buscado no Mudanças e Divergências
Helio Fernandes
relembra o AI-5, que passou à História apenas como sigla. Foi tão
selvagem, cruel e ditatorial, que não precisava mais nada.
O comentarista Jose
Guilherme Schossland oportunamente nos envia essa pérola, um
artigo de Helio Fernandes publicado no ano passado 2010 sobre o
aniversário do AI-5.
***
Esse 13 de dezembro é
inesquecível. Não apenas para os atingidos, cassados, presos e
desaparecidos, mas também para todo o país. Não começou nesse dia
13, vinha de antes, muito antes, na vontade de alguns, e na execução
de alguns outros. E a palavra execução define e desarvora tudo.
Acho, não tenho
certeza, que é a primeira vez que escrevo sobre esse “documento
único” na História do Brasil, Monarquia ou República. Vou me
prender, que palavra, apenas a fatos, nenhuma divagação, análise
anterior, suposição ou seja o que for. Aqui, o que aconteceu a
partir da divulgação desse Ato Institucional número 5, que como
todos sabemos, se transformou histórica e ditatorialmente apenas
numa sigla.
Retrocesso no tempo,
apenas de uma semana, com duas participações de Djalma Marinho,
extraordinária figura. No dia 5 de dezembro de 1968, eleição para
presidente da Câmara, Djalma contra Nelson Marchesan, do Rio Grande
do Sul, apoiado pela ditadura.
Eu era tão amigo de
Djalma que não pude deixar de ir a Brasília. Assisti pessoalmente o
massacre do deputado do Rio Grande do Norte. Ele era presidente da
Comissão de Constituição e Justiça, que uma semana depois
julgaria a licença para processar o jornalista-deputado do MDB,
Marcio Moreira Alves.
Trocaram todos os
oposicionistas da Comissão, ofereceram a Djalma Marinho não só a
vitória para presidente da Câmara, mas o que ele quisesse. Os
homens como Djalma jamais querem alguma coisa, resistência é o
único objetivo, a recompensa. A obrigação do dever cumprido, sem
lamento, ressentimento, aborrecimento, mas também sem dar a
impressão de heroísmo.
No dia seguinte vim
para o Rio. Tudo o que atingiria a muitos (cassação, prisão,
censura, mais perseguição) já acontecera ao repórter há muito
tempo. Também não podia fazer nada, a censura era brutal e de corpo
presente, existiam quase tantos censores (policiais) quanto
repórteres, um clima apavorante.
No dia 12 foi votada a
licença para processar o jornalista, apenas um pretexto para
ENDURECER o mais possível. Posso dizer com total segurança, não se
esperava a derrota do governo ditatorial, a mobilização foi
espantosa. Até o senador Daniel Krieger, um homem de sensibilidade,
teve que trabalhar pela CASSAÇÃO do deputado. Embora senador e a
votação fosse na Câmara, foi requisitadíssimo, principalmente
pelo carrasco-mor, o Ministro da Justiça, Gama e Silva.
Queriam terminar tudo
no dia 12 mesmo, Costa e Silva estava no Rio, no Laranjeiras, deu
ordens ao Chefe da Casa Militar, Jayme Portela, D-U-R-Í-S-S-I-M-O:
“Não quero ver ninguém, nem atender telefone”. (Ainda não
havia celular, claro).
Costa e Silva ficou no
segundo andar, com dois amigos civis, sem cargos no governo. Viu
filmes (bangue-bangue, que adorava) até por volta de 3 da manhã.
Não dormiu, lógico, quem dormiria com quase todos os oficiais das
três Armas contra ele?
Só atendia o general
Portela, que lhe dizia invariavelmente: “Gama e Silva precisa falar
com o senhor, com urgência”. O presidente desligava, ou dizia:
“Amanhã, amanhã resolveremos”. O Ministério da Justiça, ponta
de lança dos militares mais ansiosos ou exaltados, não parava de
agir, se considerava o mentor de tudo.
No dia seguinte, 13 de
dezembro, Costa e Silva determinou ao Chefe da Casa Militar, que
convocasse reunião ministerial no próprio Laranjeiras, às 13
horas. Discutiram pouco, não houve debate, todos estavam A FAVOR,
mesmo alguns que no passado combateram ditaduras ostensivas ou não.
Costa e Silva,
surpreendentemente ou para se vingar, já que sabia que estava
praticamente deposto pelo Alto Comando, dizia o nome do Ministro e
perguntava: “Como vota o senhor Ministro?”. Só o coronel
Passarinho, narcisista e exibicionista, fingiu que pensava, demorou
um pouco, e explodiu: “Presidente, VOTO A FAVOR do Ato
Institucional, ÀS FAVAS COMO OS ESCRÚPULOS”.
O documento já estava
redigido, Costa e Silva assinou tudo, o que fazer? Às 20,30, em
cadeia da Agência Nacional, o AI-5 foi lido pelo locutor Alberto
Cury, irmão de Jorge Cury e do cantor Ivon Cury. Era o fim de um
período, a imposição de um regime que sacrificou a todos,
incluindo o próprio presidente. Que não sobreviveu, morreria menos
de um ano depois, já fora considerado INCAPACITADO.
