Buscado no Gilson
Sampaio
via Solidários -
Programa de
19/03/1990 (Transcrição e vídeo)
Versão alternativa da
entrevista em vídeo
Abaixo trancrição da
mesma retirado do site Memória Roda Viva
Jorge Escosteguy: Boa
noite. Estamos começando mais um Roda Viva pela TV Cultura de São
Paulo. Hoje é um Roda Viva especial, gravado fora dos estúdios.
Portanto, os telespectadores não poderão fazer perguntas por
telefone. É um Roda Viva especial, porque trazemos um convidado
especial e, de certa forma, difícil de ser entrevistado até pelas
preocupações com a segurança da sua equipe. Nós vamos entrevistar
hoje, o presidente de Cuba, Fidel Castro.
Para entrevistar Fidel
Castro esta noite no Roda Viva nós convidamos os seguintes
jornalistas: Márcio Chaer, do Jornal do Brasil; Clóvis Rossi, da
Folha de S. Paulo; José Antônio Severo, da Gazeta Mercantil; e
Alceu Náder, do Jornal da Tarde. Esta é a segunda visita que Fidel
Castro faz ao país. Há trinta anos ele governa Cuba e tem se
tornado, ao longo dos anos, uma espécie de inspiração ou mito para
os movimentos de esquerda na América Latina, junto com Ernesto Che
Guevara. Nesses últimos meses, de Perestroika no resto do mundo, de
certa forma Fidel Castro tem sido colocado no meio de uma polêmica:
sobre que mudanças poderão ocorrer em Cuba diante dos reflexos da
Perestroika, principalmente no leste Europeu.
Boa noite, presidente.
Eu gostaria primeiro de lhe fazer uma pergunta específica sobre a
questão de segurança. O senhor chegou ao Brasil cercado de certa
forma por um aparato de segurança muito grande. O senhor tem medo de
algum atentado? Medo de que alguém atente contra a sua vida?
Fidel
Castro: Eu não tenho temor de um atentado. Mas pode ser que os
responsáveis por minha segurança tenham medo. Falou-se também de
algumas armas que teriam vindo de lá e que foram devolvidas. O que
eu sei... Eu não me ocupo disso. Sou mesmo quem protesta contra
isso... A política que se adotou é que cada uma das delegações
poderia tomar suas medidas de segurança, além das medidas de
segurança que tomassem as autoridades do governo. Comigo há alguns
antecedentes. Durante muito tempo a CIA e o governo dos Estados
Unidos tentaram me eliminar fisicamente. Isso foi reconhecido no
próprio Senado dos Estados Unidos. E eles não abandonaram esta
prática. Assim, cada vez que eu me movimento, os setores
contra-revolucionários, os inimigos do país, geralmente fazem
planos. Sempre têm a esperança de caçar Castro. Em um lugar ou em
outro. E isso, naturalmente, desperta inquietações nos companheiros
em nosso país quanto à segurança; e tratam de tomar o máximo
possível de medidas de segurança. Agora eu, como disse
recentemente, confio nas autoridades do país. Quem pode dar
verdadeiras medidas de segurança são as autoridades do país. Foi
assim na minha viagem ao Equador, ao México, à Venezuela e ao
Brasil. Se dependesse de mim, eu não necessitaria de qualquer tipo
de segurança. Mas os companheiros acham que devem ajudar no
equipamento, numa série de coisas. Mas minha segurança aqui no
Brasil quem garante são as autoridades do Brasil. Pude observar
muito profissionalismo, muita organização, eficiência no pessoal
da segurança.
Jorge Escosteguy: O
senhor tem acompanhado, de certa forma, esses movimentos no Leste
Europeu, principalmente na União Soviética, a chamada Perestroika e
os movimentos de liberalização em outros países europeus. Que
reflexos o senhor acha que esses movimentos terão em Cuba? Há
alguma perspectiva de mudanças a nível institucional no seu país?
Fidel Castro: Bom, tudo
isso é um fenômeno que ganhou destaque recentemente. Eu não tenho
certeza de que os que elaboraram as idéias na União Soviética, com
objetivo correto de aperfeiçoar o socialismo, o que não pode ser
questionado, sabiam que repercussões isso poderia ter na Europa
Oriental. Porque realmente o processo que está ocorrendo na Europa
Oriental é um processo de desmantelamento do socialismo.
José Antônio Severo:
O senhor acredita que os países do Leste Europeu entrarão no
capitalismo, simplesmente, ou eles manterão muitas das chamadas
conquistas do socialismo?
Fidel Castro: Acho que
havia erros que deveriam ser corrigidos. Havia coisas que deveriam
ser superadas. Mas o fenômeno que realmente está ocorrendo é o
desmantelamento do socialismo. Em alguns com maior força que em
outros. Em países como a Polônia já se está fazendo um
desenvolvimento capitalista. E inclusive orientado por especialistas
norte-americanos. Privatizar a indústria, estabelecer uma economia
de mercado. E o que é o capitalismo se não a propriedade privada e
a economia de mercado? Ou agora se chama de outra maneira?
Clóvis Rossi: Os erros
que havia nesses países: há também em Cuba esse tipo de erro e
quais são?
Fidel Castro: Eu creio
que em Cuba havia poucos erros como os que existiam nesses países. E
vou explicar por que. Nós nunca cometemos muitos dos erros que se
cometeram lá na Europa Oriental. Posso dar um exemplo. E sempre
diferenciando a União Soviética dos países socialista da Europa.
Porque são situações diferentes. Dois papéis diferentes jogados
na história. Na URSS, houve uma revolução autêntica. Não foi uma
revolução importada de algum lugar. Como na China houve uma
revolução autêntica. Como em Cuba houve uma revolução autêntica.
E as revoluções autênticas que nascem do povo são diferentes
daquelas revoluções que ocorrem por razões conjunturais. E não há
dúvidas de que as revoluções socialistas nos países do Leste
ocorreram por razões conjunturais, em função do final da II Guerra
Mundial. Não esqueçam que mesmo no caso da República Democrática
Alemã [Alemanha Oriental], o socialismo se constrói a partir das
ruínas do fascismo na parte menos desenvolvida da antiga Alemanha.
Mas, na União Soviética, ocorreram problemas como o stalinismo. E
esse fenômeno do stalinismo nunca se conheceu em nosso país, nem
nada parecido. De abuso de autoridade, de crimes que evidentemente se
cometeram na URSS. Fizeram grandes coisas por um lado. Mas, de outro,
ocorreram muitos abusos de autoridade, grandes erros nesse terreno
que foram reconhecidos. Nós não temos que retificar um problema que
não conhecemos, que não sofremos. Quem conhece a verdadeira
história de Cuba - não a que escrevem os ianques - sabe como são
as coisas em Cuba. Em nosso país se criou um sentimento muito forte
contra todo o abuso de autoridade, pois nosso país conheceu isso,
conheceu abusos, torturas, crimes. E nós resolvemos defender a
Revolução sem abuso do poder, sem cometer violências contra a
pessoa humana. Temos leis e tribunais e se aplicam as punições e
algumas são duras. Mas nunca saímos da lei. Em nosso país não há
um só caso de desaparecido. Em nosso país não há um só caso de
assassinato político. Mas posso dizer mais - e digam o que digam mil
vezes na propaganda imperialista - em nosso país nunca houve homem
torturado. Porque os primeiros a não admitir isso seríamos nós, os
revolucionários, os que nos educamos no ódio contra isso. Nosso
povo não é um povo capaz de ser cúmplice de fatos dessa natureza.
Temos uma folha na história de nosso país que creio que um dia a
história vai contar. Creio que não há um país no mundo que seja
mais cuidadoso e mais escrupuloso no exercício do poder. Na URSS, se
criou o fenômeno do governo unipessoal e se cometeram abusos
historicamente comprovados. E fenômeno como o stalinismo, nós não
conhecemos em Cuba.
Jorge Escosteguy: O
senhor mencionou o poder unipessoal. No caso de Cuba, a sua presença
durante três décadas não seria um exemplo de unipersonalismo?
