domingo, 24 de junho de 2012

Mostrar para Esconder: O Papel da Mídia na Construção do Conformismo - Parte 01

buscado no Almas Corsárias


Autor: Emílio Gennari

Apresentação:

A arma mais poderosa nas mãos do opressor
é a mente do oprimido”. 
Steve Biko.

Por que o povo não reage?
Por que não enxerga o que passa diariamente sob seus olhos? 
Por que a exploração não aumenta sua indignação e tudo parece tão rotineiro a ponto de ser considerado normal? 
Por que, numa época em que é facilitado o acesso à informação, as pessoas revelam-se incapazes de entender o que está ocorrendo? Que elementos conseguem levar os marginalizados a condenarem os que lutam em seu meio?
Perguntas como estas nascem espontaneamente diante da crescente falta de envolvimento dos que, por sua situação, deveriam ser os primeiros a se engajarem nos movimentos que buscam derrotar a exploração.
Seria ótimo se o estudo que segue pudesse apresentar um diagnóstico completo e os antídotos às investidas da elite que cimentam o conformismo e o consenso em volta de suas ideias e valores, mas nossas reflexões são mais modestas. Elas se focam nos aspectos que anestesiam a indignação e desativam a capacidade de pensar, esta atividade subversiva que pode transformar pacatos cidadãos em pessoas que questionam a ordem e se recusam a servi-la.
Não são poucos os autores que se debruçaram sobre isso e ofereceram pistas de reflexão, respostas inquietantes e, obviamente, novas perguntas. A título de exemplo, queremos lembrar aqui de um artigo de George Orwell, publicado no jornal A Tribuna, em janeiro de 1946.
Numa época em que o capitalismo europeu ensaiava os primeiros passos para se reerguer das ruínas da segunda guerra mundial em luta aberta contra a influência do socialismo na Europa Ocidental, Orwell percebe que o rádio tem um novo papel na sociedade. Agora, escreve ele, ‘em muitíssimos lares ingleses, o rádio está literalmente sempre ligado, ainda que seja manipulado de vez em quando para se ter certeza de que só vai transmitir música ligeira. Conheço pessoas que deixam o rádio a tocar durante as refeições e continuam ao mesmo tempo a conversar suficientemente alto para que as vozes e a música se anulem reciprocamente.
Isto obedece a um objetivo bem definido. A música impede que a conversa se torne séria ou sequer coerente, enquanto o barulho das vozes afasta qualquer possibilidade de ouvir atentamente a música e, assim, não dá ensejo a que surja aquela coisa aterradora, o pensamento’. Ao subjugar as pessoas na audição das mesmas futilidades, o rádio proporciona as condições para moldá-las com facilidade, o que faz o escritor concluir que ‘muito daquilo a que hoje chamam de prazer é simplesmente um esforço para destruir a consciência’. (1)
Não sabemos o que Orwell diria diante dos atuais programas televisivos, da internet ou dos milhões de pessoas que, ao saírem de casa, colocam um fone de ouvidos a fim de que suas músicas favoritas as acompanhem, em aberta disputa com os ruídos da cidade. Com certeza, reafirmaria o quanto isso impede a conversa, o diálogo, o contato com os demais, a capacidade de ouvir a cidade e de prestar atenção à vida que encerra, com suas contradições e mudanças em andamento. Talvez, iria menear a cabeça diante das pesquisas que comprovam quanto esses autômatos humanos ligados a um fone de ouvidos percorrem ruas e avenidas, literalmente, sem ver o que está a seu lado e, portanto, com uma redução drástica de sua capacidade de perceber o ambiente em que se movimentam.
Mas, provavelmente, ele também ficaria intrigado com uma questão: como é possível que as imagens de um acontecimento sejam capazes de esconder a realidade que o produziu? Em outras palavras, quais são os mecanismos que permitem ao indivíduo se considerar uma pessoa informada ao mesmo tempo em que é desativada sua capacidade de reflexão?
Reconhecemos humildemente que não temos o talento de George Orwell para ajudar na empreitada que aqui se inicia. Por isso, não
dispensamos a intervenção da coruja Nádia para fazer com que nossas reflexões se tornem acessíveis à classe trabalhadora e, sobretudo, aos homens e mulheres que, em seu meio, se mantêm firmes na luta para fazer com que haja tudo para todos.

(1) As citações foram extraídas do livro de João Bernardo, Democracia Totalitária, pg. 66.


Introdução

Noite de garoa. Um vento frio faz a umidade penetrar no que encontra pelo caminho. Nas calçadas, os pedestres apressam o passo cansado de quem volta do trabalho. Uma após a outra, as casas recebem moradores cujo corpo anseia por um abrigo seguro. Um bom banho, uma janta quentinha e um pouco de televisão são programa obrigatório para esquecer as amarguras do dia, rir da própria situação e torcer para que o amanhã traga o que o presente teima em negar. No aconchego do sofá, um homem corpulento não tira os olhos da televisão. A sequência ininterrupta de imagens, sons e comentários captura sua atenção e lhe proporciona um visível sentimento de satisfação. Da economia ao futebol, tudo é recebido sem reservas, como se as mensagens captadas pelos sentidos fossem suficientes para compreender acontecimentos próximos e distantes, grávidos de consequências ou banais.
A sensação de estar informado cresce com o passar dos minutos e, com ela, a certeza de que, no dia seguinte, será possível fazer valer a própria razão nas conversas com os conhecidos. O simples fato de que “passou na TV”, bastará para comprovar que se trata de algo que “só pode ser assim mesmo”.
Silenciosa, uma pequena coruja deixa a cozinha e pousa suave na almofada ao lado do homem que, entre a estranheza e a provocação, a recebe com um “Que milagre, Nádia! Você veio assistir TV hoje?!?”, capaz de infundir constrangimento em qualquer mortal. Sem se deixar intimidar, a ave pisca os olhos e acompanha atentamente a reportagem em andamento. O silêncio entre os dois seres só é rompido pela fala dos jornalistas e pelos últimos ruídos que antecedem o mergulhar da cidade no sono da noite.
Na hora dos comerciais, o homem expressa com a cabeça sua aprovação aos comentários enquanto os lábios soltam satisfeitos um “É isso mesmo!” que confirma pomposamente o que havia sido antecipado pelos gestos.
- “Pois eu nunca vi tanta bobagem em pouco tempo!”, afirma decidida Nádia ao fitar o seu ouvinte.
- “Então, fique sabendo que eles estão certos sim. Eu já ouvi a mesma coisa no rádio e em outro canal de TV, o que faz com que só possa ser verdade!”.
- “O que os bilhões de neurônio de sua cabeça humana não o ajudam a entender – responde a coruja ao apontar a asa para a testa do seu interlocutor – é que uma tolice repetida por um milhão de pessoas, estampada em todos os jornais e multiplicada sem fim pelas ondas do rádio e da televisão continua sendo uma tolice. Ainda que muitos se convençam estar diante de algo profundo e valioso pelo fato de que há mais gente reafirmando a importância da tolice, não significa que esta ajude a iluminar a realidade e menos ainda, a desvendar a teia de relações que cada acontecimento encerra”.
- “Mas, Nádia, você mesma viu as imagens que meus olhos viram. Como pode negar algo tão evidente?”, insinua o homem com vitorioso ar de superioridade.
- “O problema, querido secretário, é que para você basta ver para crer e, sobretudo, para parar de pensar. O que passa na tela da TV reflete apenas momentos da realidade cuidadosamente escolhidos entre muitos outros. Por isso, o que é mostrado pode ser justamente o que esconde a compreensão do real e impede que enxergue além das aparências. As imagens que se impõem como verdade indiscutível aos seus olhos podem não passar de jogos de luzes que cegam sua reflexão na exata medida em que você tem a sensação de acompanhar e entender o que está ocorrendo”.
- “Confesso que agora fiquei confuso...”, admite o humano ao coçar a cabeça.
- “Não é fácil, mas posso explicar”, convida a ave ao voar para a mesa e sinalizar com a cabeça para os papéis de rascunho desordenadamente amontoados ao lado do telefone.
- “Só me faltava essa: ser convencido por um bicho de que estou cego justo quando vejo as coisas acontecerem”, resmunga o secretário ao deixar vagarosamente o sofá.
A coruja sorri, limpa a garganta e, sem titubear, ordena:
- “Escreva! Capítulo primeiro...”

1. MÍDIA: IMPARCIALIDADE E ANESTESIA DO PENSAMENTO

Se você é neutro em situações de injustiça, 
você escolheu o lado do opressor”.
Desmond Tutu.

