Buscado na Carta Capital
“Mino Carta é um chato, se pudesse reescreveria os Evangelhos. Inimigo do regime, Geisel o detestava, mas não tinha rabo preso.” De um depoimento de João Baptista Figueiredo, gravado em 1988 durante um churrasco amigo e divulgado após a morte do último ditador da casta fardada.
“Mino Carta é um chato, se pudesse reescreveria os Evangelhos. Inimigo do regime, Geisel o detestava, mas não tinha rabo preso.” De um depoimento de João Baptista Figueiredo, gravado em 1988 durante um churrasco amigo e divulgado após a morte do último ditador da casta fardada.
No final de 1969, esta capa foi o maior desafio
de Veja à ditadura, mas já a da primeira edição dera problemas
É do conhecimento até do mundo mineral que nunca
escrevi uma única, escassa linha para louvar os torturadores da
ditadura, estivessem eles a serviço da Operação Bandeirantes ou do
DOI-Codi. Ou no Rio, na Barão de Mesquita. E nunca suspeitei que a
esta altura da minha longa carreira jornalística me colheria a
traçar as linhas acima. Meu desempenho é conhecido, meus
comportamentos também. Mesmo assim, há quem se abale a inventar
histórias a meu respeito. Alguém que, obviamente, fica abaixo do
mundo mineral.
Não me faltaram detratores vida adentro, ninguém,
contudo, conseguiu provar coisa alguma que me desabonasse. Os atuais
superam-se. Um deles se diz jornalista, outro acadêmico. Pannunzio &
Magnoli, binômio perfeito para uma dupla do picadeiro, na hipótese
mais generosa de uma farsa cinematográfica. Esmeram-se para
demonstrar exatamente o que soletro há tempo: a mídia nativa prima
tanto por sua mediocridade técnica quanto por sua invejável
capacidade de inventar, omitir e mentir.
Afirmam que no meu tempo de diretor de redação
de Veja defendi a pena de morte contra “terrorristas”,
além de enaltecer o excelente trabalho da Oban. Outro inquisidor se
associa, colunista e blogueiro, de sobrenome Azevedo. E me aponta,
além do já dito, como um singular profissional que não aceita
interferência do patrão. Incrível: arrogo-me mandar mais do que o
próprio. Normal que ele me escale para o seu auto de fé. O Brasil é
o único país do meu conhecimento onde os profissionais chamam de
colega o dono da casa.
Não há nas calúnias que me alvejam o mais
pálido resquício de verdade factual. Os textos que me atribuem para
baseá-las nascem de uma mistificação. Pinçados ao acaso e fora do
contexto, um somente é de minha autoria e nada diz que me incrimine.
E pouparei os leitores de disquisições sobre minha repulsa
visceral, antes ainda que moral, à prisão sem mandado, à tortura e
à pena de morte. Quando o Estadão foi pioneiro na
publicação de um artigo assinado Magnoli, limitei-me a escrever um
breve texto para o site de CartaCapital, destinado a contar
a história de outra peça de humorismo, escrita em 1970 por um certo
Lenildo Tabosa Pessoa, redator, vejam só, do Estadão, e
intitulada O Senhor Demetrio. Ou seja, eu mesmo, marcado no
batismo por nome tão pesado.
Lenildo pretendia publicar seu texto no jornal, os
patrões, Julio de Mesquita Neto e Ruy Mesquita, não deixaram.
Surgiu em matéria paga o retrato de um hipócrita pretensamente
refinado que, como Arlequim da política, servia ao mesmo tempo Máfia
e Kremlin. O senhor Demetrio, de codinome Mino. Diga-se que Lenildo
encontraria eco três anos depois no programa global de um facínora
chamado Amaral Neto, também identificado como Amoral Nato, que
repetia Lenildo no vídeo. Como se vê, tom e letra das calúnias
estão sujeitos a mudanças ideológicas.
Ao negarem espaço nas páginas
da sua responsabilidade à diatribe de Lenildo, os herdeiros do
doutor Julinho quiseram respeitar a memória do meu pai, que
trabalhou no Estadão por 16 anos, e meu honesto e leal
desempenho na criação da Edição de Esporte e do Jornal
da Tarde. O Estadão, evidentemente, não é mais o
mesmo. Lenildo e Amaral Neto me tinham como perigoso subversivo de
esquerda. Em compensação, hoje sou acusado de ter dirigido naquele
mesmo 1970 uma Veja entregue “à bajulação,
subserviência e propaganda da ditadura”. É espantoso, mas a
semanal da Abril em 1970 era submetida à censura exercida na redação
por militares. Eu gostaria de saber o que acham os senhores
Pannunzio, Magnoli e Azevedo a respeito de quem na mídia brasileira
se perfilava illo tempore ao lado da ditadura. Ou seja,
quase todos.
