quarta-feira, 27 de junho de 2012

Marcio Sotelo: Punir a tortura é direito e dever da humanidade

buscado no Viomundo





por Marcio Sotelo Felippe

“A regulamentação atual dos direitos humanos não se baseia na posição soberana dos Estados, mas na pessoa enquanto titular, por sua tal condição, dos direitos essenciais que não podem ser desconhecidos com base no exercício do poder constituinte, nem originário, nem derivado” (Corte Suprema do Uruguai)
A  decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos estabeleceu a invalidade da chamada Lei da Anistia quando estendida aos responsáveis pelos crimes  praticados por agentes da repressão no período da ditadura militar.
O Supremo Tribunal Federal, na Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental no. 153,  declarou que era válida, apesar de anistiar crimes contra a Humanidade.
Tem-se uma antinomia – conflito de normas. A sociedade deve saber qual a solução do conflito.
No Direito Internacional dos Direitos Humanos normas são vinculantes de duas maneiras: ou por força da convencionalidade ou porque são imperativas. Ambas estão em questão no caso da Lei de Anistia brasileira e ambas oferecem a mesma solução para antinomia. Além de abordar esses dois aspectos, vamos fazer algumas considerações sobre a superação do Positivismo jurídico, sobre a  imprescritibilidade dos crimes contra a Humanidade e assinalar os  pontos fulcrais da decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos.

1. Convencionalidade
Após a decisão da Corte Interamericana, o ministro César Peluso declarou ao jornal O Estado de S. Paulo: “a eficácia [da decisão da Corte] se dá no campo da convencionalidade. Não revoga, não anula e não cassa a decisão do Supremo”.
Dita pelo presidente da mais alta corte de justiça do país, proporcionou um  reforço para os que defendem a não punição dos crimes contra a Humanidade cometidos no período do regime militar.   Abriu como que uma zona de alívio para eles, dando-lhes um  aparente conforto na  segurança e  técnica jurídicas e no Estado de Direito.
Nós outros, que  defendemos a apuração, estaríamos agora repousando  à margem  do Direito, esmagados pela suposta racionalidade jurídica de quem é nada mais nada menos do que  presidente do STF.   Permaneceríamos então repetindo argumentos esvaziados, retóricos,  insistindo em controvérsias históricas superadas e  apelos vãos, em divergência meramente política (ou movida pela “vingança”)  com os que defendem a “reconciliação nacional” ou a versão do “grande acordo” de 1979 que teria respaldado a Lei da Anistia. O Ministro  transmitiu ao país a ideia de que o procedimento jurídico encerrou-se e o regime democrático-constitucional deu a última palavra.
Falso. A afirmação do Ministro é simplesmente errada.   Ao recorrer naquele contexto  à expressão convencionalidade o  ministro  cometeu um truque semântico: confundiu o sentido técnico-jurídico com um  sentido vago da palavra, denotando uma ideia de quase arbítrio frente a um dispositivo ou regra qualquer, como se desprovida de maior força vinculante. Mas convencionalidade no plano do Direito Internacional tem um sentido técnico  preciso: é o modo de criação de normas jurídicas vinculantes.
O fenômeno normativo no plano do Direito Internacional torna-se vinculante por acordo entre os Estados. O fundamento dessa vinculação é o vetusto princípio  pacta sunt servanda. O pactuado deve ser cumprido sob pena de  ilicitude. Estamos longe, portanto, daquela atmosfera de mero arbítrio que a frase do Ministro tenta invocar.