Com o queixo apoiado na ponta da asa esquerda, Nádia permanece pensativa. Os leves movimentos das plumas que cobrem o seu rosto revelam o esforço de ordenar os elementos que permitirão compreender como a mídia consegue o que, aparentemente, não passa de um paradoxo: mostrar para esconder. Finalmente... Um rápido piscar de olhos... Um longo suspiro... E, com uma expressão de satisfação que ilumina o rosto, diz:
- “Boa parte das pessoas que criticam os meios de comunicação está convencida de que, por trás de cada matéria, reportagem, programa de rádio ou televisão há especialistas que passam horas a fio tramando como enganar o povo com planos maquiavélicos que permitirão à elite fazer a cabeça das pessoas. Na verdade, ainda que a mídia não dispense o trabalho de profissionais gabaritados nas mais diversas áreas do conhecimento, os mecanismos que proporcionam sua penetração em corações e mentes continuam sendo razoavelmente simples. A peça-chave desta façanha é conseguir ganhar a confiança do público ao qual se destinam as mensagens de um determinado meio de comunicação. O ser humano, de fato, só aprende daqueles aos quais dá o direito de lhe ensinar e, justamente por isso, a confiança no interlocutor é o primeiro passo para abrir o diálogo com ouvintes, leitores e telespectadores. Mas a confiabilidade da mídia não se baseia apenas em jornalistas, apresentadores ou atores competentes e convincentes. A capacidade de provocar reações que construam um vínculo de confiança com o público depende fundamentalmente do saber lidar com o senso comum, ou seja, de entrar em sintonia com esse conjunto de explicações acerca da vida, da história e do cotidiano que resulta da percepção imediata da realidade conforme esta surge aos olhos dos diferentes setores sociais. É a partir das aparências, e não do pensamento crítico, que as pessoas vão forjando sua maneira de enxergar o dia-a-dia de forma contraditória e, não poucas vezes, bizarra. Por parecerem verdades que nascem e se aplicam espontaneamente à realidade, as ideias que moldam e fazem avançar o senso comum são acessíveis à consciência da maioria que se contenta com seu conteúdo pelo simples fato de que este é facilmente constatado pelos sentidos.
Por este caminho, cada agrupamento humano forja sua maneira de ver e interpretar o mundo, o tempo, o espaço e as relações sociais do seu meio sem perceber o emaranhado de interesses e forças que dá origem aos acontecimentos e move a história pela bússola do lucro. Com base neste mecanismo elementar, a elite consolida e aprimora tanto seu poder real, alicerçado nas relações de propriedade e acumulação, como simbólico, a maneira pela qual deseja que as pessoas leiam o dia-a-dia da sociedade e passem a orientar o seu cotidiano. Assim, seus valores, ideias, comportamentos e formas de interpretar a vida são universalizados em atitudes e pensamentos simples que acabam sendo assimilados e reproduzidos pela própria população. É o caso, por exemplo, dos provérbios que, ao serem vistos por gerações diferentes como algo que dá sentido à vida, emana respeito e ajuda as pessoas a se conformarem com a felicidade possível, ganharam status de sabedoria popular ao mesmo tempo em que ocultam sua origem
nos interesses da elite. Não é verdade que, sobretudo em momentos de crise econômica, ouvimos repetir à exaustão que é melhor pingar do que secar?
De que é melhor ter um pássaro na mão do que dois voando?
Que o pouco com Deus é muito e o muito sem Deus é nada?
Que Deus ajuda quem cedo madruga, que a corda sempre arrebenta do lado mais fraco e assim por diante?
Quantas vezes não acreditamos se tratar de algo que nasceu no meio do povo exatamente por passar de pai pra filho ou por vir como conselho de colegas, amigos, familiares, chefes, ou simples conhecidos?
Nunca paramos pra pensar que a grande maioria deles convida à resignação, a abrir mão de direitos, a se contentar com pouco na vaga esperança de que amanhã será melhor; enfim, a assumir atitudes que negam a luta e proporcionam a paz social, este elemento tão importante para que a exploração possa ser aprofundada sem reações significativas de suas vítimas. É esta falsa sabedoria que encontramos diluída ou disfarçada no conteúdo de entrevistas e reportagens como postura sábia e oportuna diante das dificuldades do momento ou como convite a contornar com o velho, paciente e inesgotável jeitinho o que deveria ser denunciado e rejeitado. Reafirmada pela mídia em várias formas e contextos, raramente conseguimos perceber que a trilha apontada pela quase totalidade dos provérbios é a melhor e mais eficiente de convencer a não enfrentar coletivamente as injustiças e se conformar com a resignação de quem se depara com um destino contra o qual não adianta teimar, mas só esperar que o tempo se encarregue de levar embora.
A elite dialoga com o senso comum com a simplicidade e o candor de um conselho materno, oferecido com a melhor das intenções. Assim ela vai moldando aos poucos a compreensão do mundo que deseja ver consolidada na população sem provocar rejeições significativas e sem levantar suspeitas. Ao reafirmar e fazer avançar na classe trabalhadora suas ideias, valores, comportamentos e critérios de interpretação da vida em sociedade, a minoria que tem tudo constrói um vínculo de confiança na medida em que não contradiz e dá continuidade ao que parece natural e justo aos olhos do povo simples, devidamente adestrado nas diretrizes das gerações anteriores. Quando a realidade exige mudanças, a elite, então, direciona, imperceptível e constantemente, uma determinada forma de ler os fenômenos sociais para que esta seja percebida e assimilada como algo necessário para entender o cotidiano e preparar o futuro.
O segredo, se é que algo tão evidente pode ser chamado com este nome, está em fazer com que, através de seus tradutores na mídia, a linguagem da minoria se sintonize e ecoe entre as pessoas cuja forma de compreender a realidade se vê parcial ou totalmente espelhada nas mensagens recebidas. Para concretizar esta identidade dinâmica não é necessário ultrapassar o nível das aparências que serve de base à elaboração e consolidação do senso comum. Basta incorporar parte das suas ideias e fazê-las avançar lentamente com um comentário discreto, uma legenda que orienta a leitura de uma foto ou uma fala que leve a interpretar as imagens no sentido desejado pelo meio de comunicação. Desta forma, o homem-massa não se sente menosprezado e criticado na simplicidade de sua visão de mundo, mas é inicialmente valorizado e confirmado no que seus próprios sentidos já constataram. Isso estimula sua confiança, sua admiração e sua entrega acrítica às mensagens recebidas. Como um peixe se projeta em direção à minhoca sem ver o anzol que a sustenta, o senso comum dificilmente distingue o que é comida do que virou isca para que engula o que não quer e seja levado onde, em suas convicções atuais, não desejaria ir.
Ganha este preciosa sensação do público, e sem forçar a interpretação das aparências além  do que sugere a realidade visível, não é difícil comprovar a suposta imparcialidade, objetividade e neutralidade diante dos acontecimentos.
As aparências sempre dão razão às aparências, por isso não há nada melhor do que privilegiar a descrição dos fatos com base em aspectos que suscitam o consenso e o apoio da maioria. Para que um meio de comunicação se constitua como portador da verdade, então, basta que ele tenha uma atuação baseada na busca da sintonia com o senso comum e seja suficientemente convincente para que o público ao qual se dirige possa ver em suas mensagens a melhor perspectiva na apresentação dos acontecimentos, um serviço que ajuda as pessoas a se manterem atualizadas, a se divertirem, emocionarem e compadecerem no âmbito do que é conhecido por opinião pública. Como as relações que moldam o cotidiano não são visíveis, mas demandam uma reflexão crítica demorada, raramente o indivíduo percebe estar diante de um anzol, ou seja, de uma interpretação da realidade que interessa aos grupos no poder. A sintonia com o senso comum do qual é portador, e que foi historicamente formatada pelas próprias elites,
fixa em sua memória ideias e imagens capazes de produzir a sensação de estar diante da verdade, de que a mídia não mente, ainda que algum apresentador ou comentarista aumente um tantinho as coisas.
Nesta altura, já podemos vislumbrar que, numa sociedade capitalista como a nossa, o uso das aparências supostamente incontestáveis para comprovar a imparcialidade de um meio de comunicação equivale a assumir disfarçadamente o lado do opressor e não a oferecer elementos para que o indivíduo chegue a uma compreensão crítica dos acontecimentos. O que se apresenta como a verdade oculta o fato de que se trata de uma verdade, a do proprietário da mídia em questão. Como membro da elite formadora de opinião, sua ação destina-se a disfarçar o anzol ocultando os vínculos de classe sob o manto das expressões de
senso comum cuja sintonia alimenta a confiança e a receptividade. E, caso seus intermediários com o público (jornalistas, atores, apresentadores, conferencistas, entrevistados, etc.) não deem conta do recado, basta censurá-los ou abrir espaços de liberdade vigiada para que a expressão limitada das discordâncias seja um meio para provar a seriedade da mídia, sem que suas mensagens centrais sofram desgastes.