Fidel Castro: Poderia
parecer, porque simplesmente me coube jogar um papel. Então, tudo se
atribui a Castro. Dizem: a revolução de Castro, o governo de
Castro. Castro decidiu isso. Eu tinha um poder unipessoal como o
comandante-em-chefe das forças revolucionárias quando estávamos na
luta. E ainda assim tínhamos uma direção coletiva. Desde que se
organizou nosso movimento, desde que éramos dez ou doze, já
tínhamos uma direção coletiva de vários membros da direção do
movimento. E três de nós éramos os executivos. Os que tinham o
segredo das coisas fundamentais. Depois vem a guerra, eu era chefe da
expedição. Tinha a responsabilidade de tomar as decisões, como em
qualquer ação desta natureza. Depois, na "Sierra Maestra",
era chefe das unidades de combate. Mas ainda assim nosso movimento
tinha uma direção. E as questões políticas fundamentais eram
analisadas e discutidas. E mais de uma vez nos enganamos. E mais de
uma vez eu tinha um critério e a direção tinha outro. E cumpríamos
os critérios da direção. Quando triunfa a Revolução em Cuba, eu
sou comandante-em-chefe de um exército vitorioso que foi dirigido na
guerra, as responsabilidade das operações na guerra eram minhas.
Mesmo assim o primeiro que fizemos tão logo termina a guerra, foi
construir uma direção coletiva. E depois, quando unimos todas as
organizações revolucionárias, após um longo processo, foi
constituída uma direção da Revolução. E desde então tem sido a
prática em nosso país, quando se fundou o partido, o Comitê
Central, direção coletiva do partido, a direção coletiva do
Estado. Não temos um governo presidencialista. Nós temos uma
direção coletiva. Eu sou o presidente do Conselho de Estado. Não
vou negar que tenho autoridade, que tenho influência. Bom, porque
todos que fundaram a Revolução têm autoridade e têm influência.
Se não cometeram grandes erros, se conseguem contar com a confiança
dos outros. Nesse sentido tenho influência grande. Mas as decisões
estratégicas fundamentais em nosso país são tomadas coletivamente.
O presidente dos Estados Unidos tem muito mais atribuições do que
eu. Incomparavelmente mais atribuições. Anda inclusive com
uma maletinha onde estão as chaves atômicas e pode começar uma
guerra nuclear sem consultar ninguém. O presidente dos Estados
Unidos tem poderes que nem Nero tinha. Nero é acusado de ter
incendiado Roma. Nero podia incendiar o mundo. E temos nos Estados
Unidos um presidente com muito mais poder que um imperador romano.
Ele pode prestar contas depois. Vinte ou trinta dias depois.
Imaginem, na era nuclear o presidente dando contas vinte ou trinta
dias depois de seus atos. Invade tal país e depois presta contas.
Faz a guerra... eu não tenho nenhuma dessas atribuições, nem
parecidas. E digo a vocês que os presidentes da América Latina têm
mais direitos presidenciais do que eu. Eu posso ter influência. Não
nego que a tenho. Mas não tenho essas atribuições, não gosto de
usar e muito menos de abusar das atribuições que me conferem a lei
e a Constituição. E não só a lei e a Constituição, mas nossos
próprios princípios, nossas normas históricas.
Alceu Náder: Levando
em conta que o ser humano é mortal, o que será de Cuba depois de
Fidel?
Fidel Castro: Bom,
creio que se depois de Fidel, Cuba não fosse nada, que se depois de
Fidel a revolução não pudesse ir adiante, o trabalho de nosso povo
durante trinta anos teria sido inútil. Primeiro, isso me tiraria o
sono, se não confiasse no povo, se não confiasse nas gerações de
milhares e dezenas de milhares e de centenas de milhões de jovens
que se educaram, que receberam um nível educacional, cultural,
científico, político... Porque o importante é que os homens
compartilhem idéias, um pensamento, um estilo de governo, uma
tradição. Eu tenho uma confiança plena e absoluta, porque o que
fizemos foi promover muitos novos quadros e também distribuir
funções. Eu não sou um indivíduo que gosta de centralizar tudo.
Em toda a minha vida distribui o máximo possível as funções da
direção e administração do Estado e da direção política do
país. E há um nível de atribuições muito grande. Eu coordeno,
ajudo, estimulo, inspiro, falo... Mas em nosso país há muita gente
que aprendeu qual é o seu ofício e suas funções. Estamos
organizados e preparados para isso. Assim, se eu por enfermidade não
puder exercer as funções, não seria nenhum problema. Se eu morro,
não seria nenhum problema. Porque não creio no providencialismo.
Sei que os homens têm um papel na história. Mas creio que o papel
na história quem tem são os povos. E um homem não é nada sem o
povo. Não há nada sem a colaboração de centenas de milhares, de
milhões de pessoas. Nós temos instituições. Teria sido talvez
pior no meio da guerra, ou nos primeiros tempos, ou em certos
momentos muitos difíceis. Mas, na medida em que passa o tempo, é
extraordinária a quantidade de valores que sobem e que nós
promovemos. E nossa esperança inclusive é nos que venham depois de
nós... Como aconteceu em muitos outros países. Tivemos por exemplo
Juarez (Benito Juarez; presidente do México entre 1864-1872. Seu
governo é caracterizada pela promulgação das Leis de Reforma),
grandes dirigentes na Revolução Mexicana. Depois, a Revolução
Mexicana se institucionalizou e manteve a continuidade de governo
durante mais de cinqüenta anos. Mudaram os homens, mas não mudou o
partido. Por isso as instituições são mais importantes. Há um
ditado que diz: o rei morreu, viva o rei. É possível que os
homens... e como regra os homens são de si tudo o que são capazes
quando assumem uma responsabilidade. Não há nada melhor do que dar
responsabilidade aos homens. Então os homens demonstram do que são
capazes. Eu nunca acreditei que possa haver um homem superior aos
demais. Ao contrário, eu creio na capacidade mais ou menos igual de
todos os homens... E é a oportunidade que faz os homens exercerem
seu papel. Talvez venha um dia aqui a São Paulo, espero que assim
seja, que venham homens que tenham bom... não tanta experiência,
mas que sejam mais capazes que eu para representar o meu país e para
fazer o trabalho que eu estou fazendo agora.
Clóvis Rossi: O senhor
já criticou em vários discursos o que chama de desmantelamento do
socialismo em países do leste Europeu. Mas não é apenas no Leste
Europeu, os partidos comunistas do Ocidente e até um herói
estrangeiro da revolução cubana, como o presidente da Etiópia, o
presidente Menristo, da Etiópia, acaba de fazer uma autocrítica
condenando o sistema de centralização econômica.
Fidel Castro: A posição
que eu tenho em relação aos meus erros do socialismo é de que
esses erros têm que ser superados. Eu não me oponho a nada que seja
para aperfeiçoar o socialismo. Nem na URSS, nem em nenhuma parte.
Clóvis Rossi: Quais
são...
Fidel Castro:
Agora...[fazendo silêncio para Clóvis Rossi]...Nós temos corrigido
erros. E antes que se falasse em Perestroika, no último congresso do
nosso partido, que foi em princípio de 1986, há mais de quatro
anos, nós colocamos a questão da retificação de erros e
tendências negativas. Venho fazendo um forte trabalho nessa direção.
Isso se referia principalmente às questões relacionadas com a
construção do socialismo. Porque mesmo nossa Revolução tendo sido
muito criativa e muito autóctone e cometeu erros por sua própria
conta... Cometeu nos primeiros anos da Revolução no que se refere à
organização das empresas, à utilização dos recursos. Nós num
certo momento quase tínhamos desprezo pela contabilidade. Cometemos
erros desse tipo. Eu diria que tentamos acelerar o processo. Quisemos
saltar etapas históricas. Estávamos quase querendo construir uma
sociedade comunista, e não uma sociedade socialista. Isso se
explica, porque ocorreu a revolucionários de qualquer época. Houve
conseqüências positivas, mas também negativas. E quando nós fomos
retificar aqueles erros, cometemos o erro de copiar muitas coisas do
socialismo que aparentemente já estavam provadas pela vida, pela
história, pelas experiências na URSS e em outros países
socialista. E copiamos. Para entender bem isso, é preciso remontar à
época de Che (Guevara), quando ele foi nomeado ministro da Indústria
e viu-se na necessidade de organizar a produção socialista...
Aquelas indústrias. Como organizá-las. Ia ser com conceitos de
rentabilidade, os salários, os prêmios, os estímulos materiais, os
estímulos morais... Então eu posso dizer e assegurar
categoricamente que minha admiração pelo Che cresceu na medida em
que vejo e compreendo que foi um grande visionário, um grande
profeta. Porque nos primeiros anos da Revolução, e quando se viu
frente à tarefa, começou a questionar o método de construção do
socialismo que estava estabelecido na URSS e nos países socialistas.
Ele dizia que não se podiam utilizar as categorias do capitalismo na
construção do socialismo. Estava contra uma série desses
conceitos. Ele não viveu o tempo suficiente porque sua impaciência
de lutador levou-o a entrar em ação de novo e a morrer em combate.