2. Normas Imperativas ou Cogentes
O Direito Internacional não se esgota em normas convencionais. Houve uma construção histórica de   normas imperativas (independentes de convencionalidade) de Direito Internacional. A doutrina já havia estabelecido esse conceito para o Direito Internacional mesmo antes da II Guerra, mas então controvertidamente. Agora está declarado na Convenção de Viena sobre Direito dos Tratados, do qual o Brasil é parte desde 2009. Normas imperativas significa dizer que são cogentes. A cogência é um conceito da Teoria Geral do Direito,   que distingue entre jus cogens e jus dispositivum.
O jus dispositivum refere-se a  norma cuja efetividade está condicionada à vontade dos sujeitos da relação jurídica. Direitos patrimoniais, em regra, são regulados por direito dispositivo. Se uma multa contratual entre sujeitos privados está fixada em 10%, mas o credor resolve que recebe 5%, ou resolve que recebe nada, sua vontade é soberana e a norma somente opera pela sua vontade. Mas o jus cogens,  direito cogente,   prescinde da vontade das partes para sua aplicação. Assim, o  Código Civil proíbe  negociar herança de pessoa viva, mesmo com o consentimento  da pessoa. Esta é uma norma  cogente, como também qualquer uma, por exemplo,  que verse sobre tributos. A vontade do agente estatal e do contribuinte são indiferentes.
Além do fenômeno da convencionalidade  sustentado pelo princípio  pacta sunt servanda, há normas de Direito Internacional que têm a característica da cogência.
Após Nuremberg  se reconhece que normas do Direito Internacional dos Direitos Humanos são cogentes. Derivadas dos costumes e de outras fontes formais do Direito, independem, para sua eficácia, da vontade dos  sujeitos envolvidos numa relação jurídica. A racionalidade disto é clara. Trata-se de  um imperativo moral transformado em axioma jurídico: como poderia a proteção da vida e dos direitos básicos da pessoa humana depender de um ato de vontade, em qualquer plano do fenômeno jurídico?
3. Superação do Positivismo Jurídico
Em Nuremberg dirigentes de  um Estado soberano foram  julgados por uma corte internacional.  Para isto contribuíram  não só normas convencionais, mas também o costume internacional e os princípios gerais de Direito como fontes de normas vinculantes, cogentes,   de  proteção da Humanidade.
Nuremberg foi, por isso,  o ponto de ruptura com o positivismo jurídico. A ideia  de que somente normas positivadas por meio de determinados procedimentos formais constituem o Direito independentemente de juízo de valor deve ser considerada hoje  uma etapa primitiva do desenvolvimento do fenômeno jurídico. Isto porque a  dignidade humana deixou de ser um postulado filosófico para tornar-se axioma jurídico. Está  na raiz  dos instrumentos internacionais de defesa dos Direitos Humanos que se seguiram à barbárie nazista:  a Declaração de Universal de 1948, o Pacto de Direitos Civis e Políticos,  a Declaração de Direitos Econômicos e Sociais, a Convenção sobre a Imprescritibilidade dos Crimes de Guerra e contra a Humanidade, de 1968, Convenção contra a Tortura, etc.
No aspecto penal,  os Princípios de Nuremberg, aprovados pela ONU em 1950, consolidaram como crimes de Direito Internacional crimes de guerra, crimes contra a paz e crimes contra a humanidade, afirmando, de modo expresso, que  a lei interna não isenta de responsabilidade o perpetrador. Claro.  Sem isso  tudo seria inútil. Dentro dos estreitos limites impostos pelo Positivismo jurídico e seu corolário, a soberania dos Estados entendida como absoluta,  não se poderia conceber uma norma imperativa, cogente, de defesa da Humanidade.

4. Imprescritibilidade
Permitir que o decurso do tempo tornasse impuníveis crimes contra a Humanidade significaria relativizar a ideia de Humanidade. Certamente que a prescrição no Direito comum é  um conceito iluminista, necessário e civilizado. Mas a imprescritibilidade dos crimes contra a Humanidade incorpora esse ideal iluminista. As declarações de direitos na Revolução Francesa  tinham como sujeitos de direitos  os indivíduos. Nos momentos históricos seguintes surgem outros sujeitos de direitos, não mais indivíduos, mas coletivos – trabalhadores, minorias, excluídos, etc. E num terceiro momento surge, com o Direito Internacional dos Direitos Humanos a  própria humanidade como sujeito de direito.
A imprescritibilidade  justifica-se porque nos crimes contra a humanidade há  um enorme potencial de aniquilação de seres humanos (o imenso poder de um Estado e consequente  capacidade de destruição interna e externa). Há o risco de extermínio de etnias, minorias, de certos valores culturais, espirituais, sociais, expressões políticas, filosóficas, etc. O que se protege é a própria sobrevivência da humanidade em sua inteireza,  complexidade e riqueza. Por isso o poder de persecução é  absoluto, transcende fronteiras, soberanias e limitações próprias de outro  estágio de civilização e de outro plano jurídico.