Ninguém melhor do que um jornalista como Cláudio Abramo, responsável por mudanças de estilo, formatação e conteúdo dos dois maiores jornais paulistas (O Estado de São Paulo e a Folha de São Paulo, da qual foi chefe de redação) para escancarar esta realidade e colocar sob suspeita a própria ideia de liberdade de imprensa, graças à qual seria possível fazer um jornalismo sério e sem amarras. Ele que sempre fez questão de frisar que compreendia e trabalhava de acordo com a natureza do capitalismo, escreve: ‘às vezes me perguntam se sou censurado na Folha. Em minha coluna não sou, mas no resto fui censurado ultimamente, apesar de ter dirigido o jornal durante anos. Tudo bem, é uma empresa particular que não quer que certas coisas sejam ditas; é um direito dela. Ao longo de minha experiência de chefe de redação deixei de publicar coisas dos outros. É um direito lícito do dono. Devo ter suprimido milhares de matérias ao longo de trinta anos. Não podia publicar porque era contra a linha editorial do jornal. Daí não existir liberdade de imprensa para o jornalista; ela existe apenas para o dono’. (2)
A impressão de estarmos diante de algo objetivo, imparcial e parte da opinião pública, ou seja, da expressão do pensamento da maioria, não passa de uma percepção enganadora. Sua origem está justamente na sintonia entre o senso comum das pessoas e os interesses de classe que orientaram sua formação no passado e direcionam a leitura do presente para consolidar o poder real e simbólico dos que têm tudo. Ao esconder os vínculos que fazem da opinião pública nada mais do que uma opinião que se publica e que universaliza entre a população a visão particular de uma classe sobre a sociedade, o senso comum se mantém na direção desejada pelas elites e reafirma para si próprio a impressão de objetividade e confiabilidade na mídia de sua preferência”.
- “O que ainda não consigo entender – admite o secretário perplexo – é a maneira pela qual é possível enganar muita gente sem que ninguém se dê conta...”.
- “Isso é muito fácil!”, continua a coruja sem pestanejar. “Há dois aspectos do senso comum que os meios de comunicação dificilmente esquecem. O primeiro, como vimos acima, é o de se colocar em sintonia com a visão de mundo presente no meio popular como condição para dialogar e dirigir a compreensão das massas na perspectiva desejada pela elite ou pelos setores que são proprietários da mídia em questão.
Ninguém deste grupo costuma bater de frente nas ideias do senso comum não só por serem produto de uma ordem que, até o momento, foi capaz de fazer com que a classe trabalhadora raciocinasse, majoritariamente, com a cabeça das minorias no poder, mas, sobretudo, porque uma crítica aberta contra elas seria tão eficiente quanto um murro em ponta de faca. As pessoas se sentiriam 
menosprezadas e se fechariam em sua compreensão como um ouriço que, para se defender, se recolhe em sua proteção de espinhos.
O segundo aspecto deita raízes no fato de que o consenso da maioria em torno de algo tido como importante por um determinado grupo humano é visto como critério de verdade em relação a uma determinada maneira de enxergar o mundo, a história e os acontecimentos do dia-a-dia. Não por acaso, tanto as pessoas simples, como a mídia, repetem à exaustão que a voz do povo é a voz de Deus. Vimos acima que esse Deus nada mais é a
não ser a expressão de uma minoria que é aceita como verdade absoluta, apesar de estar alicerçada em precisos interesses de classe. Portanto, a tal voz do povo, na ampla maioria das situações, não passa da compreensão dos fatos que os grupos no poder conseguiram socializar entre a população e que ainda pode ser trabalhada pelos proprietários dos veículos de comunicação. Isso faz com que duas equações se tornem critério de verdade na formação do consenso social.
A primeira sustenta que se todos dizem ou acreditam em alguma coisa, então é verdade. Quem discorda é bem provável que esteja por fora ou, apesar de vir com um papo convincente, queira achar chifre em cabeça de cavalo.
A segunda, fruto da era da comunicação visual, aprimora o teor da anterior ao subentender que tudo o que é visível é real, e tudo o que é real é verdadeiro. Ou seja, como não dá pra negar o que todos vê em, logo, trata-se de algo verdadeiro e merecedor de confiança. Por sua vez, o que não é visível não é real ou, quando não aparece, é porque não é importante, logo, não vale a pena se dar ao trabalho de ir atrás dele”.
- “O que você acaba de afirmar só me confunde. Pois, como posso dizer que o que vejo com meus próprios olhos não existe? Como posso desconfiar de que os documentários, as fotografias e reportagens não estão retratando a verdade?”, questiona desconcertado o homem.
A coruja vira o corpo, cruza a ponta das asas atrás das costas e começa a andar de um lado pra outro da mesa com um indisfarçável sorriso no rosto.
- “Eu sabia que você iria me fazer esta observação”, comenta a ave sem interromper seus passos. “O que sua avantajada cabeça humana não consegue entender é que, como já disse, as aparências sempre dão razão às aparências. Portanto, a depender dos aspectos trazidos à luz, as imagens que você vê não passam de um reflexo que esconde a realidade enquanto a mostra”.
- “Daria para ser um pouco mais clara...?”, pedem os lábios ao expressar a incapacidade de compreender o que está sendo dito.
- “Na década de 80, informar não era apenas proporcionar uma descrição precisa de um acontecimento, mas também fornecer um conjunto de parâmetros que permitissem uma compreensão mais contextualizada do que estava sendo relatado. Além de transmitir quem fez o que, com que meios, onde, como e porque algo aconteceu, havia certa preocupação de delinear o contexto, as causas, as consequências ou os possíveis desdobramentos do que estava sendo relatado. Por limitada que fosse, esta preocupação do trabalho jornalístico de trazer à tona o que não era visível no presente da história contribuía positivamente para a possibilidade de o leitor ou ouvinte não se contentar com as aparências e pensar melhor no que era apresentado.
Na medida em que a televisão passa a ocupar o espaço dominante entre os meios de comunicação e a usar amplamente a transmissão em tempo real de qualquer lugar do mundo, informar tornou-se sinônimo de fazer-nos assistir ao acontecimento em curso. A imagem começa a ocupar um lugar privilegiado como critério de verdade. Pouco a pouco, a satisfação dos telespectadores não está em entender os fatos em seu ambiente, com suas causas e consequências, mas sim em ver os acontecimentos conforme as imagens os reproduzem para os seus olhos. O que poderia ser um complemento importante no resgate do passado que produziu o presente e prepara o futuro, torna-se algo sem história, sem passado e, portanto, sem futuro, como se cada fragmento da realidade existisse por si só e fosse obra exclusiva de um acaso incontrolável.
Neste processo, ganha corpo a ilusão de que ver é compreender e a aparência ganha status de evidência inquestionável. A percepção imediata passa a ser vista como verdade absoluta e é assumida como tal. O que parece simples e inegável faz-nos esquecer da advertência dos pensadores renascentistas de sempre desconfiar dos próprios olhos e dos próprios sentidos. E não é pra menos. Quando filmamos, por exemplo, o percurso que o sol traça no céu e o reproduzimos em velocidade acelerada, as imagens mostram que o astro rei gira em torno da terra e não o contrário. Do mesmo modo, a foto panorâmica tirada do prédio mais alto da cidade revelará um horizonte plano, ainda que a terra seja redonda. Isso que no passado foi objeto de grandes disputas, discussões e complexas demonstrações científicas, portanto, de um pensamento crítico destinado a derrubar o caráter enganoso das aparências, hoje é mais que comprovado com fotos da terra tiradas do espaço. Ainda assim, ao permanecermos ancorados ao que vemos diariamente, continuaremos tendo a impressão, confirmada por nossos próprios olhos, de que o sol gira em torno da terra e não o contrário.
Ou seja, no nível das aparências, a realidade continua escondida pelas imagens imediatas que pretendem revelá-la”.
- “Será que daria para mostrar isso com um acontecimento da nossa realidade?”, pede o secretário ao apoiar o queixo na palma da mão.
- “É pra já!”, atende prontamente a ave ao apontar as asas para as folhas do relato. “Em 22 de janeiro de 2012, um domingo, o país assistiu à desocupação da área conhecida como Pinheirinho, em São José dos Campos, São Paulo, por cerca de 2000 homens da tropa de choque encarregados de fazer cumprir um mandato de reintegração de posse ordenado pela justiça. As imagens mostravam as chamas produzidas pelas bombas molotov atiradas pelos manifestantes que resistiam, de rosto coberto e pedaços de madeira na mão, à desocupação que levaria à destruição de suas casas. O conflito do qual a polícia participava com cassetetes, balas de borracha, bombas de gás lacrimogêneo e de efeito moral, ocupava o centro da notícia. Os comentários, por sua vez, sublinhavam a ação violenta dos manifestantes diante de uma força que buscava fazer cumprir a lei. Imagens e falas transformavam, automaticamente, os cerca de 7000 moradores instalados no local em fora da lei, recém-nascidos e crianças de colo inclusas.