E Arci, impávido, ofereceu a cabeça de Millôr
Fernandes ao ministro Golbery. Fotos: Marcelo Carnaval e Manoel
Amorim/Ag O Globo
Quem, de fato foi censurado? Os alternativos,
então chamados nanicos, em peso, do Pasquim a Opinião,
que depois se tornaria Movimento, sem exclusão de O São
Paulo, o jornal da Cúria paulistana regida por dom Paulo
Evaristo Arns. A Veja, primeiro por militares, depois por
policiais civis no período Médici. Com Geisel, passou a ser
censurada diariamente, de terça a sexta, nas dependências da
Polícia Federal em São Paulo, e aos sábados, à época dia de
fechamento, na própria residência de censores investidos do direito
a um fim de semana aprazível. Enquanto isso, Geisel exigia que os
alternativos submetessem seu material às tesouras censórias em
Brasília, toda terça-feira.
Sim, o Estadão também foi censurado e
com ele o Jornal da Tarde. A punição resultava de uma
briga em família. O jornal apoiara o golpe, mas sonhava com a
devolução do poder a um civil, desde que se chamasse Carlos
Lacerda. Este não deixava por menos nas suas aventuras oníricas. O
Estadão acabou sob censura, retirada contudo em janeiro de
1975, no quadro das celebrações do centenário do jornal. Carlos
Lacerda foi cassado. Diga-se que ao Estadão permitia-se
preencher os espaços vagos deixados pelos cortes com versos de
Camões, em geral bem escolhidos, e ao Jornal da Tarde com
receitas de bolo, às vezes discutíveis. O resto da mídia não
sofreu censura. Não era preciso.
Julio Neto e Ruy Mesquita não dariam espaço às
calúnias de um tal de Magnoli. Fotos: Alfredo Fiaschi/AE e AE
Quando me chamam para fazer
palestras em cursos de jornalismo, sempre me surpreendo ao verificar
que o enredo que acabo de alinhavar é ignorado pelos alunos e por
muitos professores. Acham que a censura foi ampla, geral e
irrestrita. Meus críticos botões observam que me surpreendo à toa.
Pois não se trata de futuros Pannunzios, Magnolis e Azevedos? No
caso deste senhor Reinaldo, vale acentuar uma nossa específica
diferença. Não me refiro ao fato de que eu reputo Antonio Gramsci
um grande pensador, enquanto ele o define como terrorista. A questão
é outra.
Ocorre que, ao trabalhar e ao fazer estágios na
Europa, entendi de vez que patrão é patrão e empregado é
empregado, e que para dirigir redações o profissional é chamado
por causa de sua exclusiva competência. Ao contrário do que se dá
no Brasil, por lá não há diretores por direito divino. Por isso,
ao deixar o Jornal da Tarde para tomar o comando dos
preparativos do lançamento de Veja, me senti em condições
de exigir certas garantias.
No Estadão tivera um excelente
relacionamento com a família Mesquita, fortalecido pela lembrança
que cultivavam de meu pai, iniciador da reforma do jornal que Claudio
Abramo aprofundou e completou. Gozei na casa então ainda do doutor
Julinho, filho do fundador, de grande autonomia, aquela que facilitou
a criação de um diário de estilo muito próprio, arrojado na
diagramação, em busca de qualidade literária no texto. Estava
claro, porém, que a linha política seria a da família. Com os
Mesquita me dei muito bem, foram de longe meus melhores patrões,
talvez os remanescentes não percebam que por eles tenho afeto,
embora, saído do Estadão, não me preocupasse em mostrar
que minhas ideias não coincidiam com as deles.
Convidado finalmente pelos Civita para a
empreitada de Veja, solicitei uma liberdade de ação
diversa daquela de que gozara no Jornal da Tarde. Só
aceitaria o convite se os donos da Abril, uma vez definida a fórmula
da publicação, se portassem como leitores a cada edição, passível
de discussão está claro, mas a posteriori, quer dizer,
quando já nas bancas.
Pedido aceito. A primeira Veja,
espécie de newsmagazine à brasileira, foi um fracasso. Além disso,
já irritou os fardados por trazer na capa a foice e o martelo. A
temperatura subiu com a segunda capa, a favor da Igreja politicamente
engajada. A quinta, com a cobertura do congresso da UNE em Ibiúna,
foi apreendida nas bancas. E também o foi aquela que celebrou a
decretação do AI-5 no dia 13 de dezembro de 1968. Tempos difíceis.