Eu digo que foi uma perda muito grande. Na época nós víamos tudo
isso como uma coisa mais ou menos acadêmica. Entre o método
orçamentário que o Che propunha e o método chamado de
autofinanciamento que prevalecia, que se aplicava nos países
socialistas. Quando nós em 1975 copiamos muito isso, tomamos a
decisão no momento em que corrigíamos os erros de idealismo e
utilizamos esse método. Era o único provado. Começaram a surgir
problemas. No começo não nos demos conta, só com o correr dos
anos, da conseqüência altamente negativa para nosso país da
aplicação desses métodos. Por isso, em 75 resolvemos dar uma
virada. Não uma virada no sentido de desbaratar e desorganizar tudo
o que havia, e sim retificando progressivamente e sem trauma e sem
desorganizar o país... retificando aqueles erros. E às vezes fomos
fazendo setor por setor. Ainda não terminou esse processo, mas
estamos indo muito bem. E os resultados disso são realmente
extraordinários. Mas veja, naqueles países, é claro que nem tudo o
que se fez naqueles países foi ruim. Eu não poderia dizer... Estou
em desacordo com uma crítica destrutiva da história da URSS.
José Antônio Severo:
O Estado cubano é mais eficiente do que as máquinas, os aparatos do
Estado do Leste Europeu? Ou seja, você acha que o cubano é mais
eficiente que os seus correspondentes no Leste?
Fidel Castro: Antes de
responder gostaria que me deixasse terminar a idéia anterior... de
que eu sou contrário a uma política destrutiva da história e dos
grandes méritos da União Soviética. Porque esse povo resistiu à
intervenção. defendeu a primeira revolução, deu vinte milhões de
vida na luta contra o fascismo. A contribuição da União Soviética
foi muito grande. Deu condições de liberação aos países que
estavam ainda colonizados. A União Soviética foi capaz de alcançar
as armas nucleares num momento em que estava em condições de
inferioridade. Capaz de participar da corrida espacial. Há grandes
contribuições. É um país que produz mais de 600 milhões de
toneladas de petróleo. É o maior produtor de petróleo do mundo, é
o maior produtor de gás no mundo, quase um trilhão de metros
cúbicos. Construiu linhas férreas, oleodutos, gasodutos, sistema
energético. É uma coisa colossal. Eles construíram no meio do
bloqueio, de situações difíceis. Vamos admitir os erros, mas temos
que reconhecer também os grandes méritos desse país. Eu penso que
na medida em que foram empregados os mecanismos do capitalismo,
começaram os problemas. Foram capazes de conquistar o espaço, mas
não foram capazes de faze um bom par de sapatos.[risos]
Fidel Castro: Foram
capazes de fazer um foguete que chegasse a Vênus, mas não faziam
boas roupas. Se atrasarm em alguns campos, como o da saúde e
cometeram erros no campo da educação. Houve de tudo. Mas... Foram
incapazes de resolver alguns problemas. Creio que tinham um
planejamento rígido. Muito rígido. Eu não posso dizer que nosso
Estado funciona, melhor, assim, de forma genérica. Mas posso dizer
que funciona melhor em muitas coisas. No campo da saúde pública
funciona melhor que qualquer Estado socialista. E está a caminho...
Funciona melhor não só que os países socialistas, mas funciona
melhor que grande número de países capitalistas. Nosso sistema de
saúde é superior ao dos Estados Unidos, digamos... apesar dos
recursos tecnológicos e científicos daquele país, nosso sistema de
educação funciona melhor, já não digo que dos países
socialistas. Funciona melhor que o dos Estados Unidos. E os índices
de analfabetismo são maiores nos Estados Unidos que em Cuba. Os
problemas de lacunas culturais e políticas e de instrução que tem
um cidadão médio nos Estados Unidos... ele está muito abaixo do
nível de instrução do nosso país. Já não nos comparamos a
países do Terceiro Mundo em muitos desses índices. Porque temos uma
mortalidade infantil de 11,1 pontos, estamos nos comparando a países
mais desenvolvidos. Ficam alguns poucos com índice melhor e nós
pensamos que com as medidas que estamos adotando vamos chegar e estar
entre os primeiros do mundo. A instituição do médico da família,
criada em nosso país, não tem em nenhum país socialista e em
nenhum capitalista, do jeito que nós temos. Nas atividades
esportivas, digamos... Nosso país tem os melhores per capita do
mundo em medalhas ganhas em olimpíadas, competições
internacionais, em tudo... Apesar de ser um país de apenas dez
milhões de habitantes. Que não era nada, nem se ouvia falar do
nosso país neste campo... E creio que estamos introduzindo na
organização da produção, conceitos que são muito superiores aos
dos países socialistas. E estes conceitos começaram a dar frutos.
Estamos num processo de retificação e de aperfeiçoamento de nosso
Estado e de nosso sistema. Nós não temos o sistema de eleição
como na União Soviética, em que se têm o candidato único nos
distritos e este é o candidato. Nós não fazemos nada disso. Nós
estabelecemos um sistema de eleição em que não é o partido que
postula, mas as massas de vizinhos. Reunidos numa circunscrição,
podem postular até oito candidatos, no máximo, e um mínimo de
dois. E temos um segundo turno e muitas vezes há o segundo turno. Aí
se elegem os delegados que nomeiam os poderes do Estado. O municipal,
o provincial, o nacional. E mais de 60 por cento da Assembléia
Nacional são delegados eleitos desta forma, na base, isso não
fizeram outros países. Acontece que isso não se sabe... Porque
desgraçadamente se conhece muito pouco. Se conhece tudo o que os
Estados Unidos queiram... seus colossais meios de comunicação de
massa, sua televisão... vocês sabem porque são da televisão. Mas
vocês não poderiam me dizer agora o que está acontecendo na
Somália. Se há um acontecimento no Egito, estou certo que vocês
têm imediatamente a câmera e o satélite para informar em São
Paulo o que ocorre no Egito, ou dizem eles que ocorre no Egito. Têm
uma quantidade de recursos fabulosa, enorme, mobilizaram tudo, e o
que se conhece no mundo é o que eles dizem. Se um país pequeno não
tem esses recursos, é muito difícil fazer conhecer seu ponto de
vista, sua verdade. E eu ficava assombrado com a ignorância que há
em geral no mundo sobre o que ocorre em nosso país. E alguns nos
criticam, porque não divulgam mais. E eu digo: mas com o quê e
como? Se... bom, temos uma oportunidade como esta, magnífica, eu
posso falar com o povo brasileiro, neste caso com uma grande
população, de um grande país, através desses meios. Porque estou
aqui, estou conversando com vocês. Mas eu não posso me encontrar
com vocês todos os dias. O que eu digo em Cuba as pessoas não sabem
em São Paulo. A não ser um telegrama de uma das grandes agências
transnacionais ou o que os Estados Unidos enviam por satélite.
Márcio Chaer: Por
todas as informações que se tem aqui no Brasil, se houvesse uma
eleição para presidente hoje em Cuba, o senhor ganharia. Por que o
senhor não faz essa eleição? Eu gostaria de saber se o senhor teme
que um processo eleitoral vá provocar um processo de desmantelamento
como o senhor diz.
Fidel Castro: Se
dissesse que sim, que ganho as eleições de forma absoluta, não
haveria outro argumento além do que eu estou dizendo. Qual seria sua
validade? Eu tenho que me ater a outros enfoques... e dizer o
seguinte: Se a Revolução não tivesse o apoio absolutamente
majoritário do povo, não conseguiria se manter por mais de 30 anos,
frente ao país mais poderoso da Terra, que representa uma ideologia,
que tem os meios de comunicação mais sofisticados que pode ter um
país, que tem um poderio econômico enorme, que nos bloqueou por
todos os lados, que nos ameaçou... E o povo resistiu. Resistiu a
todas a campanhas de subversão, resistiu à invasão mercenária de
Giron (Baia dos Porcos), resistiu à ameaça de guerra nuclear em
1962 e resistiu a anos de bloqueio e agressões. Este pequeno país
tem colaborado com outros países com médicos, professores... mais
de 400 mil pessoas de Cuba prestam ajuda internacionalista em dezenas
de países do mundo. Só um povo com uma alta consciência, alta
cultura, faz isso. Quando os nicaragüenses nos pediram mil
professores, apareceram 30 mil voluntários. Foram dois mil porque
era o necessário no começo da Revolução. E quando os contras
mataram alguns professores, se ofereceram cem mil. Pergunto se há
algum povo no mundo capaz de praticar a solidariedade nesta escala. E
eu posso dizer, por exemplo... não tomem isso como uma falta de
modéstia... Se hoje alguma parte do mundo precisar de voluntários,
como professores, médicos, enfermeiras, técnicos, Cuba sozinha
ofereceria seguramente o dobro ou o triplo que todo o resto da
América Latina junta...