As emissoras de rádio e os jornais faziam eco a que era apresentada como uma evidente manifestação de violência dos moradores, acusados, inclusive, de espalharem atos de vandalismo pela cidade. Se isso não bastasse, o Diário do Comércio e da Indústria de São Paulo, em sua edição do dia 24, fazia pairar sobre os líderes do movimento a suspeita de terem relações com as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (FARC), um grupo guerrilheiro que age naquele país desde a década de 60 e teria supostamente treinado moradores locais em táticas de guerrilha urbana. Inúmeras as reportagens que sublinhavam as compras de gasolina pelos invasores da área nos postos de combustível da região, induzindo leitores, ouvintes e telespectadores a crer que qualquer carro das famílias do Pinheirinho encostado num posto de combustível não estaria apenas abastecendo o veículo, e sim armando com gasolina a resistência violenta orquestrada na moita.
A intenção clara das reportagens era mostrar a resistência à desocupação como um ato violento, armado, capaz de detonar um clima de guerra na cidade e, obviamente, ponto de partida para espalhar o medo e alimentar a rejeição em relação aos moradores do Pinheirinho. E, como as aparências só confirmam as aparências, homens, mulheres, crianças e anciãos daquela área não passariam de uma massa de seres violentos, agressivos, sem escrúpulos, à margem da lei, que ameaçam as pessoas de bem, não respeitam a propriedade alheia e cujo único propósito seria o de defender o que havia sido apropriado ilegalmente.
Os excessos indisfarçáveis da polícia eram minorados pelo clima de guerra mostrado pelas imagens e entendidos como parte de uma resposta legítima do Estado às agressões dos habitantes em resistência. Na semana de tensão que segue à desocupação o diálogo direto com os moradores desalojados se daria apenas na hora da entrega das cestas básicas pela prefeitura num sinal pelo qual o Estado que faz cumprir a lei com rigor é o mesmo que socorre os necessitados.
As vozes discordantes vinham de boletins, documentários e entrevistas produzidas e divulgadas pela internet por movimentos sociais, partidos políticos e sindicatos. Mas, diante das imagens das grandes redes de televisão, quem se atreveria a dar razão a algo tão pequeno e insignificante que tinha a petulância de afirmar outra verdade? Como contrariar imagens tão claras, ao vivo e em cores, dos acontecimentos que demonstravam com sobras de detalhes o fato de que o visível é o que pode ser considerado real e verdadeiro? O que permitiria o entendimento daquele acontecimento são respostas a perguntas que as aparências vistas como inquestionáveis impedem sejam formuladas: Que mecanismos econômicos, políticos e sociais levaram famílias de trabalhadores a se verem obrigadas a ocupar uma área privada, com os riscos que isso implica, para ter um teto em cima da
cabeça? Onde estava o Estado na hora de garantir aos marginalizados pela ordem social vigente o sagrado direito à moradia? Por que a área do Pinheirinho, que pertence ao empresário Naji Nahas, condenado por ações fraudulentas na Bolsa de Valores de São Paulo e que há 40 anos não pagava o IPTU do terreno, não foi desapropriada depois de cinco anos de inadimplência, conforme mandam as normas municipais? Por que,
apesar desta dívida passar dos 15 milhões de Reais, esta área nunca havia sido indicada para desapropriação e futura construção de moradias populares destinadas a regularizar a situação dos moradores? Por que os poderes locais se recusaram por anos a fio a viabilizar as soluções pacíficas apresentadas pelos ocupantes? Por que, no passado, a prefeitura chegou a negar cestas básicas e  vagas nas creches às famílias do Pinheirinho como forma de forçar sua saída da região?
Nestas condições, que opção restava aos moradores diante do arsenal que procurava um desalojamento seguido da imediata destruição das moradias erguidas com o sacrifício de anos de trabalho?
Deveriam agradecer ou entregar flores a quem estava prestes a tirar deles o pouco que chamavam de lar? Ou teriam como última cartada a de fazer ouvir com sua defesa possível o grito de sofrimento por mais uma injustiça que iria se somar às muitas amargadas durante anos? O pressuposto pelo qual a grande maioria da população e da mídia se diz contra qualquer forma de violência não estaria sendo usado justamente para desqualificar a resposta dos moradores? Ao mesmo tempo, esta mesma postura não se prestaria a ocultar e até, disfarçada ou inconscientemente, defender o lado do opressor, cuja violência, tão contínua e cotidiana, não faz notícia e até parece não existir? A aparente confiabilidade e imparcialidade das imagens não estaria sendo usada para colocar as vítimas no banco dos réus e premiar, mais uma vez, seus algozes?
E, ainda, se o direito à moradia é negado até mesmo em situações como esta em que havia normas legais para garanti-lo, então, quais são os direitos que a elite e seus servidores na burocracia do Estado permitem que sejam exercidos de fato? Que direitos, apesar de constarem no papel, são e continuarão sendo criminalizados?
Que estranha democracia é esta que tem uma justiça capaz de violar normas legais para que a propriedade de um fraudador inadimplente da elite seja colocada acima do direito a um teto de 1700 famílias?
Diante da desocupação do Pinheirinho, muitas outras perguntas poderiam ser formuladas no sentido de desvendar as causas que estão na origem da desocupação da área e de usar o fato como lição para os demais movimentos sociais. Mas acredito que as que pincelamos acima bastam para desconfiar das aparências supostamente convincentes que desfilam debaixo dos nossos olhos”.
- “Sendo assim, como você explica que milhões de pessoas se deixam iludir pelo que vê em?”, questiona o homem entre a curiosidade e a provocação.
- “Vários processos contribuem para construir uma situação na qual a capacidade de parar para pensar é anestesiada ou, até mesmo, desativada”, responde Nádia com a satisfação de quem acredita estar sendo compreendido. “Retomando brevemente o que foi exposto, a primeira predisposição a anestesiar o pensamento crítico vem da concepção do senso comum pela qual a veracidade da informação está no fato de que vários meios de comunicação repetem as mesmas afirmações e confirmam com imagens e palavras o sentido dos acontecimentos. Ao se deixarem guiar pelas aparências, as pessoas não fazem perguntas a respeito de que critérios objetivos, verificáveis e verificados em suas fontes serviram de base à elaboração do que é apresentado, mas, simplesmente, acreditam estar assistindo à reprodução fiel da realidade. O simples fato de falas e imagens reafirmarem, em vários meios de comunicação, o teor e o conteúdo da mensagem que dirige a leitura do acontecimento em questão, basta para que a notícia seja assimilada como verdadeira.
Entre os casos internacionais mais famosos, encontramos, sem dúvida, a afirmação de que Saddam Hussein dispunha de armas de destruição em massa prontas para serem usadas. Em 2003, o mundo inteiro viu nas mãos do então Secretário de Estado e general da reserva estadunidense, Colin Powell, as fotos de caminhões-baú tiradas por satélites militares em órbita nos céus do Iraque. Apresentadas na Assembleia Geral das Nações Unidas como prova de que o país dispunha de laboratórios móveis para suprir o exército com armas químicas, as imagens destinavam-se a convencer o senso comum de que o ditador iraquiano possuía mesmo armamentos letais proibidos e, portanto, um ataque preventivo contra suas forças militares era necessário e urgente. Após anos de guerra e centenas de milhares de mortos, depois de vasculhar palmo a palmo o território do país, não foi encontrada nenhuma arma de destruição em massa e os tais caminhões, bom, eram apenas caminhões-baú que qualquer satélite militar poderia fotografar do espaço em qualquer país do mundo. Mas, para o senso comum da maioria silenciosa, o fato de a maior parte dos meios de comunicação falar ou mostrar ditas fotografias e de governantes como Tony Blair considerarem as imagens como provas convincentes bastava para que as fotos mostradas por Powell na ONU levantassem a sensação de uma ameaça real e transformassem sua falta de ação em apoio implícito à guerra. Do consenso das maiorias como critério de verdade não escapam os livros, os cinemas, o teatro e própria música. As listas de best-seller, recorde de bilheteria ou venda de CD confirmam o mercado como instância legítima capaz de apontar com seus indicadores o que vale a pena ser lido, visto e ouvido. Ninguém coloca sob suspeita as razões do sucesso comercial de uma obra, as ideias que procura reafirmar ou resgatar, as atitudes sobre a vida em sociedade que suas mensagens fortalecem e os valores éticos que orientam estas mensagens.