Eu estava em casa,
naquela época existiam jornais MATUTINOS e VESPERTINOS. Os matutinos
saíam entre meia-noite e 1 da madrugada, os vespertinos (Tribuna,
Globo, Correio da Noite) começavam a circular ao meio-dia.
Trabalhávamos até as 6 da tarde, voltávamos às 6 da manhã,
fechávamos, rodávamos e circulávamos, por volta de meio dia.
Ouvi a leitura do
documento, comecei a me vestir. Rosinha me perguntou: “Você acabou
de chegar, vai sair?”. Abraçando-a carinhosamente (o que até hoje
é redundância ou pleonasmo), respondi: “Serei preso
imediatamente, prefiro ser preso no jornal. Além do mais, tenho que
tomar várias providências.
Já ia saindo, o
telefone tocou, Rosinha atendeu, disse: “Helio, é o Carlos
Lacerda”. Peguei o telefone, disse: “Você talvez seja a única
pessoa que eu atenderia, estou indo para o jornal, no Rio devo ser o
primeiro a ser preso, a Tribuna fica a 100 metros da Polícia
Central”. O ex-governador, simplesmente: “E eu?”.
Respondi sem qualquer
dúvida: “Carlos, você será preso e cassado”. Aí, do outro
lado, um rugido e a resposta: “Não vou ser preso nem cassado, você
está acostumado a adivinhar e acertar, mas essa você vai errar
completamente”. Desliguei, o que fazer?
Cheguei ao jornal por
volta das 10 horas da noite. Às 11 horas e quase 45 minutos, fui
preso. Levado para a Polícia Central, quando entrava naquele
edifício tétrico e assustador, o relógio macabro marcava
exatamente meia noite, os dois ponteiros se divertiam. O repórter
não demonstrava, mas como em outras oportunidades, assustadíssimo e
com medo, mas não deixando ninguém perceber.
Me levaram para o
Regimento Caetano de Farias, fiquei satisfeitíssimo: eu não fora o
primeiro a ser preso, entrei num matagal sujíssimo (mas enorme, o
que era ótimo), de lá do fundo surgiu a figura de Osvaldo Peralva.
Grande jornalista, Redator-Chefe (como se chamava na época) do
“Correio da Manhã”, intimíssimo amigo, ficamos conversando, não
havia onde dormir. Até a manhã do dia seguinte, já 14, não
apareceu mais ninguém.
Às 8 horas da manhã,
quem chegava, evidentemente preso? Carlos Lacerda. Me abraçou como
se não tivéssemos falado na véspera, garantiu: “Está bem,
Helio, você acertou pela metade, estou preso mas NÃO SEREI CASSADO.
Respondi sem
hostilidade, mas sem mascarar a realidade: “Está certo, trouxeram
você para cá, apenas por diversão”.
Fomos todos levados
para uma estrebaria (o quartel era um centro hípico), dormíamos no
chão, não era o mais importante. Chegaram dois advogados que não
conhecíamos. Às duas da tarde, uma festa: a entrada de Mario Lago,
que foi preso no Teatro Princesa Isabel. Estava de saiote (fazia um
personagem da Escócia), foi logo dizendo: “Aqui só quem me
conhece é o Helio e o Carlos Lacerda, estou vestido assim, mas não
sou viado”. (Na época era dito assim mesmo).
Eu e Lacerda tivemos
momentos ótimos, de recordações, e péssimos, de crítica minha a
ele. Lacerda só ficou do dia 14 até 22, eu, Peralva e Mário Lago
ficamos até o dia 6 de janeiro, “Dia de Reis”. Os ditadores,
geralmente, entre uma tortura e outra, são muito católicos.
Carlos Lacerda mandou
um filho falar com o Cardeal (amigo dele), outro conversar com o
general Sizeno Sarmento (que fora Secretário de Segurança dele
governador), e o terceiro foi a São Paulo ver o que Abreu Sodré,
grande amigo dele (e “governador”) podia fazer.
***
PS – Um dia disse a
ele, que não gostou: “Carlos, preso não pede nem concede nada.
Resiste e pronto”. Passamos Natal e Ano Novo lá, Lacerda não.
PS2 – No dia 30,
soubemos, Lacerda foi cassado, nenhuma surpresa, só para ele. No dia
2 de janeiro de 1969, viajou para a Europa, ficaria lá mais ou menos
3 ou 4 anos. Teve a generosidade de ir se despedir de mim e de Mario
Lago.
PS3 – Nunca mais
participou de nada, voltou em 1973, se enclausurou na Nova Fronteira,
editora que adorava. Nunca mais nos vimos. Morreu em 1977, de forma
estranhíssima, da mesma morte sem explicação válida que atingiu
Juscelino e Jango.
PS4 – Tinha 63 anos.
Na prisão, num momento de calma, confessou: “Vou viajar, só volto
à política para ser presidente”. Morreu dois anos antes da
ANISTIA AMPLA, GERAL E IRRESTRITA.
PS5 – O país paga
até hoje, nunca se reabilitou. Apesar de muitos acreditarem que tudo
vai bem, “e que Dona Dilma será a salvação da lavoura”, como
se dizia antigamente.”
fonte:Tribuna da imprensa
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