Entrevista especial com Kátia Lopes
por Graziela Maria Wolfart
Ao refletir sobre um protocolo para a exportação de jumentos do Nordeste para a China, a veterinária e agrônoma alerta para os riscos de maus tratos com os animais: “se deixar do jeito que está com certeza teremos um dos maiores símbolos do Nordeste ameaçado de extinção”, alerta.
Uma
polêmica tem envolvido o povo do Nordeste nos últimos dias, e que tem
sido pouco repercutida, apesar da gravidade do tema. Trata-se do
protocolo de intenções assinado entre a China e a Secretaria de
Agricultura do Rio Grande do Norte para a exportação de jumentos. Fala-se em cerca de 300 mil jegues por ano que seriam enviados do Nordeste para a China.
Entre tantos que têm se manifestado contrariamente está a veterinária de Mossoró-RN, Kátia Lopes, que preside a ONG Defesa da Natureza. Em entrevista concedida por telefone para a IHU On-Line
ela oferece vários elementos para análise e reflexão acerca deste
protocolo, contextualizando-o na percepção regional: “temos uma estima
muito grande aqui no Nordeste pelo jumento. Devemos muito a esse animal.
Na formação da nossa civilização muita gente defende que foi no lombo
de um jumento que a nação nordestina nasceu. Ele é o símbolo da
resistência da nossa região. E foi por isso que compramos essa briga.
Muitas vezes a mídia ou algumas pessoas nos acusam de estar brigando
apenas pela exportação de carne. Mas não é por isso. Estamos brigando
pelo contexto do documento, que só fala desse possível acordo entre uma
empresa chinesa com o Brasil para exportação desses animais para
utilização da carne, produtos e principalmente – o que nos fere mais – a
utilização desses animais vivos em testes de cosméticos lá”.
Kátia explica que “o jumento é um dos símbolos da resistência do
nordestino, porque é um animal pequeno e forte como poucos, com um
sistema imunológico fantástico, que se alimenta com muito pouco e que se
adaptou ao nosso clima. Todo nordestino deveria se orgulhar desse
animalzinho que é nosso símbolo: pequeno, resistente, sofredor e forte”.
Kátia Regina Freire Lopes possui graduação em
Agronomia e em Medicina Veterinária e mestrado em Ciência Animal pela
Universidade Federal Rural do Semiárido. É sócio-fundadora da ONG Defesa
da Natureza e dos Animais, de Mossoró-RN (mais informações em facebook.com/ongdna).
Confira a entrevista.
IHU On-Line –
A Secretaria de Agricultura do Rio Grande do Norte assinou um protocolo
de intenções para exportar jumentos para a China. Qual é a origem, o
conteúdo e o contexto deste documento?
Kátia Lopes – Nós tomamos conhecimento deste
documento falando apenas e exclusivamente da exportação de carne. A
nossa curiosidade era justamente saber como esses animais estavam sendo
criados, até sob o viés da saúde pública, porque é comum o aparecimento
de problemas com algumas exportações de carne em relação a doenças ou a
higiene. Então, começamos a prestar atenção de onde saíam esses animais.
No final, conseguimos uma cópia deste documento. E ele nos assustou
exatamente porque não se trata apenas da exportação da carne. Seria até
hipocrisia da nossa parte brigar pela não exportação da carne do
jumento, quando temos exportação de frangos, de bois, de suínos e outras
espécies cuja carne é exportada. O problema deste documento é que, além
da exportação da carne e dos produtos oriundos dela, vem exatamente a
frase: “animais vivos para livre secção na utilização de cosméticos”. E
aí a preocupação é ainda maior, porque se nós aqui no Brasil já não
estamos mais aceitando esse tipo de tratamento com os animais dentro do
nosso país, como vamos exportá-los exatamente para esses procedimentos?
Outro ponto é: como esses animais seriam capturados aqui para serem
levados até lá? De navio, de avião? Como seria o manejo? E o sofrimento
até chegar lá? Mesmo porque já sabemos que a utilização de alguns
animais para testes de alguns produtos é inviável. Muitos medicamentos
que são bons para animais dão problemas para a espécie humana. Existem
milhares de maneiras de testar medicamentos e cosméticos que não sejam
aplicados em animais.
A estima pelo jumento
Temos uma estima muito grande aqui no Nordeste pelo jumento. Devemos
muito a esse animal. Na formação da nossa civilização muita gente
defende que foi no lombo de um jumento que a nação nordestina nasceu.
Ele é o símbolo da resistência da nossa região. E foi por isso que
compramos essa briga. Muitas vezes a mídia ou algumas pessoas nos acusam
de estar brigando apenas pela exportação de carne. Mas não é por isso.
Estamos brigando pelo contexto do documento, que só fala desse possível
acordo entre uma empresa chinesa com o Brasil para exportação desses
animais para utilização da carne, produtos e principalmente – o que nos
fere mais – a utilização desses animais vivos em testes de cosméticos
lá. Aqui, nós não temos mais criação de jumentos como se tinha
antigamente. Infelizmente, temos pessoas que abrem a boca para dizer que
o jumento perdeu toda a sua utilidade. Temos animais aqui
caracterizados como selvagens (cinco gerações sem chegar perto de
humanos). Por isso é complicado falar em “preço de mercado” quando se
refere aos jumentos, pois não existe o comércio deles aqui. Então,
muitas perguntas estão ficando sem resposta.
IHU On-Line – Um dos
argumentos do governo norte-rio-grandense é de que os jumentos estão
perdendo espaço na lida do campo no Nordeste, invadem as estradas e
provocam acidentes e se tornaram um problema em vários municípios. É um
fato?
