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Torre de Babel feita com 35 mil livros em Buenos Aires pela artista plástica argentina Marta Minujin.
Pablo Ortellado apóia a Livros de Humanas: Compartilhar livro é direito
[Extraído de http://www.gpopai.org/ortellado/2012/06/compartilhar-livro-e-direito/]
Compartilhar livro é direito,
por Pablo Ortellado
O
fechamento do site Livros de Humanas, que indexava versões digitais de
livros de humanidades para compartilhamento entre usuários, tem causado
surpresa, indignação e controvérsia. Criado e mantido por estudantes
universitários que não tinham meios econômicos para comprar livros, o
site foi fechado após a Associação Brasileira de Direitos Reprográficos
(que representa várias grandes editoras) ajuizar uma ação demandando a
retirada dos livros e o pagamento de multa por supostos danos. Disputa
judicial à parte, surpreendi-me com o fato de muitos colegas da
comunidade acadêmica não estarem suficientemente esclarecidos sobre a
profunda injustiça desta ação e não terem ainda notado a admirável
coragem do jovem mantenedor do site em defender o seu projeto sob o
risco de um grande ônus econômico.
Por isso, gostaria de listar,
muito brevemente alguns fatos relevantes para se entender em toda a sua
complexidade os conflitos entre o direito público de acesso às obras e o
direito patrimonial de editoras e autores. Esses fatos foram levantados
em diversos estudos realizados nos últimos anos pelo grupo de pesquisa
que coordeno, o GPoPAI – Grupo de Pesquisa em Políticas Públicas para o
Acesso à Informação:
* Os estudantes não têm meios econômicos para comprar os livros.A
afirmação é trivial e de fácil comprovação empírica. Qualquer estudante
pode somar os preços de livros de leitura obrigatória das bibliografias
de curso de todas as disciplinas no decorrer de um ano. Em pesquisa
mais sistemática que realizamos em 2008, o custo em 10 diferentes cursos
da minha unidade na USP variava entre R$ 3.344,75 e R$ 5.810,46. Para
mais de 70% dos estudantes, esse valor era superior à renda mensal de
toda a família.
* As bibliotecas não têm os meios econômicos para comprar os livros.
Como os estudantes não têm nem remotamente os meios para comprar os
livros necessários, poder-se-ia esperar que as bibliotecas o fizessem.
Tomemos o exemplo acima, da minha unidade, apenas para fins de
argumentação. Para simplificar o cálculo, podemos estimar um custo médio
de aquisição anual de livros por aluno de 5 mil reais no varejo, ou de
cerca de 3 mil reais no atacado (já que estamos falando de compras de
grande escala). Supondo que os alunos pudessem comprar 30% dos livros, a
aquisição dos 70% restante custaria à unidade 8,4 milhões de reais.
Como nosso orçamento anual para a compra de livros é de cerca de 300 mil
reais, a aquisição apenas dos livros de leitura obrigatória da
graduação tomaria 28 longos anos de orçamento inteiramente dedicado –
sem qualquer compra de livros de literatura complementar, de pesquisa ou
de pós-graduação. Não preciso dizer que muito antes do final dos 28
anos, a literatura estaria completamente obsoleta.
* Um terço da base bibliográfica está esgotada.
Levantamento em 36 instituições e 6 diferentes áreas do conhecimento
que fizemos na pesquisa de 2008, assim como levantamentos posteriores
que realizamos em diferentes bibliotecas da USP mostram recorrente e
homogeneamente, em todas as áreas do conhecimento, que de 25 a 35% dos
livros requeridos pelas disciplinas estão esgotados – e, portanto, não
podem ser adquiridos no mercado. Como não podem ser comprados, esses
livros só podem ser utilizados se fazemos deles cópias reprográficas ou
digitais.
* A educação é um direito. O capítulo
sobre limitações da nossa lei de direito autoral (9.610/1998) já prevê
casos nos quais é permitido o uso de obras sem autorização e sem o
pagamento de royalties para fins de interesse público. Os casos ali
citados (art. 46) podem ser estendidos por analogia a outros, já que uma
decisão recente do STJ considerou-os apenas exemplificativos. Além
disso, o direito à educação (e os livros são meios essenciais para a
educação) é um direito constitucional (art. 6).
* A repressão às fotocópias e ao compartilhamento é predominantemente extrajudicial.
Como um estudo recente coordenado pela Universidade de Columbia
mostrou, o combate à pirataria nas “economias emergentes” é
predominantemente extrajudicial. Esse combate consiste no fechamento das
inciativas “piratas” e no confisco de materiais sem que o mérito das
acusações de violação de direito autoral seja julgado no judiciário.
Como há enorme desproporção de recursos entre a indústria do direito
autoral e os acusados, toda a questão é resolvida com a atividade
repressiva e/ou com a ameaça de judicialização (que os pequenos não
conseguem enfrentar). Isso permite que os detentores de direito imponham
sua visão sobre o direito autoral, frequentemente de maneira abusiva,
sem que o público ou os supostos “piratas” tenham condições de defesa. É
exatamente essa situação assimétrica que o mantenedor do site está
corajosa e pioneiramente enfrentando.
* Os livros científicos de humanas são financiados predominantemente com recursos públicos.
O mercado de livros científicos de humanidades é financiado com
recursos públicos de pelo menos quatro maneiras: 1) como nosso estudo de
2008 mostrou, 86% dos autores brasileiros dos livros adotados por
cursos científicos de humanidades trabalhavam em regime de dedicação
integral à pesquisa e docência quando a primeira edição do livro foi
lançada, de maneira que o livro é um subproduto de uma atividade
financiada exclusivamente com recursos públicos; 2) além do salário dos
autores, os custos da pesquisa (laboratórios, bolsistas etc) que gerou o
livro também são predominantemente públicos, já que o Brasil tem um
padrão de financiamento público de pesquisa que oscila em torno de 90%
dos recursos; 3) o setor livreiro tem imunidade tributária, cujos custos
para o tesouro foram estimados em cerca de um bilhão de reais anuais;
4) cerca de 10% do mercado de livros técnico-científicos é de editoras
públicas, principalmente universitárias. Isso significa que os custos de
produção dos livros já foram pagos pelo público. No entanto,
na interpretação da ABDR, este público deveria agora ser obrigado a
comprar novamente aquilo que ele já pagou para produzir.
* Os autores de livros não têm um interesse econômico relevante.Isso
deveria ser autoevidente, mas nem sempre é. No levantamento que fizemos
com um dos departamentos de humanidades melhor avaliado pela CAPES,
estimamos em 100 reais o pagamento mensal de royalties dos autores pelos
livros lançados durante o ano. No entanto, com exceção de um, todos os
autores receberam apenas cópias dos livros, ao invés dos royalties. Se
isso acontece no topo da pirâmide de prestígio acadêmico, os valores
recebidos por autores da base da pirâmide tende a ser ainda mais
irrelevante.
Se os estudantes precisam dos livros para assegurar
seu direito constitucional à educação; se eles não têm os meios
econômicos para comprá-los; se um terço dos livros está esgotado; se os
livros são financiados majoritariamente com recursos públicos; se os
autores não recebem royalties ou se os royalties são irrelevantes; se a
ABDR é intransigente e usa do poder econômico para impor uma visão
repressiva, unilateral e injusta do direito autoral – não seria o caso
de apoiarmos o site Livros de Humanas e começarmos uma campanha contra
os abusos da ABDR?
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