[interrompido]
Fidel Castro:...Porque
em nosso país não se têm apenas os votos. Porque aqui não se sabe
que em Cuba há uma Constituição. Aqui não se sabe que em Cuba há
uma eleição a cada dois anos e meio. Ignora-se. Porque em nosso
país o povo não tem apenas os votos. Tem as armas. Nosso país é
um povo todo organizado, milhões de pessoas, homens e mulheres
constituem o sistema defensivo de nosso povo... Não só um voto.
[ ]: O senhor
considera que Cuba está em guerra...
Fidel Castro: Para que
usem este direito a cada dois anos ninguém mais se lembre dele. Em
nosso país, o delegado eleito pelo povo e os representantes têm que
estar prestando contas incessantemente de sua gestão, e podem ser
cassados. Mas, além disso, o povo tem as armas. Os estudantes têm
as armas, os operários têm as armas, os camponeses, todos os
cidadãos têm instrução militar. Os homens e as mulheres. Os
brancos e os negros, a juventude. Poderia ser oprimido um povo,
poderia aceitar um governo por 24 horas, por uma semana, uma
sociedade que tem, não só os votos, mas também as armas? Às vezes
me perguntam o que estaria ocorrendo na Espanha, por exemplo, se ali,
em outros lugares, mesmo na Europa que os reprime com cães, com
bombas de gás lacrimogêneo. Em nosso país jamais se usou um gás
lacrimogêneo, um cão, um policial com máscara e capacete. Isso não
se conhece lá. Como todos os dias se pode ver isso no mundo
capitalista desenvolvido tão democrático... Que garantias têm
quando há milhares de operários em greve ou saem em uma
manifestação e são reprimidos de maneira cruel. As revistas e os
jornais estão cheios dessas notícias. Jamais a Revolução fez
isso. Porque há um povo unido. Entendam que nós somos uma fortaleza
sitiada. Um povo unido, cercado pelos Estados Unidos. Então esse
povo se defende. E são as massas, o povo organizado, as mulheres, as
crianças, os pioneiros, os estudantes de nível médio, de nível
superior. Isso é uma realidade. Há uma pátria a defender, uma
independência, uma grande obra social a defender. Por desgraça
os sandinistas não tiveram tempo de fazer essa obra, não deixaram,
com a guerra suja que lhes custou dezenas de milhares de vida, com o
bloqueio. Mas vocês devem considerar que se começamos a discutir
aqui e trazemos alguns dados estatísticos da situação social e da
vida dos países latino-americanos, esses dados não resistem a
qualquer comparação. A mim quase daria pena expô-los, porque me
dói a situação terrível de mendicância, crianças abandonadas,
desnutrição, desemprego, os níveis de saúde, as perspectivas de
vida, a mortalidade infantil. Na América Latina está em torno de
60, e em nosso país é 11,1. Não é nem a metade, é seis vezes
menos praticamente. Se virmos os índices de analfabetismo, de
educação, de escolarização, se vemos a atenção que recebem
nossas crianças nas escolas especiais, se vemos as instituições
aonde vão os filhos das mães trabalhadoras. Considera-se que a
mulher incorporada ao trabalho ganhou mais dignidade. Cinqüenta e
oito por cento da força técnica do país são mulheres. E houve
mudanças colossais. Eu digo que nós já resolvemos em 30 anos o que
a América Latina não resolveu em 200 anos. Essa é a realidade.
Jorge Escosteguy:
Presidente, o senhor mencionou o seu país como uma fortaleza sitiada
e falou há pouco da Nicarágua. Cuba não se sente de certa forma
isolada, solitária, diante da derrota do sandinismo no Nicarágua e
os acontecimentos do Leste Europeu?
Fidel Castro: Bom, é
uma fortaleza sitiada no sentido militar, pode-se dizer. Em função
do risco que representa a vizinhança de um país tão poderoso como
os Estados Unidos. Vocês não podem imaginar isso porque são um
país grande, enorme, oito milhões e meio de quilômetro, estão
muito longe dos Estados Unidos, para sorte de vocês. Porque o México
está perto. Tem três mil quilômetros de fronteira, o que lhe
custou essa vizinhança? Primeiro foi mais da metade de seu
território, as terras mais ricas em minerais e petróleo, e o que
têm que sofre por isso. Nós estamos a 90 milhas. Temos até uma
base ianque que está lá pela força, porque tem vontade, porque não
quer sair. Sem ter qualquer direito de estar lá. E nos agridem e nos
ameaçam com os meios de guerra mais sofisticados. Quero dizer então
que nós temos que defender a independência e a soberania do país
frente a este poder militar. Isso não significa outro tipo de
isolamento. Bom, nos bloqueiam economicamente e sua capacidade de
bloqueio é muito grande...
José Antônio Severo:
Essa base de Guantánamo será retirada dentro de poucos anos, né?
Fidel Castro: Mais
tarde ou mais cedo terão que se retirar. Nós transformamos esta
questão num ponto prioritário. Em qualquer mudança nas relações
de Estados Unidos e Cuba, seja qual for a solução, têm que retirar
a base de Guantánamo. Eles só têm o direito de uma base militar
pela força no território de outro país. Bom, então... na
economia, sofremos o bloqueio. Estávamos falando...
Jorge Escosteguy: Dessa
mudança da Nicarágua e o Leste...
Fidel Castro: Estados
Unidos não só impedem o comércio de outros países com Cuba, se
podem tomar alguma medidade represália... a toma. Se Cuba exporta
níquel a algum país europeu eles dizem: Se tem níquel cubano, não
compro. O bloqueio tem muitos tentáculos em muitos lugares. Mas
também temos relações econômicas com muitos países. Temos
relações políticas com muitos países. E muitos países do
Terceiro Mundo. Cuba foi o presidente do Movimento de Países Não
Alinhados. E Cuba acaba de ser eleita para o Conselho de Segurança
das Nações Unidas por 145 votos. É uma das maiores votações já
registradas. Nós mesmos nos assombramos. Porque quando as votações
são secretas, muita gente se vinga e vota a nosso favor. Quando são
públicas, como em Genebra, sabem que podem vir represálias
econômicas... Mas nas votações secretas na ONU ( Organização da
Nações UNidas) sempre temos um grande número de votos. Isso não
reflete isolamento. E isso ocorreu há uma semana. Temos um
companheiro que durante o mês de fevereiro presidiu o Conselho de
Segurança. Fez um excelente trabalho, e tem experiência neste
campo. Na África, todos os governos de esquerda ou de direita têm
uma relação extraordinária com Cuba. Não esqueçam que nós temos
lutado contra o Apartheid, contra a África do Sul, que durante
quinze anos ajudamos a defender a soberania de Angola. Lutamos,
combatemos, tivemos vitórias decisivas, que tornaram possível a
solução do problema. A independência da Namíbia e grandes avanços
se estão conseguindo, um processo que parece irreversível para a
solução dos problemas da África do Sul e fim do Apartheid. Então,
as relações que temos com países africanos, do Terceiro Mundo, não
alinhados... Com a América Latina, no ano de 1965 não ficou ninguém
além do México. E hoje temos relações respeitosas e crescentes
com os diferentes governos da América Latina, com a maioria.
Independente da ideologia polí.
Jorge Escosteguy: Com a
derrota do sandinismo na Nicarágua e esses acontecimentos no Leste
Europeu, o senhor não se sente um pouco isolado politicamente?
Fidel Castro: As
relações com a URSS se mantêm perfeitamente bem, e a URSS realiza
grandes esforços para manter todas as relações comerciais que tem
com Cuba e relações de amizade. Faz todo o esforço. Problema
haverá se surgirem dificuldades grandes na própria URSS. Se surgir
um conflito interno, se produz um processo desintegrador na União
Soviética, isso sim poderia afetar-nos. Mas já faz tempo, vários
anos, a URSS leva seu programa de reforma e de mudanças. Outra coisa
são os países do Leste. Eu creio que se exagera um pouco o tipo de
colaboração. Porque certamente nós vendemos nossos produtos, mas
na verdade exportamos fundamentalmente alimentos, açúcar. O que nós
exportamos em açúcar a esses países vale hoje exatamente 400
milhões de dólares. Exportamos cítricos, níquel, matérias-primas
estratégicas. E vão crescendo neste sentido. Enquanto isso
recebemos alimentos, entre 40 e 50 milhões. Para nós os alimentos
são mais importantes. Se não vem a cevada checa, compramos em outro
lugar. Se não vem o frango que compramos da Bulgária, não era
muita quantidade, compramos em outro lugar. Porque não nos davam
essas coisas de presente. E compramos deles muitos equipamentos
industriais de má qualidade. Que só nós éramos capazes de fazer
com isso o que fazíamos, porque nos tornamos especialistas em
trabalhar com carregadeiras búlgaras, ou o ônibus Icaro. Realmente
os que vocês produzem aqui no Brasil são muito melhores. Então o
que vale comprar três carregadeiras, se três meses depois todas
estão paradas. E tem que ir buscando peça aqui, componente ali,
para fazê-lo andar, modificando a peça. É melhor comprar dois, e
que os dois andem.