É assim que os livros de auto ajuda ou de busca do sucesso pessoal vendem como pão quente apesar de não resistirem ao menor teste de cientificidade; que filmes e seriados transformam as várias faces da violência urbana em caso de polícia e ajudam a ocultar que são o fruto venenoso da sociedade que construímos; ou, ainda, que músicas e danças transformem em ‘cachorras, popozudas e preparadas’ as mulheres cuja luta contra a violência doméstica sofreu seguidos recuos depois que nos mais diversos ambientes se começou a cantar e dançar que ‘um tapinha não dói’ ou a valorizar sua figura como objeto de desejo sexual capaz de se insinuar atrás de um simples ‘aí se eu te pego’.
Mas, para o senso comum, quando todos fazem, vêem, acreditam e se divertem da mesma maneira, então não há como ser diferente. A crítica aberta ao comportamento coletivo, ou ao que está sendo apreciado pela maioria, passa a ser vista como posição típica de quem procura pêlo em ovo.
Desta forma, ideias e interpretações do cotidiano, supostamente inócuas, ganham consistência, moldam e autorizam comportamentos, levam a entendimentos que nos distanciam da realidade amarga que se esconde nas aparências e, obviamente, criam obstáculos à reflexão crítica. Na medida em que a mensagem veiculada e reafirmada pelos meios se comunicação é recebida como merecedora de confiança, ela passa a ser incorporada ao senso comum e reproduzida em falas e comportamentos de pessoas simples que acabam naturalizando o que, por sua própria situação, deveriam rejeitar.
A anestesia produzida neste processo chega a desativar a capacidade de pensar não porque o cérebro deixa de funcionar, mas sim porque o pensar a realidade é justamente o esforço de ir além das aparências, de não aceitar pura e simplesmente o que todos dizem ou fazem por se tratar de algo comum e corriqueiro. O pensar do indivíduo, ou de um coletivo, exige um inventário da origem, dos valores, limites, interesses, possibilidades e consequências do que lhe é proposto em termos de sentido do cotidiano e da história, num esforço constante para desmontar o que se apresenta como natural ou impossível de ser mudado”.
- “Como primeiro aspecto, é bastante cabeludo...”, murmura o homem em tirar os olhos do papel.
- “Um segundo elemento – emenda Nádia sem ligar para o comentário do ajudante – vem da escolha do que é, ou não, considerado relevante.
Isso diz respeito, por exemplo, tanto a um tema a ser tratado numa série de reportagens televisivas, da imprensa ou do rádio, como de um acontecimento que está sendo apresentado. Pelos mecanismos que esboçamos nas páginas anteriores, não só as descrições tendem a se reduzir ao que é captado no instante da gravação, como na grande maioria da população começa a se instalar a idéia de que se algo não apareceu na TV, em jornais ou revistas é porque não aconteceu ou é de pouca conta. Do mesmo modo, quando é trazido à tona pela mídia é porque, de fato, se trata de um elemento importante nos aspectos que são trabalhados.
Assim, um movimento pode realizar uma passeata com milhares de pessoas ou ocupar durante meses algum espaço público para proporcionar a visibilidade do seu protesto e o diálogo com a população, mas se nada disso for retratado pela mídia, então, para o senso comum, é porque não existiu ou não tem importância. Por outro lado, os meios de comunicação podem se focar só nos aspectos da ocupação que interessam aos grupos econômicos por eles representados para desqualificar a ação empreendida, cooptar os líderes ou justificar a repressão. Tudo isso lançando mão, inclusive, de uma cuidadosa seleção de entrevistas com transeuntes, membros do movimento, autoridades e representantes da sociedade civil organizada que confirmam o sentido dado ao fragmento de realidade que é objeto de descrição. Como espelho do real, não é de estranhar que as imagens refletidas pela mídia, apesar de se apresentarem como reprodução fiel dos fatos, sejam invertidas para possibilitar a compreensão desejada.
Mas isso não é tudo. Na medida em que jornais e emissoras pautam o que é relevante, a mídia fabrica e consolida uma representação do acontecimento que, ao reafirmar as expressões do senso comum, tende a se generalizar e a formatar prejulgamento do que guarda certa semelhança com o que vem sendo comentado, passando assim a orientar possíveis respostas ou posturas dos diferentes setores da sociedade.
Em outras palavras, o poder da comunicação de massa de construir símbolos e sentidos para o dia-a-dia, de fazer ver e crer em aspectos escolhidos a dedo, de confirmar e transformar a visão do senso comum passa a orientar e dirigir a ação sobre o mundo e, portanto o próprio mundo. A notícia deixa de ser o mero relato de um fato para, ao cristalizar uma determinada leitura dos acontecimentos, se transformar em poderoso instrumento de construção da realidade de acordo com os interesses dos grupos no poder. Neste processo em que o consenso geral da mídia, mais uma vez, poderá legitimar a veracidade da comunicação, o disfarce da imparcialidade e da neutralidade será a fantasia indispensável para que a elite possa fazer desfilar seus valores, ideias, formas de comportamento e critérios de interpretação da
realidade na passarela da vida tendo o próprio povo simples como vítima e ator principal da festa.
Um terceiro aspecto – emenda a ave ao cortar sem cerimônias o evidente desejo de uma pausa que o secretário expressa sem cessar – pode ser resumido na convicção de estarem bem informadas que as pessoas têm ao assistirem os noticiários da TV ou ao ouvirem os canais de rádio que transmitem notícias 24 horas por dia. Pelo que vimos, a idéia de se informar sem esforço não passa de uma ilusão na medida em que o material jornalístico é veiculado mais para distrair do que, propriamente, para que o cidadão comum tenha uma compreensão objetiva do que está ocorrendo. Se isso não bastasse, a sucessão rápida de notícias breves e fragmentadas produz o efeito de desinformar ao super informar.
A desinformação ocorre no sentido de que o acesso à superfície dos acontecimentos em nada ajuda a entendê-los e produz os efeitos descritos no tópico anterior. E a superinformação proporcionada pela sequência ininterrupta de imagens, comentários, entrevistas, anúncios e notícias curtas, fornece uma quantidade de dados bem maior do que o nosso cérebro consegue processar. A falta de foco que acompanha o pular de um tema a outro prejudica comprovadamente a memória e, de conseqüência, o potencial de reflexão pessoal sobre o que está sendo veiculado. Via de regra, após assistir um noticiário na TV ou ouvi-lo num canal de rádio, o que permanece nas lembranças por curtos espaços de tempo são apenas fragmentos de notícias ou imagens que atingiram nossas emoções e nada mais. Isso, pelo menos, até que a dramaticidade ou os aspectos sensacionais de novos eventos desalojem paulatinamente as sobras de memória anteriores. A história processada a quente nas telas da TV ou nas ondas do rádio não dá trégua e, dificilmente, o público se dá conta de quanto os próprios acontecimentos contradizem os comentários ouvidos de jornalistas e locutores. O novo turbilhão de manchetes que passa a atrair as atenções se encarrega de restabelecer a confusão necessária para que tudo continue sendo visto como a sucessão frenética de um acaso incontrolável da própria história.
Para que o homem-massa se sintonize naquele canal ou leia esta revista ou jornal, proporcionando assim a audiência ou a venda desejada, cada meio de comunicação faz propaganda de si mesmo, distribui prêmios aos seus profissionais ou cria bordões e slogans que marcam sua confiabilidade junto ao público alvo. A Rádio CBN, por exemplo, se anuncia como ‘a rádio que toca notícias’ ao passo que a rede Globo declara que ‘a gente se liga em você’ para sublinhar que a emissora conhece o que seu telespectador pede e precisa por estar ligada nele, como se grande parte das demandas do homem massa não tivessem sido estimuladas pela ação da própria emissora. Que o sofá e não o esforço de refletir criticamente sobre a realidade, é o melhor lugar para se manter informado é sublinhado também pela rede CNN na pergunta ‘Onde você vai estar da próxima vez que a história acontecer?’ E cuja resposta correta é ‘Diante da TV, vendo a CNN’, já que é na TV que a história acontece e se reproduz e, no momento, é ela que, com suas imagens, detém a primeira e última palavra sobre os acontecimentos”, conclui Nádia ao respirar profundamente.
- “Ainda bem que é só isso”, comemora o homem em tom de alívio. “No início, temia tramoias e questões bem mais complexas, mas se ficar assim está de bom tamanho”, emendam seus lábios ao alimentar a esperança de que o trabalho esteja próximo do fim.
A coruja pisca os olhos, sacode a cabeça em sinal de desaprovação e, ao desenhar círculos no ar com a ponta da asa, diz:
- “O problema, querido secretário, é que os outros mecanismos pelos quais o pensamento é anestesiado, ou momentaneamente desligado, merecem um tratamento mais cuidadoso e não podem ser delineados em resumos que fazem a felicidade dos preguiçosos e não ajudam na tarefa de desvendar a realidade. Portanto, trate de se recompor e se prepare porque é no segundo capítulo que vamos tratar como a mídia passa...”

