Por Jacques Távora Alfonsin*
No ano de 2009, dois promotores de justiça aqui do Rio Grande do Sul, encarregados por decisão unânime do Conselho Superior do Ministério Público do Estado, promoveram três ações civis públicas, contra famílias de sem-terra integrantes do MST, acampadas em São Gabriel, Carazinho e Pedro Osório. Afinado com eles, um procurador da república, na mesma época, moveu ação quase idêntica em Canoas.
Com a agilidade própria que o Poder Judiciário usa nesses casos, de regra, quando alguns/as dos/as seus/suas integrantes se deixam tomar por aquela cultura ideológica das elites, que preconceituam qualquer movimento social como organização de bandidos - vício presente, também, em grande parte da mídia - as decisões judiciais liminares nesses processos saíram de imediato, executadas com extrema violência, do mesmo modo como um vídeo produzido pela própria Brigada Militar, na época, mostra o seu comandante de então dando lições de como agir nesse tipo de ação.
Como o MST mantinha escolas itinerantes para crianças e adolescentes filhas/os de acampadas/os, e o tal Conselho já preconizara anteriormente até a necessidade de se “extinguir o MST”, isso tudo não foi considerado suficiente. Era preciso acabar também com a possibilidade de essas crianças serem influenciadas por uma pregação “subversiva”, de “esquerda”, capaz de desviar suas mentes inocentes da devoção à “lei” à “ordem”, à “segurança”, à “liberdade”, aquelas palavras todas costumeiramente pronunciadas de boca cheia por quem nunca teve a própria vazia.
O Governo do Estado de então, por sua secretária de educação e pelos tais promotores, assinou um TAC (Termo de ajustamento de conduta) descredenciando as escolas itinerantes. Seu ensino deixaria de ser reconhecido pelo Estado.
Quem visita, hoje, o assentamento rural de São Gabriel - para lembrar-se apenas um exemplo - onde as escolas itinerantes poderiam estar cumprindo o seu papel, pode fazer uma idéia dos infelizes efeitos desse TAC, das consequências desumanas que ele provocou sobre as crianças e adolescentes filhas de assentadas/os. Agora, quem sabe, mais “sem-terrinha” do que antes, pelo menos no que respeita à sua educação.
A maior parte delas tem de caminhar três vezes por semana, algumas 12 quilômetros (6 de ida e 6 de volta), até o ponto de ônibus que as leve para escola pública de São Gabriel. Sendo impossível aguentar um sacrifício imposto assim todos os dias, a solução encontrada foi ampliar o horário de aulas de cada uma dessas frequências, para que as horas previstas para todo o ano letivo fossem respeitadas. Faz sentido. Se já é muito ruim a situação das crianças, sob esse tipo de condição, para exercerem o seu direito humano fundamental de serem educadas, há de se imaginar o que aconteceria se a jornada fosse diária.
Falando com as mães e pais dessas crianças, é surpreendente ouvir-se delas/es o quanto preferem - se persistir o abandono a que estão relegadas/os - siga a possibilidade de suas/seus filhas/os estudarem mesmo assim, pois, entre isso e o nada a que elas/es foram condenadas pela extinção das escolas itinerantes, melhor será suportar esse mínimo de ensino-aprendizado.
Um desses pais conta uma história reveladora de ironia extremamente cruel. Para que suas crianças não perdessem as aulas, e não tivessem de cansar tanto para chegar à escola, ele arranjou uma charrete para cada ida e volta dos seus filhos até o ponto de ônibus. Recebeu uma advertência do Conselho Tutelar do Municípío, segundo a qual ele seria responsabilizado por qualquer acidente que, no trajeto, ocorresse com as crianças... Ou seja, se o Poder Público descumpre com as suas obrigações, as mais elementares, e o povo dá um jeito de contornar essa injusta, inconstitucional, ilegal e infame desídia, mesmo esse jeito precisa ser punido.
O inverno está aí, as péssimas estradas de chão, internas ao assentamento, vão virar mais buraco e lama. Chuva e frio aumentarão ainda mais as dificuldades dessas crianças chegarem à escola. Casa, roupa e calçado para enfrentar essa inclemência são coisas precaríssimas no lugar.