Mas a edição de mais nítido desafio aos algozes da ditadura é de
mais ou menos um ano depois. A chamada de capa era simples e direta:
“Torturas”, em letras de forma.
A história desta reportagem começou cerca de
três meses antes, com uma investigação capilar conduzida por uma
equipe de oito repórteres encabeçada por Raymundo Rodrigues
Pereira. Foram levantados 150 casos, três deles nos detalhes
mínimos. Emílio Garrastazu Médici acabava de ser escolhido para
substituir a Junta Militar e pela pena do então coronel Octavio
Costa acenava em discurso, pretensamente poético ao declinar a
origem do novo ditador por dizê-lo vindo do Minuano, à necessidade
do abrandamento da repressão. Raymundo e eu recorremos a um
estratagema, e saímos com uma edição anódina para celebrar o
vento gaúcho. Falávamos da posse, da composição do ministério,
do discurso. Chamada de capa: “O Presidente Não Admite Torturas”.
Ofereço este número de Veja à aguda
análise de Pannunzios, Magnolis, Azevedos e quejandos. (Nada a ver
com queijo.) Bajulação e subserviência estão ali expostas da
forma mais redonda. Naquele momento, a mídia foi atrás de Veja,
e por três dias falou-se mais ou menos abertamente de tortura. Logo
veio a proibição, que Veja ignorou. Na noite de
sexta-feira a reportagem da equipe de Raymundo descia à gráfica
para arrolar 150 irrefutáveis casos de tortura, dos quais três em
detalhes. Ao mesmo tempo, eu mandava cortar os telefones da Abril
para impedir ligações de quem pretendesse interferir, autoridades,
patrões e intermediários. A edição foi apreendida nas bancas, e
logo desembarcou na redação a censura dos militares.
Quando ouvi falar em distensão pela primeira vez,
meados de 1972, pela boca do general Golbery, à época presidente da
Dow Chemical no Brasil, pareceu-me possível alguma mudança na
sucessão de Médici. De fato, Golbery, que vinha de conhecer,
articulava na sombra a candidatura de Ernesto Geisel, títere sob
medida para as suas artes de titereiro. Meados de 1973, assenta-se a
candidatura obrigatória de Geisel. Alguns meses após, ministério
em gestação, Golbery, futuro chefe da Casa Civil à revelia de
Médici, me sugere uma conversa com o recém-convocado para a pasta
da Justiça, Armando Falcão. Assunto: fim da censura em clima de
distensão.
Conversei duas vezes com Falcão
enquanto Roberto Civita entre janeiro e fevereiro de 1974 apontava em
Hugh Hefner um notável filósofo da modernidade. Mal assumiu a
pasta, dia 19 de março de 1974, Falcão chamou-me a Brasília para
comunicar que a censura se ia naquele instante. Sublinhei: “Sem
compromisso algum de nossa parte”. “Claro, claro”, proclamou, e
me deu de presente seu livro de recente publicação, intitulado A
Revolução Permanente. Mais tarde Golbery comentaria: “Falcão
é o nosso Trotski”.
Três semanas após, a censura voltou, mais feroz
do que antes. Duas reportagens causaram a costumeira irritação,
fatal foi uma charge de Millôr Fernandes. Em revide, decretava-se
que a censura seria executada em Brasília às terças-feiras. Fui
visitar Golbery no dia seguinte, eu estava de veneta rebelde, levei
meus dois filhos meninotes, e andei pela capital federal de limusine.
No meu livro de próxima publicação, O Brasil, a sair pela
Editora Record como O Castelo de Âmbar, descrevo assim a
visita ao chefe da Casa Civil.
“A secretária do ministro, dona Lurdinha,
senhora de modos caseiros, redonda rola sobre o carpete sem perder o
sorriso, chega-se ao meu ouvido, murmura: “Veio também o senhor
Roberto Civita, quer ser recebido mas não tem hora marcada”. Não
deixo que o tempo se estique inutilmente, tomo a visão panorâmica
da antessala e vejo Arci, entalado em uma poltrona com expressão
perdida na paisagem da savana descortinada além das vidraças. “Que
faz aqui?” E ouço meu próprio latido.
“Vici me contou que você viria, e eu gostaria…”
“Você não pediu audiência, não tem hora”, proclamo.
“Vici me contou que você viria, e eu gostaria…”
“Você não pediu audiência, não tem hora”, proclamo.