 (2) Em Cláudio Abramo, A regra do jogo, pg 117.

 

Mostrar para Esconder: O Papel da Mídia na Construção do Conformismo - Parte 2 

buscado no Almas Corsárias



 Autor: Emílio Gennari
2. DO ESPETÁCULO À INVISIBILIDADE
Tudo aquilo que engana parece liberar um encanto”.
Platão.

      
Após longa e gostosa espreguiçada, o secretário arruma as folhas do relato e se prepara vagarosamente para retomar o
trabalho. Impaciente, Nádia cruza as asas na altura do peito enquanto marca com o bater da
pata o nervoso passar dos segundos.
       O duelo silencioso que se instala entre os dois seres usa olhares, gestos e caretas como espadas afiadas da luta entre a urgência de
desvendar a realidade e o sossego de quem, ao nadar no fluxo da correnteza, resiste a qualquer mudança. Ciente das dificuldades do
embate, em que dúvidas e novas perguntas precisam cutucar o senso comum, a coruja se aproxima do ajudante e sinaliza o desejo de
sussurrar algo ao pé do ouvido:
- “Bem-vindo ao espetáculo!”, murmura o bico protegido pela asa em forma de concha.
- “Espetáculo... de que...?!?”, indaga o homem ao estranhar a atitude e as palavras.
- “Ora, querido humano de óculos, estou me referindo a tudo aquilo que ajuda a vender mais jornais, livros, revistas, CDs ou a garantir os índices de audiência. Chamo de espetáculo aquilo que, insólito ou corriqueiro, pode ser separado dos seus elementos constitutivos e
transformado em show de vida ou de morte”, arremata a coruja ao virar as costas em tom de provocação.
- “O que você quer dizer com isso?”, pede o secretário ao cair na armadilha.
- “Se, de um lado, o cardápio da imprensa sensacionalista sempre foi à base de notícias de variedades, fofocas de famosos, violência, sangue, sexo ou dramas humanos, temperados com certo ar de mistério, de outro,
não há meio de comunicação que, apesar de manter a respeitabilidade, esqueça que são esses pratos a elevar as vendas e a aumentar a audiência. O inusitado, insólito ou inesperado dá cor à rotina cinzenta do dia-a-dia, provoca emoções, gera empatia, atrai as atenções e cutuca a curiosidade.
Como critério de seleção, a importância do acontecimento em termos de compreensão das causas e consequências para a vida coletiva cede o lugar à busca do sensacional e do espetacular presentes em fatos que
interessam às grandes maiorias, não envolvem disputas, não provocam divisões, geram uma comoção capaz de despertar uma multiplicidade de reações, mas não uma atitude que leve o cidadão comum a se envolver na mudança do que serviu de caldo de cultura à produção da realidade.
Imagens e comentários não se distanciam do que atrai, do que integra o consenso social existente ou pode ser facilmente assimilado como tal ao mesmo tempo em que põem em cena a gravidade, o caráter dramático,
trágico ou cômico de um fato. Ao exagerar a importância desses aspectos, a mídia cria símbolos, fantasias, medos, fobias ou,
simplesmente, representações falsas da realidade na medida em que, a exemplo do prestidigitador, atrai a atenção para algo que distrai o público e o impede de ver o essencial, no nosso caso, as razões
profundas que gestaram os acontecimentos.
Na busca incessante pelo furo de reportagem, pelo que rompe com o cotidiano, até a morte se transforma em show a ser explorado. Este
processo não só banaliza a violência como introduz princípios de análise que servem de lentes pelas quais as pessoas passam a ver e
interpretar o mundo. Atraído pelo espetáculo e tornado cego pelas evidências que, supostamente, deveriam possibilitar uma visão mais ampla da sociedade, o público incorpora e reproduz a leitura enviesada
dos acontecimentos e desconsidera as relações cotidianas, rotineiras, e aparentemente banais nas quais estão as explicações para os eventos espetaculares que marcam o tempo da mídia”.
- “A teoria parece boa. O problema é entendê-la na prática!”, afirma o homem ao interromper bruscamente o relato da coruja.
- “Se é de exemplos que você precisa, aí vão eles! Vamos começar pelas chuvas de verão que transformam São Pedro em carrasco dos mais pobres. Via de regra, imagens e comentários retratam o que o repórter enviado
ao local pôde constatar no curto período de tempo em que aí permaneceu. Vídeos de casas inundadas ou derrubadas pela correnteza, de ruas e avenidas transformadas em corredeiras ou de desmoronamentos
filmados em tempo real se alternam aos de grupos de socorro, aos de manifestações de solidariedade e às falas dos moradores que costumam reproduzir o que ouviram nos noticiários.
       Numa aparente investigação objetiva da realidade, são ouvidos especialistas, prefeitos, governadores e testemunhas oculares das
tragédias descritas. Quando a sorte ajuda, há um vídeo amador ou uma foto de celular que retrata o momento mais dramático, a situação mais inusitada, enfim, o que se destina a chamar a atenção do público e proporcionar a audiência almejada. Na apuração das responsabilidades costumamos encontrar três grandes linhas de investigação: o nível de
chuvas acima do esperado, que caracteriza o acontecimento como catástrofe natural; a estrutura geológica do terreno, em relação à
qual pouco ou nada pode ser feito; e, finalmente, o fato de a população carente estar ocupando áreas de risco, apontado como
principal responsável pela tragédia ao lado de um Estado que alega não ter condições de controlar a ocupação desordenada do solo e está fazendo o possível para providenciar abrigo aos desabrigados.
       O que não aparece, ou é diluído a ponto de passar desapercebido aos olhos do público, é o cotidiano das vítimas feito de trabalho precário e mal remunerado, exploração, pobreza, menor escolaridade, maior
dificuldade de acesso a oportunidades de novos empregos, desemprego de longa duração, angústia e insegurança diariamente vivenciadas por quem se vê, literalmente, sem alternativas. Isso sem contar a especulação
imobiliária, a ausência do Estado no cumprimento de seu papel de garantidor dos direitos essenciais e a sua negligência em obras e ações efetivas na prevenção de catástrofes, tão regulares quanto o
ritmo das estações. Na medida em que as luzes do show da vida ocultam a rotina que não faz notícia, produz-se uma anestesia do pensamento capaz de levar as pessoas a não perceberem o óbvio: ninguém mora em
áreas de risco porque quer, por teimosia, por falta de consciência ou irresponsabilidade, mas porque sua situação não oferece outra
possibilidade.
       Num passe de mágica, chuvas acima da média não fazem boiar em suas águas as contradições do dia-a-dia que permanecem invisíveis, pois não há nada espetacular no sofrimento dos pobres e marginalizados, mas
inocentam o sistema econômico ao apontar as vítimas como principais responsáveis pela própria desgraça. Desta forma, nenhum meio de comunicação precisa mentir para que a anestesia do pensamento seja
revigorada com as informações divulgadas. Basta distrair o público com a notícia-espetáculo, tão verdadeira quanto o coelho que sai da cartola do mágico e profética quanto basta para que a próxima chuva
abundante demonstre a veracidade das constatações divulgadas no passado.
       Do mesmo modo, a realidade das periferias das grandes cidades só vira
manchete quando um crime hediondo, uma ação arrojada dos traficantes, a ocupação dos morros pelas forças policiais ou algo com forte cheiro de violência, sexo e sangue é levado ao conhecimento do público. Como
nos casos das chuvas de verão, a lógica do espetáculo consegue desinformar ao informar. Os corpos das vítimas, as marcas dos tiros, a
reconstrução dos acontecimentos através da animação gráfica ou de um mapa, as imagens da operação policial, algumas entrevistas
cuidadosamente selecionadas e a confirmação implícita de que a periferia é um lugar sinistro, violento, sem lei, onde a fronteira entre um morador honesto e um delinquente é sempre tênue e porosa, o que transforma o ambiente em algo instável e aterrorizante. Logo,
sempre que alguém falar em favela, morro ou citar bairros tristemente famosos, a imagem recorrente será a de um menino armado a serviço do tráfico, da droga vendida como laranjas na feira, das armas que circulam indiscriminadamente, enfim, de um estado de guerra latente onde tudo pode acontecer de uma hora pra outra.
       Ninguém duvida de que, por exemplo, o complexo de favelas do Alemão,no Rio de Janeiro, seja um lugar difícil não só para viver, mas também de descrever e de pensar por parte da mídia. A complexidade das
situações vividas pelos moradores impede que imagens simplistas e unilaterais representem a amplitude e a variedade de vivências que se
dão em seu meio e permitam uma compreensão profunda dos acontecimentos. O problema é que o caldo de cultura capaz de explicar o porquê das coisas não tem existência visível nos meios de comunicação a não ser quando algo fora do comum se torna objeto de interesse de algum deles. O tratamento jornalístico destinado ao acontecimento deforma a realidade pelas lentes do espetáculo, do que é digno de virar manchete, mas não permite um trabalho de reconstrução da realidade na medida em que o cotidiano é ocultado pela melhor imagem, pela tomada mais expressiva e emocionante, pelas cenas de ação que fortalecem e reafirmam as visões estereotipadas das periferias e, portanto, o processo pelo qual os que mais sofrem se tornam invisíveis”.
- “Você falou em estereótipos e invisibilidade...?!?”, indaga o homem
ao tentar disfarçar a confusão em que se encontra.
- “Exatamente!”, responde a coruja com semblante sério e compenetrado.
Sempre que uma pessoa ou um grupo humano são representados através de
um estereótipo, um estigma ou um preconceito, o resultado final é sempre o de anular as pessoas ao fazer desaparecer o que lhe é singular. Quem está na frente do repórter não é a Maria, o José, a
Francisca ou o Severino, mas sim ‘a favelada, o negro, a garota perdida, o moleque perigoso’ e assim por diante. Tudo aquilo que ajuda
a entender e a distinguir uma pessoa simplesmente desaparece sob os
traços estereotipados que a lógica do espetáculo reforça ao estimular, ou justificar implicitamente, a adoção de atitudes preventivas que marginalizam e condenam as próprias vítimas.
       A história de vida, desejos, sentimentos, ambições, qualidades, defeitos, a capacidade de resistir ao sofrimento, as injustiças sofridas, enfim, tudo desaparece sob o manto cinzento do estereótipo.