5. A Decisão da Corte Interamericana
O Brasil  ratificou a Convenção Interamericana de Direitos Humanos em 1992. Reconheceu  a competência da Corte Interamericana na significativa data de 10 de dezembro de 1998 (aniversário da promulgação da Declaração Universal dos Direitos Humanos pela ONU), nos seguintes termos:
“o Brasil declara que reconhece, por tempo indeterminado, como obrigatória e de pleno direito, a competência da Corte Interamericana de Direitos Humanos, em todos os casos relacionados com a interpretação ou aplicação da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, em conformidade com o artigo 62, sob reserva de reciprocidade e para fatos posteriores a esta declaração” (grifei).
Veja-se que no plano da convencionalidade o conceito clássico de soberania estatal nem se modifica. O reconhecimento de uma corte internacional se dá como  ato de soberania e o acatamento das decisões que dela emanam é consequência lógica dessa soberania. Vale dizer, de sua vontade.
A Comissão Interamericana de Direitos Humanos submeteu, em face da convencionalidade,  à Corte Interamericana  uma demanda contra o Brasil conforme petição apresentada pelo Centro pela Justiça e pelo Direito Internacional (CEJIL) e Human Rights Watch/Américas. A denúncia consistiu  na responsabilidade do Estado brasileiro pela detenção arbitrária, tortura e desaparecimento forçado de 70 pessoas, entre membros do Partido Comunista do Brasil e camponeses da região do Araguaia em decorrência de operações do Exército brasileiro.
Ressaltou a Comissão, em síntese,  que o Brasil, por força da Lei 6.683/79 (“Lei de Anistia”),  não realizou investigação penal com a finalidade de julgar e punir os responsáveis pelo desaparecimento forçado de 70 pessoas;  que as medidas legislativas e administrativas adotadas  restringiram indevidamente o direito de acesso à informação pelos familiares; que o desaparecimento das vítimas, a impunidade dos responsáveis e a falta de acesso à Justiça, à verdade e à informação afetaram negativamente a integridade pessoal dos familiares dos desaparecidos e da pessoa executada.
O reconhecimento da competência da Corte Interamericana pelo Brasil se deu com a ressalva dos fatos anteriores a 1998.  O caso Araguaia ficou  a salvo da ressalva. A Corte delimitou sua competência aos casos dos desaparecidos porque o desaparecimento forçado é crime continuado, e portanto  seus efeitos persistem após 1998. Por isso ficou excluída da decisão o caso de Maria Lúcia Petit da Silva,  cujos restos mortais foram localizados após 1998. Mas deu-se por competente também para os fatos e omissões ocorridos a partir de 10 de dezembro de 1998, como a ausência  de investigação e outras omissões.
Isto é de fundamental importância neste momento. Nos termos da decisão da Corte, temos:
“…o caráter contínuo e permanente do desaparecimento forçado de pessoas foi reconhecido de maneira reiterada pelo Direito Internacional dos Direitos Humanos, no qual o ato de desaparecimento e sua execução se iniciam com a privação da liberdade da pessoa e a subsequente falta de informação sobre seu destino, e permanecem até quando não se conheça o paradeiro da pessoa desaparecida e os fatos não tenham sido esclarecidos. A Corte, portanto, é competente para analisar os alegados desaparecimentos forçados das supostas vítimas a partir do reconhecimento de sua competência contenciosa efetuado pelo Brasil”.