Jorge Escosteguy: Há
pouco tempo o presidente brasileiro disse que o carro brasileiro era
uma carroça. O senhor acha que o carro com os equipamentos do Leste
Europeu são equivalentes às nossas carroças?
Fidel Castro: E que
sentido tem a palavra carroça?
Jorge Escosteguy: Má
qualidade.
Fidel Castro: Nós não
temos essa opinião dos equipamentos brasileiros...
Jorge Escosteguy: O que
digo é: os países do Leste Europeu compram de vocês? Porque os
equipamentos são de muita má qualidade...
Fidel Castro: Sim, como
regra são de tecnologia atrasada. Você compra artigos industriais e
são de tecnologia atrasada.
José Antonio Severo:
Isso é um defeito da organização?
Fidel Castro: Posso
dizer o que fazemos com a ciência para que não aconteçam esses
problemas. Em matéria de informática estamos mais avançados que
esses países. As vezes compramos um torno de um desses países e o
automatizamos. Fazemos os elementos de automatização, o cérebro
cubano. Já estamos fabricando até robôs. E no robô não é
importante apenas a parte mecânica, mas a parte de programação.
Então eles descuidaram disso. E acho que foram esses mecanismos, foi
essa prática de utilizar os mecanismos capitalistas, em que as
empresas começaram a entrar em choque com os interesses da
sociedade. Queriam saber como ganhar mais. O conceito de renda, que
prevaleceu sobre o conceito de qualidade. Políticas erradas,
desatenção às coisas científicas. Nós testemunhamos tudo isso.
Mas nós também compramos equipamentos de muitas partes do mundo.
Tornos automáticos, tornos programados e indústria de processo
químico. Nós fazemos uma central açucareira completa. Quase
completa, nem todos os componentes. E as centrais que fazemos são
excelentes. Então, a questão da qualidade tem que ser uma política.
E os mecanismos de construção do socialismo não podem entrar em
conflito, não podem conspirar contra a qualidade. E muitos dos
métodos salariais conspiravam contra a qualidade. "Esta parede,
eu te pago tanto por esta parede. Quando terminares, te pago." E
o homem saía a por tijolos a toda a velocidade, sem se importar
como, qual era a qualidade. Eu posso me referir a montes de exemplos
que para mim influíram nesse tipo de problema e que é precisamente
o que nós precisamos evitar. Nós fazemos equipamentos e aqui no
Brasil temos alguns equipamentos. O sistema ultramicroanalítico é
um equipamento que levamos anos aperfeiçoando e tem todas as
condições para funcionar. É um equipamento muito importante na
luta, na investigação sobre AIDS, sobre diferentes doenças,
trabalha com reagente produzido por nós, de uma qualidade excelente.
Lembro que o primeiro que veio para o Brasil dei de presente ao
governador Quércia. E já há em vários lugares do Brasil esses
equipamentos. Se os produtos não têm ótima qualidade, nós não os
exportamos, pois isso desprestigia o país. Mas como tínhamos
relação de comércio, vendíamos alguma coisa, alguma coisa
tínhamos que comprar. Assim, que danos podem fazer a nós se eles do
Leste passam para o outro campo, como disseram em Genebra, para
conseguir crédito no Banco Mundial, no Fundo Monetário, cláusulas
de nação mais favorecida, ficaram junto dos EUA frente à Cuba,
Hungria e Bulgária, Polônia e Tchecoslováquia. Eu não vou dizer
que tudo é ruim, porque não seria justo. Mas em geral são de má
qualidade e de tecnologia atrasada, essa é uma grande verdade.
[ ] No próximo
bloco, Fidel Castro diz que um país socialista se quiser, tem todo o
direito de se tornar capitalista.
Veja logo após o intervalo.
Jorge Escosteguy:
Voltamos com o Roda Viva que hoje entrevista o Presidente de Cuba,
Fidel Castro.
Fidel Castro: Foi uma
idéia que se teve. Assim nós também podemos tomar muitas idéias
daqui e levar para lá. Nós nos comprometemos a comprar dos
brasileiros tudo o que os brasileiros comprarem de nós. O Brasil não
gasta uma só divisa com Cuba. Uma só divisa conversível. Todo o
dinheiro que recebemos do Brasil, colocamos numa conta à parte e
vamos investir no Brasil. Mas se um dia não está contrabalançado o
comércio e nós vendemos produtos em outro lugar. Podemos também
comprar no Brasil, ainda que o Brasil não tenha comprado de nós
determinado produto. Eu dizia que também agora, com as dificuldades
no Leste, quem sabe quantas coisas... é preciso estudá-las porque
temos que conhecer toda a produção de vocês na área química. Se
muitas coisas que compramos de vocês, algumas quantidades de aço,
pneus - porque é deficitária nossa produção de pneus - produtos
químicos variados, produtos sintéticos, enfim, poderia fazer uma
lista muito grande.
Alceu Náder: Não
parece uma contradição que empresários brasileiros invistam em
Cuba, querendo obter lucros com isso? Como explicar essa contradição?
Fidel Castro: Bem, vou
explicar o correto. Qualquer país gostaria de ser dono de tudo. Os
brasileiros, vocês também têm multinacionais aqui. Vocês
gostariam que estas empresas fossem de vocês. Mas não tinham
capital para fazê-las. Não seria razoável se nós nos puséssemos
a desenvolver uma central açucareira em Cuba, em sociedade mista.
Não creio que seja razoável que façamos muita coisa para o consumo
interno. Mas sim se o fizermos para exportar. Se o fazemos para o
consumo interno é porque pode sair mais barato do que comprar fora.
Produzi-lo em sociedade, com uma empresa de outro país. Começamos
com os hotéis. Nós temos centenas de quilômetros de praias em
lugares excelentes. Estamos unindo os recifes que têm magníficas
praias com a terra, usando pedras. Há condições de construir 250
mil habitações. Seria um negócio de bilhões. Agora, se você não
tem o capital, se não tem o mercado, se não tem tecnologia, porque
o turismo também é tecnologia, acima de tudo. Não pode fazer nada.
Mas se aparece mercado, capital e tecnologia aí me convém. Cuba
pode dizer em 50 anos fazemos isso com nossos próprios recursos. Mas
nós não necessitamos tanto dinheiro para daqui a 50 anos.
Precisamos dentro de oito, de dez, doze. Então, é de mútua
conveniência, é uma coisa pragmática. Esse lugar que não se
exportaria, esse ar, esse mar, num mundo que está desesperado por
causa da contaminação, se exploraria assim. Mas não é só no
turismo. Há países que têm a tecnologia, o capital e mercado. Bom,
vamos ser sócios dele. Agora teremos que dar facilidades, senão não
investem. Recuperam o capital em pouco tempo, mas nós também o
recuperamos em pouco tempo, porque o hotel não se faz só com o
capital dele, mas com o nosso também. Coloco a moeda conversível
para determinados materiais e elevador de um tipo determinado que
deve ser muito seguro, ou quadros elétricos de tal capacidade, ou
outros artigos. E nós construímos, colocamos a força de trabalho.
Construímos o cimento, a areia, a pedra, a máquina da construção,
o mármore, temos um excelente mármore, e somos donos de quase
metade do hotel. Se você não dá essa oportunidade a essa campanha,
não investe. Você não pode se aferrar a uma idéia pura que não
quer que haja nenhum investimento estrangeiro. Mas agora eu estou
buscando outra coisa, investimentos nossos no exterior. Se tem uma
espécie de compensação e de garantia recíproca. Vocês têm lá,
nós temos aqui. Mas às vezes, um exemplo, há obstáculos de todo o
tipo para o desenvolvimento do comércio. Pode-se encontrar um
obstáculo alfandegário. E tem uma tecnologia, mas não vai vencer
esse obstáculo. Não resta alternativa a não ser fazer um
investimento fora para vencer esse obstáculo alfandegário e poder
exportar o produto. Assim, que a vida é muito rica em
possibilidades. E isso sem abandonar uma ponta de nossos princípios.
