessas características universais e sente-se à vontade para modificar o personagem de acordo com a sua conveniência.
A interferência mais eficaz feita por Ariano no personagem João Grilo foi dar-lhe um companheiro: Chicó, o mentiroso inofensivo. Inspirado numa figura real que Ariano conhecera em Taperoá, Chicó veio trazer para esse personagem ibérico e cordelesco uma terceira pátria literária: o Circo. Juntos, João Grilo e Chicó reproduzem a tradição circense de mostrar um palhaço espertalhão, cheio de recursos, que gosta de se meter em situações arriscadas, e outro palhaço ingênuo, meio covarde, que se deixa influenciar pelo outro e às vezes acaba atrapalhando-o. Os dois tipos, observa Suassuna, são exemplarmente batizados pelo povo com as denominações de O Palhaço e o Besta.
O modo como Ariano Suassuna utiliza nesta peça episódios e personagens de uma tradição antiga, com séculos de existência, dá-nos um bom exemplo de como recorrer a estas fontes. Copiar, mas transformando. Reutilizar, mas dando sangue novo. Na medida do possível, tentar escrever algo tão novo e tão vivo quanto o original; procurar fazer da cópia uma obra que o autor do original pudesse apreciar com prazer e aplaudir com orgulho.

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