E quando some a realidade material que ajudou a construir o que cada sujeito é, faz, acredita e deseja, a elite mata dois coelhos com uma cajadada só. De um lado, o retrato produzido pela mídia inocenta de antemão ouvintes, leitores e telespectadores de suas responsabilidades na injustiça social. Os cidadãos comuns acreditam piamente que nada têm a ver com a existência das favelas, do racismo, da marginalização, da pobreza, da violência e das escabrosas realidades que marcam a vida em sociedade. Todos se sentem inocentes porque acreditam que as coisas são assim e não adianta teimar, que no mundo há uma luta encarniçada entre o bem e o mal, que ninguém mandou essa gente morar em favelas ou em ambientes degradados, mas que este foi seu destino, ora por ignorância, ora porque fizeram por merecer.
       Ao apagar a história individual e coletiva, a lógica do espetáculo focaliza o reflexo que cega a capacidade de ver a injustiça presente
nas relações de propriedade, de trabalho e de poder, e que se manifesta na particularidade da história de cada um e na vivência
coletiva de grandes grupos humanos. Mais uma vez, a história é reafirmada como obra do acaso e não como produto de estruturas que
ganham vida na atuação e na omissão de cada um enquanto membro de uma classe social. É por acaso que as favelas nascem e crescem em número e tamanho incomodando com sua presença as pessoas de bem. É por acaso, ou por um capricho da própria vontade, que o aviãozinho da droga busca a vida onde só pode encontrar a morte. É por acaso, preguiça, incompetência ou por acomodação que há gente sem trabalho, subempregada, sem casa ou vivendo do lixo. E, neste último caso, as distorções são ainda mais gritante na medida em que o espetáculo dos lixões a céu aberto leva muita gente a acreditar que só há catador porque os moradores da cidade se desfazem de coisas que ainda servem
ou poderiam ser reaproveitadas e não porque uma realidade social injusta transforma seres humanos no último elo da economia antes do
chorume.
       Para quem está, ou se sente, um degrau acima dos desqualificados, a invisibilidade proporcionada pela lógica do espetáculo não é sinônimo de não perceber a presença física do outro, mas de ignorá-lo ou de decretar que, enquanto desqualificado, este outro não tem nenhuma relevância social. A idéia pela qual cada um deve saber o seu lugar e aceitar humildemente o que lhe é oferecido é parte da cotidiana relação de classes que marca as diferenças e os critérios pelos quais se define quem é ou não importante, quem tem direito ou não de incomodar os demais. Que o catador peça papelão, latinhas, vidros,
plásticos ou metais com aquele jeito submisso e cordial, próprio dos humilhados, é algo que todos aceitam e prezam. Mas que esse sujeito
incômodo, mal-cheiroso e potencialmente perigoso por morar no submundo da rua peça água, comida, dinheiro ou transforme a calçada em depósito momentâneo para arrumar a carga do carrinho, isso já é demais. E caso ele esbarre em alguma coisa ou em alguém, a sua pequena distração abrirá o caminho de mais uma humilhação, vinda do cidadão de bem que se sente acima de sua condição social”.
- “E o segundo coelho?!?”, pede o homem ao mostrar que não perdeu o fio da meada.
- “O segundo efeito da invisibilidade pela lógica do espetáculo é que os marginalizados se convencem de que eles não têm direito a ter direitos. Ao interpretarem a própria situação como fracasso individual no estudo, na busca do sucesso, no trabalho e no aproveitamento das chances de subir na vida, as vítimas do estereótipo partilham a necessidade imprescindível de se manterem afastadas dos últimos lugares da fila dos derrotados com os quais convivem. É comum que estas pessoas se deparem frequentemente com a escolha entre o caminhodo tráfico, do crime e da violência e o do trabalho desqualificado que, apesar de não oferecer chances concretas de ascensão social, proporciona o conforto moral de não estar entre os drogados, os traficantes, os bandidos ou quem se prostitui para viver. A carteira de trabalho assinada ou o ser conhecido como trabalhador honesto é
tido como sinal de distinção em relação à delinquência e motivo de orgulho.
Se o lugar de moradia, a cor da pele, a situação de marginalidade ou as injustiças sofridas colocam as vítimas a um passo de atravessar a fronteira do crime, provar que não se é nem vagabundo, nem bandido,
apesar da vida de privação, torna-se caminho obrigatório para reafirmar a própria dignidade. Motivo de felicidade e disposição para
enfrentar a vida, a luta para não descer mais um degrau na hierarquia social pode não afugentar a pobreza, mas proporciona a alegria resignada ao pouco que se tem. Quem se sacrifica para se afastar dos últimos lugares, ou não depender da caridade alheia, tende bem mais a se confortar com os casos de quem está pior do que a lutar para fazer
valer o direito a ter direitos.
       Fora do seu ambiente, o desafio de manter a dignidade passa por negar a origem social, mentir em relação ao local de moradia e evitar situações que possam repercutir em novas derrotas e humilhações. Via de regra, as vítimas dos estereótipos sociais preferem não ser vistas, não aparecer, não serem identificadas por sentir que sua situação não
oferece chances reais de reconhecimento. Sempre à espera de novas humilhações, preferem perder por não escalar o time do que amargar uma goleada. Ao aceitar espontaneamente, e por antecipação, os limites da posição social que ocupam, os oprimidos contribuem involuntariamente
com a própria opressão na medida em que se calam, ficam vermelhos de vergonha, baixam o olhar, diminuem o tom de voz, sentem-se
desconfortáveis ao interagir com seus superiores no trabalho ou com alguém de uma classe social acima da própria. O ditado pelo qual ‘manda quem pode, obedece quem tem juízo’, transforma em sabedoria o agüentar passiva e resignadamente situações de humilhação,
incompreensão, negação dos próprios direitos por parte de quem é visto como superior. O jeito assumido como certo, então, é fazer de tudo para se reservar, se preservar e sumir do olhar alheio.
       Viver o fato de que não se tem direito a ter direitos tende a fazer com que as próprias vítimas se distanciem do que cheira a envolvimento na ação política de movimentos e representem como ‘metidos à besta,
abusados ou desaforados’ aqueles que, em seu meio, resistem a aceitar esta situação ou se rebelam. Ora por identificá-la como caminho para a desonestidade e a corrupção, ora porque, na situação de humilhado, se
vê incapacitado de atuar no que define o próprio futuro e o dos familiares, o oprimido só consegue se imaginar no âmbito da política
pela lógica do espetáculo: alguém dotado de superpoderes e de uma vontade capaz de resolver num estalar de dedos a situação dos pobres.
No fundo, é isso que ele espera dos governantes, mas o problema está justamente aqui: não age e, no máximo, torce para que outros façam por ele por serem aqueles que têm escolaridade, conhecimento, dinheiro e
poder.
Longe de ser vista como espaço de disputa dos interesses de classe e caminho para a construção coletiva de um direito, a política é algo que está fora do seu alcance. O que resta é pedir a Deus para que apareçam melhores oportunidades de trabalho, para que ninguém da família fique desempregado ou doente, para que haja sempre horas extras ou até pinte um segundo emprego. É isso que possibilita comprar mais, adquirir aquela tv, geladeira ou celular dos sonhos, sinônimo de
mais dignidade, de um degrau acima dos níveis mais baixos da escada social, enfim, de um afastamento mais claro da incômoda fronteira com o crime.
- “Ao mesmo tempo, não dá pra negar que nem todos agem assim...”, indaga o ajudante em tom de contestação.
- “As exceções mais confirmam do que negam a regra”, rebate Nádia ao riscar o ar com um rápido movimento da asa. “O que precisamos deixar claro é que os efeitos produzidos pelas imagens da mídia nas classes sociais não podem ser divididos com precisão cirúrgica entre os membros destes grupos. Estou me referindo, por exemplo, à outra face da invisibilidade: a arma como passaporte para sair do esquecimento e pela qual quem passava sem ligar para o marginalizado, agora lhe obedece.
Enquanto os estereótipos reafirmam entre a maioria dos dominados que não têm direito a ter direitos e fortalecem sua invisibilidade, a arma permite percorrer o caminho inverso, da sombra que fazia o humilhado desaparecer ao medo que o torna visível. Ao empunhar um revólver, um fuzil ou uma faca, o esquecido recupera sua visibilidade, exige ser tratado como sujeito e repassa pelo caminho da violência a fatura da dívida social da qual todos falam.
       Como passaporte para a visibilidade, a arma é um grito de socorro, um pedido de reconhecimento e valorização, mas, ao mesmo tempo, o pior caminho possível na medida em que esse tipo de reconquista da
visibilidade trilha as sendas do crime e faz com que o sujeito vista a carapuça que o preconceito lhe preparara. Sua afirmação não
proporciona o reconhecimento sonhado e sim o pacote completo de maldições que o medo faz ressoar na alma do assaltado e a conseqüente comprovação dos estereótipos divulgados. Ao optar pelo crime, o invisível de ontem se desarma das condições que poderiam proporcionar a denúncia das injustiças, a busca de apoios e aliados, a criação de fatos que marquem a saída da resignação rumo à construção do direito a
ter direitos. Por sua vez, diante da arma, a vítima sente medo e ódio, tende a afasta-se abruptamente de tudo o que poderia levá-la a se solidarizar com o ambiente no qual nasceu o seu agressor e reafirma como verdadeiras e dignas de fé as leituras do real que a mídia vinha trabalhando.
       O pedido de socorro se transforma, assim, em fonte de nova e mais pesada condenação alimentando o ciclo que reproduz a marginalização e a invisibilidade. O dinheiro do assalto e do tráfico proporciona instantes fugazes de respeito e visibilidade, a admiração do grupo, a satisfação de desejos de consumo estimulados pela propaganda e negados
pela realidade social, mas, ao mesmo tempo, legitima o estigma, o estereótipo, a invisibilidade, a humilhação e a renúncia à luta para ter direitos própria das maiorias marginalizadas”.
- “Mas de que forma isso contribui para anestesiar o pensamento de ouvintes, leitores ou telespectadores?”, pede o homem ao deitar
suavemente a caneta nas folhas do relato.
       Feliz com a preocupação do secretário, a ave permanece silenciosa por alguns instantes. Os gestos produzidos pelos movimentos das asas antecipam o teor das palavras. Um rápido piscar de olhos... Um