Veja é o Estado que, de uma ou outra forma, está fazendo isso e o
está fazendo para o povo. Mas o que esperamos? Que haja socialismo
em toda a América para fazer integrações? Ou que nós nos tornemos
capitalistas? Creio que não faz falta nenhuma das duas coisas para
que possamos abrir a integração. Essa é uma coisa das mais
interessantes que constatei.
Alceu Náder: Em cima
desse exemplo que o senhor acabou de dizer, o senhor não acha que
nós estamos caminhando para a morte definitiva da ideologia e para
uma nova era de pragmatismo entre os países?
Fidel Castro: Não
penso que exista a morte da ideologia. Porque te digo que todas
deixaram algo. O cristianismo foi uma ideologia e deixou muitas
coisas que ainda vigoram como quando falou dos pobres e de toda uma
série de coisas. Da Bíblia tirei muitas idéias que posso dizer que
são idéias, que do meu ponto de vista político, têm
vigência,digamos. A revolução francesa tem toda uma ideologia. E
criou mil formas. Avançou. Recuou. Pelos erros de Napoleão os
disparates e as loucuras que ocorreram à Napoleão que quis invadir
o império dos czares e fazer uma Europa napoleônica, e no fim a
Revolução Francesa retrocedeu e vieram outra vez os poderes
absolutos. Mas sem dúvida as idéias das revoluções que avançaram
e retrocederam, hoje são as idéias que prevalecem. Há idéias
que são eternas. A da dignidade do homem, da liberdade do homem. E
elas não existiram sempre, foram surgindo. E cada uma delas irá
deixando o melhor. Então nunca faltará a ideologia. Nunca sobrará
... para nós, a ideologia. A solução dos problemas de que falamos,
a divisão eqüitativa da riqueza, para nós é um sonho que o homem
tenha, trabalhe segundo sua capacidade e receba segundo sua
necessidade. Isso é o comunismo, não é o socialismo. Estamos na
etapa socialista - que o homem trabalhe segundo sua capacidade e
receba segundo seu trabalho, porque temos a diferença salarial.
Procuramos que, entre a menor e a mais alta, não exista uma grande
distância. Mas lógico, nossa fórmula socialista implica que um
médico eminente ganhe mais e outro menos. Mas também pode haver um
operário muito especializado que ganhe mais que um médico. Quem
sabe um dia se você quiser um coveiro, talvez tenha que pagar a ele
mais que a um médico.
Jorge Escosteguy:
Presidente, um pouco antes de gravarmos a entrevista, comentávamos o
pacote econômico brasileiro e falávamos principalmente desse
confisco bancário das contas correntes. O senhor fala que houve uma
revolução na economia brasileira a partir do dia 15, o senhor fez
uma revolução em Cuba, houve confisco de conta corrente em Cuba
quando o senhor tomou o poder?
Fidel Castro: Este é
um tema que eu e você estávamos falando, comentando e fazendo
análise e eu transmitia algumas experiências. Para mim, eu devo
evitar fazer análises de medidas do governo, porque já estaria me
metendo em tema interno. Podem dizer que é falta de cortesia de
minha parte, que faça isso. Posso falar e pensar em termos gerais.
Eu estou muito interessado em todas as medidas que vocês tomarem,
porque conheço os problemas que tem a América Latina. O problema da
inflação e tudo isso, a dívida e as enormes dificuldades que tem
qualquer governo hoje na América Latina. E sempre estou muito
curioso para ver que medidas elaboram, de que forma vão resolver
seus problemas, porque já tem um tempo que os governos
latino-americanos tentam encontrar a solução para os seus
problemas. E sabemos todos que é uma coisa muito difícil. Por isso
é melhor observar o que vai ocorrer e com muito interesse, sobretudo
porque vamos enriquecer nossos conhecimentos, nossa experiência
sobre esses temas. E a mim como político, como dirigente, me ajuda a
aprofundar na magnitude dos problemas e nas possibilidades ou não
que determinadas fórmulas os resolvam. Falando disso, vocês me
perguntaram como nós fizemos na Revolução. Nós tomamos medidas,
naquele momento não estávamos abordando um problema de inflação,
mas sim o fato de que Batista [ Fulgêncio Batista, ditador militar
de Cuba entre 1952-1959] e muita gente tinha levado muito dinheiro.
Havia muito dinheiro na mão de toda aquela gente e estavam começando
a usar para combater a Revolução. Fizemos uma troca de moeda, mas
na troca de moeda dissemos: "Depositem. Todos que tenham
dinheiro em sua casa, depositem". E a todos que tinham dinheiro
devolvemos uma parte. Não tudo. Quem tinha mil dólares, devolvemos
os mil. Até uma quantidade determinada devolvemos tudo. Daí para
cima confiscamos o dinheiro. Prestem atenção, esse era o dinheiro
que não estava nos bancos. O dinheiro que havia nos bancos não
tocamos nele. Havia gente que tinha até meio milhão de pesos e o
peso equivalente ao dólar. Havia gente que tinha dinheiro nos bancos
e nós não tocamos, nunca tocamos no dinheiro. No dinheiro que
estava depositado nos bancos, porque sempre demos importância
prioritária que as pessoas tenham segurança. E elas guardam seu
dinheiro. Esse foi o caso. Mas não estávamos buscando o objetivo de
resolver a inflação. Estávamos buscando o objetivo de privar do
dinheiro a todos aqueles que haviam roubado, haviam acumulado
dinheiro e o tinham escondido, enterrado ou tinham no estrangeiro e
iam usá-lo contra a Revolução. São dois objetivos diferentes.
Realmente não sei como faríamos. Nós evitamos medidas, por razão
política evitamos medidas. Claro que nós nos defendemos por outras
vias, porque temos um número de produtos racionados, estabelecidos
ou tabelados. Porque ninguém nos financia. Porque se nós
emitíssemos e o preço fosse livre, não teríamos regulamentação,
mas tivemos que fazer diante da situação do nosso país. Qualquer
aumento de dinheiro em circulação afetaria gravemente os setores de
renda mais baixa. Por isso, esse mínimo que se necessita nós
garantimos a preço econômico e até mesmo subsidiado, muitos deles.
E também temos o mercado paralelo. Para os que ganham mais e querem
comprar um produto muito mais caro. Esta é uma fonte de arrecadação
importante. No nosso sistema nós podemos subsidiar certo produto e
cobrar outro mais caro. Por exemplo: nós subsidiamos o leite, mas
cobramos cara a cerveja, o rum, os cigarros, todas essas coisas que
não são essenciais e ao mesmo tempo ajudam de certa forma os
programas de saúde. Nós sabemos também, quando queremos arrecadar
dinheiro... neste momento estamos emitindo. Não nos acontece o
desastre do aumento dos preços das coisas com que as pessoas se
alimentam todos os dias. Os preços se mantêm. Como temos um
programa de saúde, nós decidimos emitir 400 milhões. Mas nós
sabemos como vamos recolher estes 400 milhões. O que temos que
importar em matéria-prima e a que produtos dedicar para que, com um
gasto relativamente pequeno em divisas, possamos arrecadar grandes
quantidades de dinheiro interno. São mecanismos que nós utilizamos
para nos defender, porque os excedentes de dinheiro podem criar
problemas. Se não afeta o preço dos alimentos que você está
comprando, pode afetar o interesse no trabalho. Se há um casal, um
pode dizer que com o trabalho dele pode resolver, pode desestimular o
trabalho, e por isso nós evitamos muitos esses fenômenos que não
poderíamos chamar de inflacionários, mas de excedentes de dinheiro
em circulação, além da quantidade total de bens e serviços em
oferta. Nestas condições, nós pudemos, e não sabem como nós nos
alegramos todos os dias, nos livrar do flagelo da inflação. E assim
financiamos o nosso desenvolvimento. Porque nós não temos Banco
Mundial, nem Banco Interamericano, nem Fundo que nos fizesse
empréstimo. Temos que tirar de nossos próprios recursos e de nossa
própria imaginação .
José Antônio Severo:
Presidente, o que se comenta no mundo hoje, é que o senhor estaria
aprofundando pouco a pouco divergências com o presidente Gorbatchov
[Mikhail Sergueievitch Gorbatchov (1933- ), presidente da URSS entre
1985-1991] da União Soviética, pela condução da política,
evidentemente pela política interna dele no seu país. O senhor
apoiou a intervenção na Thecoslováquia, por exemplo, em 68. O
senhor acha que se deveria novamente voltar a esse tipo política
para impedir casos como o da Lituânia que declara uma independência
unilateral, separação da União Soviética? E isso está realmente
conturbando as suas relações pessoais com o presidente soviético?
Fidel Castro: Minhas
relações com Gorbatchov sempre foram muito boas. Sempre houve um
bom nível de comunicação. Falei mais de uma vez com ele na URSS.