Ele insiste, à beira da imploração. O meu
tom chama a atenção de Manuela e Gianni, encaram a cena sem
entender o assunto, percebem porém que o pai está muito irritado,
enquanto o outro tem jeito de pedinte. Lurdinha traz uma laranjada
para as crianças e avisa que o general está à espera. Admito:
“Você entra comigo, mas se compromete a não abrir a boca”. Ele
promete.
Na conversa que se segue no gabinete da Casa
Civil, o meu argumento é óbvio, Veja é uma revista semanal que
encerra o trabalho na noite de sábado e vai às bancas às
segundas-feiras, obrigá-la a submeter textos e fotos aos censores na
terça significa inviabilizá-la. Pergunto a Golbery: “Os senhores
pretendem que Veja simplesmente acabe?” Não, nada disso. “Então
é preciso pôr em prática outro sistema.”
O chefe da Casa Civil entende
e concorda. Diz: “Vá até o Ministério da Justiça, fale com
Falcão, a Lurdinha já vai avisá-lo, diga a ele que vamos procurar
uma saída até amanhã no máximo, a próxima edição tem de sair
regularmente”.
Golbery fica de pé, hora da despedida. O general não conhecia o patrãozinho que até aquele momento cumpriu a promessa feita na antessala. E de supetão abre a boca: “General, se o senhor acha que devemos tomar alguma providência em relação ao Millôr Fernandes…”
Golbery fulminou-o: “Senhor Civita, não pedi a cabeça de ninguém”.
Golbery fica de pé, hora da despedida. O general não conhecia o patrãozinho que até aquele momento cumpriu a promessa feita na antessala. E de supetão abre a boca: “General, se o senhor acha que devemos tomar alguma providência em relação ao Millôr Fernandes…”
Golbery fulminou-o: “Senhor Civita, não pedi a cabeça de ninguém”.
Vici e Arci, ou seja, Victor Civita e Roberto
Civita, assim se chamavam no castelo envidraçado à beira do Tietê,
esgoto paulistano ao ar livre. Esse entrecho já o desenrolei em O
Castelo de Âmbar sem merecer desmentido e o próprio Millôr o
colocou no ar do seu blog logo após a publicação no final de 2000.
Ao sair do gabinete de Golbery, eu disse a Roberto Civita “você é
mesmo cretino”, como depois o definiria na conversa de despedida
com o pai Victor, mas poderia dizer coisa muito pior. Quanto à minha
saída da direção de Veja e de conselheiro board
abriliano, descrevi o evento em editorial de poucas semanas atrás.
Faço questão de salientar, apenas e ainda, que não fui demitido, e
sim me demiti para não receber um único centavo das mãos de um
Civita, nem que fosse a comissão pelo empréstimo de 50 milhões de
dólares recebidos pela Abril da Caixa Econômica Federal, juntamente
com o fim da censura, em troca da minha cabeça. A revista
prontamente caiu nos braços do regime.
A partir daí, tive de inventar meus empregos para
viver. Ou por outra, para viver com um salário infinitamente menor
(insisto, infinitamente) do que aquele dos importantes da imprensa, e
nem se fale daqueles da televisão. Ganham mais que os europeus e de
muitos americanos. Em outro país, um jornalista com o meu passado
não sofreria as calúnias de Pannunzios, Magnolis e Azevedos, e de
vários que os precederam. Muito representativos de uma mídia que
manipula, inventa, omite e mente. Observem os fatos e as mentiras da
atualidade imediata, o caso criado pelo protagonismo de Gilmar Mendes
e pela ferocidade delirante dos chapa-branca da casa-grande. Além do
mais, há em tudo isso um traço profundo de infantilidade, um rasgo
abissal, a provar o estágio primitivo da sociedade do privilégio,
certa de que a senzala aplaude Dilma e Lula e mesmo assim se
conforma, resignada, dentro dos seus habituais limites.
Os caluniadores são, antes de
mais nada, covardes. Sentem as costas protegidas pela falta
generalizada de memória, ou pela pronta inclinação ao
esquecimento. Pela impunidade tradicional garantida por uma Justiça
que não pune o rico e poderoso. Pelo respaldo do patrão
comprometido com a manutenção do atraso em um país onde somente
36% da população conta com saneamento básico, e 50 mil pessoas
morrem assassinadas ano após outro. Confiam no naufrágio da verdade
factual, pela enésima vez, e que tudo acabe em pizza, como outrora
se dizia, a começar pela CPI do Cachoeira e pela pantomima encenada
por Gilmar Mendes. E que o tempo, vertiginoso e fulminante como
sempre, se feche sobre os fatos, sobre mais uma grande vergonha, como
o mar sobre um barco furado.
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