Os integrantes do Ministério Público, pois, mais a Secretária de educação do governo passado, que assinaram o tal TAC de descredenciamento das escolas itinerantes, se pretenderam aumentar todo o tipo de pressão possível para “extinguir o MST”, erraram feio de alvo. Certamente, porém, não vão sofrer tais incômodos nem se julgarão responsáveis por eles. Seus filhos e filhas, também, jamais passarão por isso.
Não há de lhes custar, mesmo assim, visitar o local e avaliar se está
existindo exagero na queixa dos pais, mães e crianças assentadas,
medindo a conveniência e a oportunidade do que fizeram. Aliás, se por
outras razões - como a da indignação justificada que sempre se verifica
em pessoas que amam animais mal tratados - alguém pretendesse conhecer
mais de perto a dura realidade das crianças assentadas em São Gabriel
constataria que muito bicho está sendo bem melhor tratado do que elas.
Touros e cavalos de latifundiários, sem dúvida.
As assinaturas constantes daquele malsinado TAC, ou partiram de quem ignora a Constituição Federal, a Constituição do Estado, o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8009 de 13/07/90, arts. 3º e 53 especialmente) quando tratam do direito à educação, ou assumiram o risco de gerar os dramáticos efeitos da sua perseguição ao MST, violando direitos humanos fundamentais de crianças cuja defesa tinham obrigação de promover, por força de lei.
Nem as alegadas deficiências do corpo docente das escolas itinerantes lhes serve de desculpa, pois não conseguem explicar as razões pelas quais um tipo de magistério anteriormente aprovado pelo Conselho Estadual de Educação, como era o das escolas itinerantes, de repente ter passado a condição de nocivo às/os estudantes que elas, bem melhor do que agora, atendiam.
Será que pode haver alguma boa notícia para essas crianças e seus pais, no meio dessa cadeia de fatos vergonhosos para um país que se proclama democrático e de direito?
Surpreendentemente sim. O Estado do Rio Grande do Sul acaba de construir novas salas de aula capazes de desafogar uma das escolas de São Gabriel (Ataliba das Chagas, região de Batovi), entre as que servem crianças de assentamento rural. Só falta a vistoria da Secretaria de Obras para serem utilizadas. O TAC que desautorizara as escolas itinerantes foi revogado por outro, agora levando assinaturas do Procurador geral de Justiça e do Governador do Estado. Na sua cláusula sexta reserva aos professores da rede pública o ensino que as primeiras ministravam. Não haveria mesmo possibilidade de se chamar de volta as/os professoras/es das itinerantes, pois, pelo menos por enquanto, depois de despejadas mães e pais das crianças sem-terrinha que se encontravam nos acampamentos, nem haveria como reunir de novo, em locais de fácil mobilidade, como era o daquelas escolas, suas/seus professoras/es.
O Procurador Geral de Justiça, juntamente com integrantes do seu gabinete e, por convite que dele partiu, de representantes de Secretarias do Estado, da Procuradoria Geral do Estado, da Procuradoria da República, do Município de São Gabriel, das promotoras de Justiça daquela comarca, de um deputado da Câmara dos deputados, de representantes do Incra, do MST e de ONGs. que trabalham em defesa dos direitos humanos, visitaram o assentamento, entrevistando pais que lá residem e professoras/es que ali prestam os seus serviços. Articulou-se, na ocasião um grupo de trabalho que, junto ao Poder Público, procure agilizar as muitas providências capazes de solucionar os graves problemas que afligem as crianças assentadas.
É verdade que nada disso lhes garante, verdadeiras heroínas do direito à educação infantil em nosso Estado, que o INCRA vai providenciar melhoria de estradas internas do assentamento e de habitação para as famílias que lá sobrevivem, atualmente sem água potável e saneamento, como acontece em muitas favelas urbanas, ou que o Município de São Gabriel vai providenciar melhoria de transporte para as/os estudantes, condições essas que, igualmente, comportam execução de políticas públicas da União, do Estado e dos municípios.