Ele visitou Cuba. Foi uma visita de muito êxito. E as relações
entre os dois países seguem bem, ainda que eles façam as coisas de
uma forma e nós fazemos de outra. Há uma certa tendência
internacional de mostrar divergências ou inimizade, falta de amizade
entre Gorbatchov e Cuba. Entre Gorbatchov e eu. É uma coisa curiosa
que antes nos acusavam de ser satélites dos soviéticos e nós nunca
fomos satélites dos soviéticos, porque fazíamos coisas que faziam
os soviéticos. E nos criticavam. Agora nos criticam porque não
fazemos as mesmas coisas que fazem os soviéticos. E eu pergunto: que
dia teremos direito de fazer o que nos dê vontade? E atuar livre e
soberanamente. Nós o que fazemos sempre é seguir princípios.
Formávamos parte de um mundo socialista muito estreito nos períodos
de maior isolamento. Não o de agora. Períodos em que quase as
únicas relações que tínhamos era com os países socialistas, de
cuja colaboração econômica naquele momento e também a colaboração
militar dependia nossa segurança. Isso não quer dizer que nós
estivéssemos sempre de acordo com todas as coisas que faziam os
soviéticos. Eu pessoalmente tinha muitas críticas sobre épocas
passadas. O pacto "Molotov Ribbentrop" sempre questionei e
era ainda quase uma criança. Me pareceu que tirou muita simpatia da
URSS. Eles sempre alegavam que o Ocidente queria jogar-lhes Hitler
[Adolf Hitler - 1889-1945 - ditador da Alemanha entre 1933-1945] por
cima, e eles tinham que ganhar tempo, pagar um custo político alto.
Eu sempre fui crítico ao fato de que um país se deixe agarrar
desprevenido. Porque com a experiência de nos defender dos Estados
Unidos, estamos sempre em guarda, sempre estamos observando movimento
que fazem as esquadras e as tropas dos Estados Unidos. É impossível
que se possa acumular 3 milhões de homens e milhares de tanques sem
que se dêem conta que vão ser invadidos. Sempre critiquei o fato de
durante a guerra não terem retirado os aviões, a profundidade da
retaguarda. Deixavam ali na primeira linha e foram liquidados quase
que no primeiro momento com um ataque surpresa. Stalin adotou uma
atitude de avestruz. Meteu a cabeça no buraco. Ele tem
responsabilidade por ter deixado o país ser atacado, sem estar
mobilizado. Se estivessem mobilizados, a história teria sido outra.
Não teriam chegado perto de Moscou. Tenho muitas idéias e tenho
conversado com eles sobre isso. Claro que não vou sair dizendo
publicamente. Não é o meu papel. Não sou um professor de uma
academia de história, nem de ciências políticas para estar dizendo
o que me dê na veneta, na cátedra. Os governadores têm que atuar
com um sentido de responsabilidade e não de maneira irresponsável,
em guerra contra todo o mundo e brigando com todo o mundo. Eles
fizeram, cometeram erros, não há dúvida que um dos desastres da
política soviética foi a questão da Tchecoslováquia. Agora, nós
não podemos nos colocar do lado dos Estados Unidos. Porque no
momento em que todo o mundo... Nós atuamos com um sentido de
solidariedade, e não foi a única vez, porque depois veio o
"presente" do Afeganistão. E outra vez nos presentearam
com a ausência da Olimpíada. Então, quando acontece a
Tchecoslováquia, não podíamos nos colocar no lado contrário.
Podíamos ter ficado em silêncio. Ou podíamos fazer uma análise
crítica. Se é preciso salvar o campo socialista, estamos de acordo.
Rompe-se o equilíbrio militar e pode por em perigo toda a
comunidade, é um remédio amargo, mas bom. Podemos aceitar. Mas fiz
uma análise crítica que podia estar relacionada com as coisas que
me perguntaram aqui. Podem buscar. Nós imprimimos. Porque ninguém
fez, nunca mais, críticas sobre nós, sobre a maneira de se
conduzir... e a pergunta: por que isso acontece? Por que um país tem
que ser salvo do exterior? Com os tanques do exterior. E nós
meditávamos sobre isso. Porque estamos longe da URSS. Porque se um
dia, por erros da revolução cubana, tivéssemos uma
contra-revolução, os tanques que ali desembarcariam seriam os dos
ianques. E tudo isso nos obrigou a trabalhar com esmero e a manter as
relações mais estreitas entre a Revolução e o povo, entre o
partido e o povo. Os outros estavam tranqüilos, sob o guarda-chuva
nuclear da URSS. Parece que a política interna não preocupou. E
todos esses mecanismos de que falo deixam as pessoas distantes.
Passamos por essas experiências. As pessoas chegam a um ponto em que
não importa mais nem pátria nem nada, importa apenas o dinheiro, o
salário. Se enfraquecem a ideologia e os grandes objetivos
históricos que se persegue. Eu fiz uma crítica fortíssima e por
que, e por que, e por que? Se naquela ocasião ocorresse algo como a
Afeganistão, nós não nos oporíamos a que se ajudasse o
Afeganistão, e a URSS o ajudava. Nós íamos a outros países. O que
não fizemos foi ir a algum país da fronteira e com um governo na
maleta para ajudar esse país. Ajudamos os angolanos durante 15 anos.
Mas sempre tivemos respeito absoluto pelo governo do país e pelos
problemas internos do país. Eles eram os donos, os governantes do
país. E nós éramos apenas os aliados que os ajudavam contra a
África do Sul. Ajudamos a Etiópia contra a invasão estrangeira. E
todos os povos viram isso como uma ajuda, porque fomos por nossa
conta. Fomos porque nos pediram os governos desses países. Bom, é
uma generosidade inédita, se pode dizer. Nós com toda a luta com os
Estados Unidos, na luta contra o isolamento, sentíamos a necessidade
de desenvolver nossas relações com o Terceiro Mundo. Mas nunca
houve o menor problema, e aí estão os governos que nós ajudamos.
Ninguém os trocou, ninguém mudou esses governos. E eu, não é
porque me opunha ao Afeganistão, mas a forma como fizeram, entrando
pela fronteira com as tropas e com um governo. Esta é uma forma de
ajudar? Isso também nos criou uma situação difícil. Quando
decidem por uma questão com os ianques ausentar-se das Olimpíadas
de Los Angeles e nós também. Nós, cujo único contato com os
Estados Unidos era através do esporte. Não é que não gostamos da
idéia, mas por questão de solidariedade decidimos não ir. Quando
as Olimpíadas eram na Coréia, aí perguntamos: E vão à Coréia?
Por acaso lá há mais segurança que em Los Angeles? E vão esquecer
da República Democrática da Coréia [do Norte]? Bom, não vamos
ajudar. Nós fizemos a proposta que se dividissem os Jogos... Agora,
todos eles foram de cabeça para lá, para a Coréia do Sul, nós não
fomos às Olimpíadas, porque era uma questão de princípio. No
momento nos sacrificávamos por solidariedade. Quando víamos que
havia uma de solidariedade com outros países, nós não
compartilhávamos isso. E não fomos à Olimpíada, porque é a linha
que seguimos. Mas sem dúvida, foi um dos episódios tristes dessa
história. Nós também sacrificamos simpatia e apoio, porque
decidimos. Aos Estados Unidos, não vamos de maneira alguma, é o
nosso adversário, é adversário do mundo, nós não somos nenhuma
grande potência. O que nós podemos fazer é uma análise crítica,
séria, dos fatores que podem ter determinado isso. Bom, é claro,
estavam em crise sem dúvida esses socialismos. Porque um socialismo
que tem que ser salvo desde o exterior... O que penso, bem no fundo,
é que socialismo que não seja capaz de defender-se, não merece
continuar sendo socialismo. Este é um ponto muito importante. Quando
Gorbatchov foi à Cuba e falamos ante a Assembléia Nacional, eu
coloquei publicamente meu critério de que se um país socialista - e
foi antes de todos esses problemas - queria construir o capitalismo,
se deveria respeitar esse direito. Que o país socialista construísse
o capitalismo. Da mesma forma que entendíamos e reclamávamos e
exigíamos que se um país capitalista queria construir o socialismo,
é preciso respeitar e não ficar agredindo... Coloquei isso de
maneira bem clara ante a Assembléia Nacional. E falei com Gorbatchov
depois meus critérios sobre este assunto. Assim é possível que
tenhamos colocado um pequeno grão de areia em favor do respeito
desse processo, ainda que no fundo da minha alma eu não posso estar
me sentindo feliz. Foi realmente muito respeitoso.