Kátia Lopes – Na verdade, ocorrem alguns acidentes
nas estradas provocados por animais. Isso é fato e não acontece apenas
aqui. Cada região tem animais característicos que terminam provocando
acidentes. Segundo dados da Polícia Rodoviária da nossa região, o índice
de acidentes provocados por animais é baixo, mas um só já seria motivo
para nos preocuparmos. Entre estes, estão envolvidos bovinos, caprinos,
ovinos, cães, raposas, cavalos e, claro, jumentos. O fato é que os
jumentos ficam mais em evidência porque acabam abandonados nas estradas.
É até vergonhoso para nossa espécie dizer isso, mas quando um ovino, um
bovino ou um caprino são atropelados, as pessoas pegam, colocam dentro
da mala e levam para fazer churrasco. Por isso que ficam mais evidentes
os acidentes com jumentos. No Brasil não temos o costume, a cultura, de
comer carne de jumento e de cavalo. A utilidade do jumento fica sendo
questionada justamente por isso. Em segundo lugar, a lida dele no campo
foi substituída, de uma certa forma, pela moto.
IHU On-Line – Quais são as alternativas para o uso do jumento na região?
Kátia Lopes – Há muitas utilidades. Queremos
inclusive tocar adiante um projeto de ecoterapia utilizando jumentos,
tanto para lazer e descanso como para fins terapêuticos, por exemplo, na
fisioterapia. Será a “jumentoterapia”.
IHU On-Line – Como os agricultores e pequenos proprietários têm se posicionado nesse debate?
Kátia Lopes – O que temos é falta de informação.
Quando a população chega a tomar conhecimento dos detalhes do protocolo,
de que a comercialização não será apenas da carne do animal, fica
revoltada. Temos recebido ligações de denúncias de animais abatidos no
tiro, de pessoas que brincam de “tiro ao alvo” com jumentos, outros
pegam jumentos para treinamento de vaquejar, em lugar de utilizar o boi.
Então, percebemos que a população está do lado do jumento. Infelizmente
uma pequena parte, que tem acesso à mídia, faz um marketing negativo em
relação à espécie e acaba sendo a ideia em foco. Mas o pessoal já está
mudando de opinião, a imprensa local também está colaborando com a
divulgação das informações, exatamente para proteger essa espécie.
Porque se deixar do jeito que está com certeza teremos um dos maiores
símbolos do Nordeste ameaçado de extinção.
IHU On-Line – Nesse momento
como estão as negociações entre o governo do Rio Grande do Norte e a
China? O protocolo avançou ou, em função dos protestos, houve um recuo?
Kátia Lopes – Aqui entra a história do que realmente
ficamos sabendo. Já tivemos reuniões e protestos e nos foi passado que,
por enquanto, trata-se apenas de um protocolo de intenções, que não foi
efetivado ainda. Mas é um protocolo que vem desde 2004. No entanto, só
agora tomamos conhecimento. Ainda está tudo “na surdina”. Oficialmente a
posição do governo é de que se trata apenas de um protocolo de
intenções. Estamos sob alerta.
IHU On-Line – Quais são os maus tratos que podem sofrer os jumentos neste processo?
Kátia Lopes – Primeiro, é preciso saber como seria a
captura desses animais. Oficialmente não temos grandes criadores de
jumentos aqui no Nordeste, nem no Brasil como um todo. Os chineses estão
querendo 300 mil jumentos por ano. Não temos sequer população para
enviar e manter essa necessidade. E essa seria uma primeira falha, que
não permite nem o funcionamento do protocolo.
O mau trato começaria pelos jumentos na estrada. Desde o estresse da
captura até o armazenamento e manutenção desses animais até o embarque.
Como seriam esses embarques? Geralmente por navio, em função de ser uma
carga muito pesada para o avião. Quanto tempo esses animais ficarão até
chegar na China? Como seria esse manejo dentro dos contêineres? O
jumento e o equídeo, de forma geral, tem o metabolismo muito sensível,
apesar de ser uma espécie mais resistente, ainda tem particularidades
fisiológicas, precisando de alimentação e exercícios. Chegando lá,
seriam submetidos a testes de cosméticos, ou seja, esses animais seriam
submetidos às mais perversas práticas possíveis: desde arrancar pálpebra
para ficar pingando colírio no olho, ou fazer feridas no corpo para ter
contato direto da substância com a pele, até ingestão de substâncias. O
campo de concentração nazista seria uma colônia de férias perto do que
esses testes podem fazer a esses animais. Isso nos assusta muito.
IHU On-Line – Qual é o lugar do jumento na história nordestina? Qual é a sua simbologia? O seu valor econômico e cultural?
Kátia Lopes – Por mais que eu fale, não vou
conseguir mensurar a importância do jumento para nossa cultura. Desde
poemas a quadros históricos e monumentos na nossa região, o jumento está
sempre presente. A nação nordestina foi moldada no lombo de um jumento.
Tem o fator religioso também, quando lembramos de José e Maria, grávida, em cima de um jumentinho. E quando entrou em Jerusalém, Jesus estava
no lombo de um jumentinho. Podemos citar também o fator econômico, pois
foi um animal que levou a nossa sociedade e a nossa região à devastação
da caatinga bruta, nos seus primórdios, ajudando no transporte de carga
e a arar a terra. O jumento é um dos símbolos da resistência do
nordestino, porque é um animal pequeno e forte como poucos, com um
sistema imunológico fantástico, que se alimenta com muito pouco e que se
adaptou ao nosso clima. Todo nordestino deveria se orgulhar desse
animalzinho que é nosso símbolo: pequeno, resistente, sofredor e forte.
Nenhum comentário:
Postar um comentário