É pouco? É ainda muito pouco, mas, quando menos, fica saneada a aberração político-jurídica instituída pelo TAC de 2009. Dispensa de licitações para obras, editais que convoquem professoras/es interessadas/os em preencher vagas para escolas de difícil acesso (hipótese que já está sendo aproveitada em outros Estados da Federação), audiência frequente de pais das/os alunas/os, são medidas entre outras que podem ser levadas a efeito pelo estado de visível emergência que decorre da situação social das crianças assentadas. No mínimo, é com isso que elas contam.
As assinaturas constantes daquele malsinado TAC, ou partiram de quem ignora a Constituição Federal, a Constituição do Estado, o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8009 de 13/07/90, arts. 3º e 53 especialmente) quando tratam do direito à educação, ou assumiram o risco de gerar os dramáticos efeitos da sua perseguição ao MST, violando direitos humanos fundamentais de crianças cuja defesa tinham obrigação de promover, por força de lei.
Nem as alegadas deficiências do corpo docente das escolas itinerantes lhes serve de desculpa, pois não conseguem explicar as razões pelas quais um tipo de magistério anteriormente aprovado pelo Conselho Estadual de Educação, como era o das escolas itinerantes, de repente ter passado a condição de nocivo às/os estudantes que elas, bem melhor do que agora, atendiam.
Será que pode haver alguma boa notícia para essas crianças e seus pais, no meio dessa cadeia de fatos vergonhosos para um país que se proclama democrático e de direito?
Surpreendentemente sim. O Estado do Rio Grande do Sul acaba de construir novas salas de aula capazes de desafogar uma das escolas de São Gabriel (Ataliba das Chagas, região de Batovi), entre as que servem crianças de assentamento rural. Só falta a vistoria da Secretaria de Obras para serem utilizadas. O TAC que desautorizara as escolas itinerantes foi revogado por outro, agora levando assinaturas do Procurador geral de Justiça e do Governador do Estado. Na sua cláusula sexta reserva aos professores da rede pública o ensino que as primeiras ministravam. Não haveria mesmo possibilidade de se chamar de volta as/os professoras/es das itinerantes, pois, pelo menos por enquanto, depois de despejadas mães e pais das crianças sem-terrinha que se encontravam nos acampamentos, nem haveria como reunir de novo, em locais de fácil mobilidade, como era o daquelas escolas, suas/seus professoras/es.
O Procurador Geral de Justiça, juntamente com integrantes do seu gabinete e, por convite que dele partiu, de representantes de Secretarias do Estado, da Procuradoria Geral do Estado, da Procuradoria da República, do Município de São Gabriel, das promotoras de Justiça daquela comarca, de um deputado da Câmara dos deputados, de representantes do Incra, do MST e de ONGs. que trabalham em defesa dos direitos humanos, visitaram o assentamento, entrevistando pais que lá residem e professoras/es que ali prestam os seus serviços. Articulou-se, na ocasião um grupo de trabalho que, junto ao Poder Público, procure agilizar as muitas providências capazes de solucionar os graves problemas que afligem as crianças assentadas.
É verdade que nada disso lhes garante, verdadeiras heroínas do direito à educação infantil em nosso Estado, que o INCRA vai providenciar melhoria de estradas internas do assentamento e de habitação para as famílias que lá sobrevivem, atualmente sem água potável e saneamento, como acontece em muitas favelas urbanas, ou que o Município de São Gabriel vai providenciar melhoria de transporte para as/os estudantes, condições essas que, igualmente, comportam execução de políticas públicas da União, do Estado e dos municípios.
É pouco? É ainda muito pouco, mas, quando menos, fica saneada a aberração político-jurídica instituída pelo TAC de 2009. Dispensa de licitações para obras, editais que convoquem professoras/es interessadas/os em preencher vagas para escolas de difícil acesso (hipótese que já está sendo aproveitada em outros Estados da Federação), audiência frequente de pais das/os alunas/os, são medidas entre outras que podem ser levadas a efeito pelo estado de visível emergência que decorre da situação social das crianças assentadas. No mínimo, é com isso que elas contam.
*Jacques Távora Alfonsin, mestre em Direito, pela Unisinos, onde
também foi professor, é Procurador aposentado do Estado e membro da
ONG Acesso, Cidadania e Direitos Humanos.
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