Jorge Escosteguy: E o
Gorbatchov, o que disse para o senhor?
Fidel Castro: Em
relação a quê?
Jorge Escosteguy: Que
se quisesse construir o capitalismo um país socialista....
Fidel Castro: E eu
creio que, minha impressão, a atitude dele foi mais de dizer:
"Tomara que isso não aconteça". Mas de sua filosofia e de
suas posições, de suas reações, sua maneira de pensar, eu tinha a
confiança e tinha a segurança de que se ocorresse esse fenômeno, a
União Soviética ia respeitá-lo. Porque eu falei primeiro que ele.
Eu não tinha um discurso escrito. Ele tinha o discurso escrito.
Depois, numa ceia, falamos de tudo isso. Tudo estava gravado, mas por
desgraça, nesse último jantar, já mais descansados, nada se
gravou, porque houve mudança de tradutor...
Jorge Escosteguy: Era
um aparato da Bulgária, não é?
Fidel Castro: Não,
creio que era japonês. [muitos risos]
Fidel Castro: Foram
muitos temas, mas principalmente este e num momento ele disse: "é
melhor não pensar". Não foi uma coisa que ele dissesse, nem eu
podia perguntar-lhe isso, nem eu podia dizer, ouça, senhor...
Perguntei-lhe sobre o que eu havia dito. E ele me disse que era muito
interessante. Que tinha escutado com muito interesse e que era muito
interessante. Mas nesse momento não deu nenhuma definição. Mas no
contexto geral da conversação, ficou evidente para ele que algumas
coisas não poderiam voltar a acontecer. O que eu penso e aceito,
estou de pleno acordo, que se tenha respeitado o direito desses
países, de fazer as mudanças que julgaram necessárias,
independentemente de nos agradar ou não, as mudanças que faça.
Clóvis Rossi: O senhor
tenta separar a União Soviética, dos países do Leste Europeu que
estão saindo do regime socialista. Mas é evidente que a União
Soviética também está adotando mecanismos capitalistas. Ou já
vinha adotando mais, ainda agora. Isso se aplica também a países da
África que haviam adotado o regime socialista. O senhor não se
sente em algum momento como aquela pessoa que vê uma tropa marchando
numa direção, o senhor está marchando numa outra direção e eles
é que estão marchando errado?
Fidel Castro: Claro, as
tropas que marcham numa mesma direção se dirigem ao inimigo, são
as tropas que estão marchando corretamente. Não há duas situações
iguais. A URSS está fazendo reformas, introduz elementos... Nós
estamos fazendo. A URSS está fazendo, fala-se em arrecadar terras.
Nós não falamos disso. Nós fizemos outro tipo de reforma agrária.
Não obrigamos ninguém a se unir pela força. Ainda há em Cuba 70
mil camponeses independentes. Ninguém pode nos falar de camponeses
independentes, uns privilegiados porque damos tudo e perdoamos as
dívidas quando há seca ou calamidades. Este é o camponês de Cuba.
E vemos as cooperativas que se fizeram de forma voluntária, as
empresas estatais modernas, bem mecanizadas. Fizemos tudo diferente.
Para nós, pegar nossas plantações de cana e dividi-las em pedaços
é a ruína. Deixaríamos de ser produtor de açúcar, deixaríamos
inclusive de ter a oportunidade de fazer acordo com vocês para
elaborar políticas externa em relação ao desenvolvimento da
produção açucareira, como dois grandes produtores. Nós não
poderíamos fazer isso. Não teríamos nem a quem dar essas terras.
Elas funcionam porque semeiam com avião e trabalham com máquinas,
com colheitadeiras e são lugares distantes. E você não encontra em
Cuba alguém para dar um pedaço. Que vá lá a um pedacinho isolado
arrendar uma terra. Na realidade, na prática, não se poderia
fazê-lo. A URSS não declarou que se propõe a construir uma
economia capitalista, mas disse que mantém o socialismo, que mantém
princípios essenciais. Os outros disseram que vão à economia de
mercado e à privatização das propriedades estatais, isso de
maneira aberta. A URSS não fez isso. A URSS atua com mais prudência
nisso tudo. E com mais cuidado. Está ensaiando... Mas ainda assim,
vamos supor que a URSS queira fazer algumas mudanças. Não é
assunto nosso. Tudo depende como vão ser as relações futuras. Não
é necessário ser um país socialista, quimicamente puro, para poder
negociar com ele. China também fez uma série de reformas e nós
mantemos excelentes relações econômicas com a China e crescem
essas relações econômicas com ela. A URSS pode fazer as reformas
econômicas que queira e se mantém as relações econômicas.
Necessitam de nosso açúcar, nosso níquel, nosso cobalto, nossos
cítricos. Até mesmo está crescendo em produtos biotecnológicos,
indústria farmacêutica, equipamentos médicos. Este ano vamos
mandar à URSS o equivalente a 300 milhões de rublos. Assim é a
situação. Não é igual a situação de um e de outro. Eu acho que
o melhor é que cada um ande onde ache melhor andar. E se respeitem
os direitos dos outros, entre eles o nosso, de andar para onde cremos
que devemos andar.
Jorge Escosteguy:
Presidente, o nosso tempo está quase esgotado. Os seus assessores
avisam que o senhor tem outro compromisso. Eu lhe faria uma última
pergunta: uma das críticas que se têm feito muito ao regime cubano,
é a ausência de liberdade de imprensa. No recente seminário do
Memorial da América Latina, o representante da imprensa latina disse
que está havendo uma certa mudança na imprensa cubana. A imprensa
cubana caminha para ser mais moderna, mais aberta? Para dar mais
liberdade de expressão?
Fidel Castro: Bom,
nossa imprensa tem um status diferente da imprensa dos outros países
latino-americanos, que são cadeias de instituições privadas. Em
Cuba temos a imprensa distribuída. As organizações de massa têm
seu jornal, a juventude tem o seu jornal, os camponeses têm o seu
jornal, os operários têm seus órgãos de imprensa. Os militares
têm seu órgão de imprensa, o Partido tem seu órgão de imprensa,
as mulheres têm seu órgão de imprensa. Estão distribuídas por
essas organizações de massa. Elas são os responsáveis pelo que se
diz. O Partido é responsável pelo dele. E cada província tem seus
órgãos de imprensa, o que nós estamos fazendo é incrementar a
crítica, as análises. Estamos tratando de ampliar ao máximo a
liberdade de expressão dentro das condições e do status que tem a
nossa imprensa. Eu não devo negar que os que estão contra a
Revolução, os que estão em sintonia com os EUA, que é uma batalha
velha, de muito tempo, mas que ainda não terminou. Ao contrário, o
futuro nos aguarda com períodos mais duros do que jamais tivemos. E
a tarefa muito séria. Os contra-revolucionários não têm imprensa.
Para eles não existe imprensa em Cuba. E a imprensa do Partido não
vai fazer eco. Creio que nem em Cuba, nem em qualquer lugar da
campanha dos contra-revolucionários. Nem a outra imprensa. Esta é a
situação, pois eu não vou estar aqui inventando coisas. Serão
sempre assim? Não tem que ser necessariamente sempre assim e nada
será nunca sempre de uma forma. Mas essas são as situações que
nós temos agora. E que agora não podemos mudar. É o que lhe posso
responder com toda a franqueza.
Jorge Escosteguy: Muito
bem. Nós agradecemos então, a entrevista com o presidente cubano,
Fidel Castro. Se o senhor quiser fazer alguma última observação
para se despedir dos nossos telespectadores...
Fidel Castro: Realmente
tenho me sentido muito bem. Senti todo o calor da hospitalidade, da
amizade e da familiaridade dos brasileiros, em especial aqui em São
Paulo onde fui muito bem tratado. Ontem, no brinde final da ceia com
o governador e Daniel [José Daniel Ortega Saavedra (1945- ),
presidente da Nicarágua entre 1985-1991. Regresoou ao cargo em 2006]
disse: "Bom, logo vou embora". Eu quando terminei, me
ocorreu dizer é que eu não vou embora, eu fico. Queria expressar
com grande sinceridade que meu corpo, meu peso, minha bagagem, tudo
vai embora, mas meu coração, ou uma grande parte de meu coração
ficaria aqui em São Paulo.
Jorge Escosteguy: Muito
obrigado então ao presidente de Cuba, Fidel Castro. Agradecemos
também aos nossos jornalistas convidados.
E o programa Roda Viva volta na próxima segunda-feira.
E o programa Roda Viva volta na próxima segunda-feira.
Assista também
entrevista de Fidel Castro na TV Manchete dada a Roberto Ávila em
1986.
Postado por AF Sturt
Silva
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