A Corte afirmou que não há controvérsia fática porque o Estado brasileiro reconheceu sua responsabilidade  e relatou as medidas de reparação destinadas às vítimas da ditadura militar (Lei 9.140/95).  A divergência foi apenas jurídica. Desse modo  concluiu provado que, entre os anos de 1972 e 1974, na região do Araguaia, agentes do Estado foram responsáveis pelo desaparecimento forçado de 62 pessoas:
“Transcorridos mais de 38 anos, contados do início dos desaparecimentos forçados, somente foram identificados os restos mortais de duas delas. O Estado continua sem definir o paradeiro das 60 vítimas desaparecidas restantes, na medida em que, até a presente data, não ofereceu uma resposta determinante sobre seus destinos”. Em conclusão, assinalou  que “o Estado é responsável pelo desaparecimento forçado e, portanto, pela violação dos direitos ao reconhecimento da personalidade jurídica, à vida, à integridade pessoal e à liberdade pessoal, estabelecidos, respectivamente, nos artigos 3, 4, 5 e 7, em relação ao artigo 1.1 da Convenção Americana, em prejuízo das seguintes pessoas (…)”.
Estabelecidos os fatos e reconhecida a responsabilidade do Estado brasileiro, o obstáculo à investigação e eventual punição dos responsáveis é a Lei de Anistia. A Corte declarou que ela não é válida. Não pode  produzir efeitos jurídicos:
“Este Tribunal, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, os órgãos das Nações Unidas e outros organismos universais e regionais de proteção dos direitos humanos pronunciaram-se sobre a incompatibilidade das leis de anistia, relativas a graves violações de direitos humanos com o Direito Internacional e as obrigações internacionais dos Estados (…) no Sistema Interamericano de Direitos Humanos, do qual  Brasil faz parte por decisão soberana, são reiterados os pronunciamentos sobre a incompatibilidade das leis de anistia com as obrigações convencionais dos Estados, quando se trata de graves violações dos direitos humanos. Além das mencionadas decisões deste Tribunal, a Comissão Interamericana concluiu, no presente caso e em outros relativos à Argentina, Chile, El Salvador, Haiti, Peru e Uruguai, sua contrariedade com o Direito Internacional.
Lembrou decisão do Tribunal Penal Internacional para a ex-Iugoslávia:
“carece de sentido, por um lado, manter a proscrição das violações graves dos direitos humanos e, por outro, aprovar medidas estatais que autorizem ou perdoem, ou leis de anistia que absolvam seus perpetradores”.
Na análise ainda da lei de anistia brasileira ressaltou a Corte:
“a forma na qual foi interpretada e aplicada a Lei de Anistia aprovada pelo Brasil (…) afetou o dever internacional do Estado de investigar e punir as graves violações de direitos humanos, ao impedir que os familiares das vítimas no presente caso fossem ouvidos por um juiz, conforme estabelece o artigo 8.1 da Convenção Americana, e violou o direito à proteção judicial consagrado no artigo 25 do mesmo instrumento, precisamente pela falta de investigação, persecução, captura, julgamento e punição dos responsáveis pelos fatos, descumprindo também o art 1.1 da Convenção. Adicionalmente, ao aplicar a Lei de Anistia impedindo a investigação dos fatos e a identificação, julgamento e eventual sanção dos possíveis responsáveis por violações continuadas e permanentes, como os desaparecimentos forçados, o Estado descumpriu sua obrigação de adequar seu direito interno, consagrada no art. 2 da Convenção Americana”.