movimento brusco que parece cortar o véu das aparências e...
- “Além das corujas falantes, os representantes pensantes da sua espécie estão sempre em busca de um sentido para o que fazem, pensam ou vêem. Trata-se de um processo incessante alimentado pelas
contradições com as quais nos deparamos e pela própria dinâmica dos acontecimentos que transforma fatos e respectivos sentidos em amantes que se encontram por instantes, se entregam, se afastam e renovam seguidamente a procura recíproca.
A necessidade de ir além das aparências é algo que inquieta, demanda o esforço constante de questionar as próprias percepções e, obviamente, não se contenta com os primeiros resultados. A sensação de satisfação não está no significado imediato que foi encontrado, mas sim em ser parte ativa de uma busca que mantém em alerta, faz duvidar das aparências, nunca encontra a plenitude e só permite breves momentos de
descanso.
       Por outro lado, para que possam consolidar uma determinada maneira de
ver a vida, a anestesia e a desativação do pensamento precisam se focar nas aparências, cristalizar sentidos e percepções que não dependem do sujeito, mas de idéias, valores, símbolos e sentidos capazes de paralisar o significado que este atribui às relações sociais fazendo com que percam seu caráter histórico e contingente aos olhos das grandes maiorias.
       Esta dinâmica, que marca a formação e a evolução do senso comum, transforma o que o telespectador vê na tela em algo cuja projeção de sentido ele já vinha demandando pela sintonia entre sua busca particular, típica de qualquer ser humano, e o conjunto de valores e crenças com base nas quais ele realiza a própria busca e que, via de regra, não se distanciam fundamentalmente dos moldes preparados pela elite. O que interessa ao cidadão comum não é encontrar algo que o
force a percorrer o tortuoso caminho que conduz à superação das aparências e sim um simples atalho que lhe permita se deparar com um sentido imediato, capaz de proporcionar a satisfação desejada. Estamos falando de algo pequeno, rápido, profundo quanto basta para não dar trabalho e apontar o que está certo ou errado. Assim, cada imagem e comentário que produzam a coincidência entre fatos e sentidos proporcionam ao ouvinte, leitor ou telespectador a certeza de ter achado o que procurava. Trata-se de uma sensação de gozo, diante do qual o pensamento cessa. O encontro com um significado, de fato,
proporciona sempre um relaxamento da tensão que alimenta o pensamento e produz um prazer que desativa instantaneamente a capacidade de refletir criticamente sobre o que foi percebido como uma representação
satisfatória e, temporariamente, convincente do presente.
É claro que se trata de um relaxamento provisório, pois a realidade não pára e exige do pensamento a procura de novos significados, mas, para isso, a sequência de imagens, notícias, comentários produzida na lógica do espetáculo, gera elementos suficientes para tornar desnecessário o trabalho de pensar no que havia sido visto, lido ou ouvido. Quanto mais esse fluxo ininterrupto ocupa espaço em nossa vida diária, mais aumentam as possibilidades de obter uma conexão estável
entre acontecimento, significado e sensação de prazer e menos o pensamento é convocado a entrar em ação para questionar o que parece líquido e certo. Se aos vários tipos de noticiários acrescentamos o bombardeio das novelas, seriados, programas de auditório e demais enlatados, não vai ser difícil perceber que a chance de o homem comum parar pra pensar diante da tv passa a ser algo extremamente reduzido e limitado no tempo, pelo menos enquanto ele transferir à mídia a suabusca de sentido”.
- “Mas isso é um perigo!”, afirma o ajudante sem levantar os olhos do papel.
- “Exatamente!”, confirma Nádia ao menear a cabeça. “Na medida em que a própria morte vira espetáculo e o espetáculo produz significados que desativam o pensamento, os membros de sua espécie começam a se
acostumar com imagens e realidades que, anos atrás, os fariam sair da sala, mudar de canal ou desligar a tv. O que está em jogo é algo sério e preocupante. De um lado, temos a banalização do mal, que leva à incapacidade de se indignar diante do que deveria ser abertamente condenado, e, de outro, o convite implícito a repetir sem remorso o
que acaba de ganhar as cores da normalidade.
       Onde o pensamento não opera, ou passa por longos períodos de anestesia, não temos apenas um ficar calejado, um acostumar-se
progressivo à situação de violência e injustiça, como o imaginário do sujeito o incita a agir da mesma forma sem que haja uma reflexão
pessoal que bloqueie ou obstaculize este processo. Quando o aparelho de som, a televisão ou o rádio transmitem a música pela qual ‘um tapinha não dói’ sem que isso seja acompanhado por uma rejeição social
à altura da situação ou de uma denúncia que trave o processo de divulgação, ou seja, sem que o senso comum se depare com algo que
marca e reafirma como intolerável semelhante atitude, há um forte aumento da tendência a que um número maior de pessoas passem a
realizar este ato sem reservas. Na medida em que o pensamento se encontra desativado pelos mecanismos que apresentamos e se produz um consenso tácito em volta do que é repetido, tocado e dançado sem limites e nas mais variadas situações, a publicidade do gesto tende a se tornar um incentivo à sua realização. No inconsciente das pessoas,
a idéia de permissão, autorizada pelo silêncio da falta de condenação, transforma-se em estímulo à realização do ato, em voz que repete ‘Vai lá e faça!’ Além de impedir a indignação, a banalização do mal tende a
ampliar o próprio mal e a fazer com que os humanos reproduzam atos condenáveis sem sentimentos de culpa.
       Neste sentido, vale a pena se perguntar quantas cenas de violência, veiculadas na lógica do espetáculo, um adolescente viu até completar os 18 anos; quantos crimes virtuais ele cometeu em jogos eletrônicos ou quantos adversários eliminou a tiros experimentando a satisfação de sair vencedor por multiplicar as mortes. Será que isso tudo serve apenas para dar vazão aos instintos sem maiores consequências? Ou não é o caso de se perguntar até a que ponto contribui para legitimar algo bem mais profundo e complexo que, ao entrelaçar-se com os mecanismos
descritos, transformará o pôr fogo em um morador de rua numa brincadeira que proporciona uma prazerosa descarga de adrenalina sem maiores consequências? Em que medida o vazio de pensamento
seguidamente produzido torna-se condição suficiente para banalizar a própria condição humana? E o problema aqui não é apenas a crescente crueldade dos maus, mas, sobretudo, a indiferença e o silêncio em que
mergulham as pessoas que se definem como sendo do bem.
       Ao dar sua contribuição essencial na tarefa de desativar o pensamento e tornar invisível a realidade que produz os acontecimentos, a lógica do espetáculo faz com que as notícias mais chocantes e os fatos mais escandalosos possam até provocar uma comoção social momentânea, mas,
produzem simultaneamente a sensação de que não há o que fazer porque a vida é assim. A impotência que vai ganhando corpo se propaga na medida em que o conjunto da obra não revela que estamos num mundo em
construção, onde situações e possibilidades dependem da intervenção e da omissão de indivíduos, grupos, classes ou setores sociais, mas sim de um acaso incontrolável do qual sempre podemos esperar todo tipo de
surpresas.
       Neste contexto, desativar o pensamento é também desativar nas grandes massas da população a capacidade de visualizar de que há sim alternativas, de que não há nada definitivamente perdido no campo da
organização social, de que as chances de mudanças são reais, de que há espaço para dar vida a algo que contraria os valores, as idéias, as representações, os sentidos, os símbolos que, até o momento, marcaram
o cotidiano viver em sociedade. Em outras palavras, a lógica do espetáculo imobiliza e anula o ato de pensar como condição para dar
início a algo que não existe, a um movimento, a uma formação social ou a uma representação da vida que ainda não está presente, contribuindo assim para que tudo pareça natural e imutável. E quando nas maiorias se instala a convicção pela qual ‘não tem jeito’, qualquer meio que tente negar esta percepção é visto como um exercício inútil de busca do impossível. Por isso, arranhar o consenso que sustenta a ordem de exploração torna-se algo cada vez mais complexo e menosprezado até mesmo entre os que mais sofrem o peso da injustiça e que, não por
acaso, são os principais alvos da mídia.
       Aos poucos, o cotidiano começa a se tornar o lugar onde não se pensa, o âmbito em que quase tudo vem mastigado, pronto para ser engolido e processado mecanicamente, onde o que importa são as emoções e os
instantes de prazer ou afirmação que proporcionam. Próximos deste patamar, a simples possibilidade de pensamento crítico é condenada como subversiva pelas elites, desqualificada como fora da realidade
pelas maiorias e taxada de inconsistente pela classe média. Ferir o consenso que torna plausíveis as interpretações correntes do cotidiano e trazer à tona o que não se quer ver gera dúvida e insegurança, arrasa símbolos, faz precipitar os castelos no ar pacientemente
construídos para que os olhos dos de baixo não vejam o chão onde se pisa”.
- “Então, isso quer dizer que...”, sussurra o secretário desconcertado.
- “Isso quer dizer que, para as grandes maiorias, o comum é repetir o pensamento das elites como se fosse o próprio pensamento e o único capaz de explicar a realidade. Em diferentes graus de complexidade, a maneira dominante de ver e interpretar o cotidiano da história oferece
formulações que se credenciam como ‘a maneira certa de ver as coisas’ e proporcionam a sensação de ter encontrado o rumo pelo simples fato de que há multidões caminhando na mesma direção e com o mesmo propósito.
Mas, para dominar, não basta desativar a capacidade de pensar criticamente. Faz-se necessário viabilizar uma visão de mundo no
interior da qual as pessoas possam dar sua adesão ativa, se emocionar, propor e atuar sem sair do molde preparado e seguidamente adaptado pelos grupos no poder. Por isso, vamos tratar agora de dois elementos
que os meios de comunicação não poupam esforços para consolidar:...”

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