Em sentido absolutamente contrário ao afirmado pelo Ministro Cesar Peluso (lembremos o que ele disse: a decisão da Corte “se dá no campo da convencionalidade, não altera a decisão do STF”, etc),  a Corte foi peremptória: é obrigação das autoridades judiciais efetuar o controle de convencionalidade como obrigação assumida pelo Estado brasileiro na ordem internacional. Isto deve fazer o Ministro lembrar-se de que a ordem jurídica internacional não é uma uma espécie de adorno:
“O Tribunal estima oportuno recordar que as obrigações de cumprir as obrigações internacionais voluntariamente contraídas corresponde a um princípio básico do direito sobre a responsabilidade internacional dos Estados, respaldado pela jurisprudência internacional e nacional, segundo o qual aqueles devem acatar suas obrigações convencionais e internacionais de boa fé (pacta sunt servanda). Como já salientou esta Corte e conforme dispõe o artigo 27 da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados de 1969, os Estados não podem, por razões de ordem interna, descumprir obrigações internacionais. As obrigações internacionais dos Estados-Partes vinculam todos seus poderes e órgãos, os quais devem garantir o cumprimento das disposições convencionais e seus efeitos próprios (effet utile) no plano do seu direito interno.
Patente, portanto, que o presidente do Supremo Tribunal Federal desinformou a sociedade brasileira. O Estado brasileiro tem obrigações internacionais assumidas no exercício de sua soberania. Os três Poderes da República devem cumpri-las.  Aliás, quem pleiteia um assento definitivo no Conselho de Segurança da ONU não pode ignorar as decisões de órgãos internacionais de que  participa, sob pena de desmoralização.
Embora a Corte tenha delimitado sua competência aos efeitos jurídicos  pós-1998 respeitando   a  ressalva do Brasil, em voto apartado o juiz ad hoc Roberto de Figueiredo Caldas enfatizou aspectos relacionados com o caráter vinculante das normas de Direito Internacional dos Direitos Humanos – o jus cogens referido acima.
O Brasil deve dar cumprimento às normas cogentes protetivas da humanidade  para além da convencionalidade,  estendendo os efeitos da decisão da Corte aos atos praticados pela ditadura militar no período 1964-1985. Assassinatos, torturas, violações, desaparecimentos forçados, ferem normas do  jus cogens do Direito Internacional dos Direitos Humanos e isto  impõe que o Estado brasileiro assuma integralmente sua responsabilidade e proceda à investigação e a persecução penal em todos os casos de crimes contra a humanidade praticados pela ditadura militar. As proibições cogentes no campo dos direitos humanos  superpõem-se a qualquer norma de direito interno. Prevalecem mesmo diante do poder constituinte originário. Na decisão,  a Corte Interamericana citou julgado da Corte Suprema do Uruguai a esse respeito:
“a regulamentação atual dos direitos humanos não se baseia na posição soberana dos Estados, mas na pessoa enquanto titular, por sua tal condição, dos direitos essenciais que não podem ser desconhecidos com base no exercício do poder constituinte, nem originário, nem derivado”.
O juiz Caldas fez constar em seu voto separado  afirmação coincidente. Lembrou que é irrelevante a não ratificação pelo Brasil da Convenção sobre a Imprescritibilidade dos Crimes de Guerra e contra a Humanidade porque ela não é criadora do Direito, mas meramente consolidadora. Desde Nuremberg reconheceu-se a existência de um costume internacional cujos primórdios remontam ao preâmbulo da Convenção de Haia de 1907.  Assim, prossegue o juiz Caldas, o jus cogens “transcende o Direito dos Tratados e abarca o Direito Internacional em geral, inclusive o Direito Internacional dos Direitos Humanos”. Em sua conclusão, afirma:
“É prudente lembrar que a jurisprudência, o costume e a doutrina internacionais consagram que nenhuma lei ou norma de direito interno, tais como as disposições acerca da anistia, as normas de prescrição e outras excudentes de punibilidade, deve impedir que um Estado cumpra a sua obrigação inalienável de punir os crimes de lesa-humanidade, por serem eles insuperáveis nas existências de um indivíduo agredido, nas memórias dos componentes de seu círculo social e nas transmissões por gerações de toda a humanidade. É preciso ultrapassar o positivismo exacerbado”.
Na consciência jurídica  contemporânea  a Humanidade  é o sujeito de direito. O juiz deve, se demandado em um momento especial,    julgar acima do poder constituinte originário. Isto há de deixar pálidos juristas não acostumados a raciocinar fora dos limites do Positivismo jurídico.
A segurança jurídica – o lapidar mote do Positivismo jurídico -  reside, na verdade,  em certos valores e princípios assentados na defesa da pessoa humana. Segurança jurídica para proteger torturadores?  Admitir – como se fez em Nuremberg – que em casos de barbárie devem ser preservados valores universais em detrimento da técnica cega e irracional fixa  claramente em que circunstâncias a forma positiva clássica do Estado contemporâneo prevalece e em que circunstâncias não. Ou entendemos que estes conceitos estão consolidados ou continuaremos reféns daquelas trevas que nos infelicitaram durante  21 anos. Eles devem constituir  a base do Direito no 3o. milênio para que tenhamos uma etapa superior de moralidade  e civilização.
Portanto, todos os conceitos em jogo convergem para a mesma solução daquela  antinomia: prevalece o decidido pela Corte Interamericana. No plano da convencionalidade, o Brasil se obrigou, e essa obrigação não é um adorno, como deu a entender o senhor ministro.  Gera efeitos. Há também normas imperativas, cogentes, que devem ser  aplicadas independentemente da convencionalidade e alcançam os crimes cometidos durante toda a ditadura militar. O Positivismo jurídico e seu corolário de soberania absoluta são relíquias históricas. As normas imperativas que condenam os crimes contra a Humanidade  são imprescritíveis.
Contra a resistência de setores desinformados, de má-fé ou com interesses obscuros a resguardar deve ser oposta esta consciência jurídica universal e a segura trilha de construção de uma sociedade verdadeiramente democrática.
Trata-se de saber que sociedade estamos construindo. Uma em que é possível admitir que o Estado, em um momento, aniquile, brutalize, torture, faça desaparecer pessoas e  imponha a uma parte de seus cidadãos  sofrimento indizível até o final de seus dias, e em   outro momento ignore tudo por razões políticas; ou uma sociedade em que cada brasileiro tenha a proteção absoluta de membro da humanidade.  Muitos de nós fizemos a escolha moral, que é amparada pelo Direito,  e não vamos  renunciar ao bom combate. Outros, que calam indiferentes, que  façam a escolha que não os envergonhe perante as gerações futuras. Porque punir a tortura é direito e dever  da Humanidade.

Marcio Sotelo Felippe é jurista, procurador do Estado de São Paulo

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