Pablo Ortellado
Recentemente, quando o direito autoral completou 200 anos, a revista The Economist publicou um editorial criticando a desmedida dos atuais termos de proteção (“Copyright and Wrong”, 08/05/2010). Muitos leitores se perguntaram como uma revista liberal poderia se juntar aos ativistas que defendem os bens comuns numa cruzada pela reforma radical do direito autoral. A resposta é que o direito autoral é um monopólio e, portanto, um corpo estranho numa economia de livre mercado.
Na sua gênese, o direito autoral foi fruto da reforma de um dispositivo da economia corporativa inglesa – os “copy rights” outorgados por uma corporação de ofício, a Companhia dos Livreiros de Londres. Esse primeiro copy right era um direito perpétuo que a corporação cedia a uma oficina para editar um determinado livro. Esse regime passou a ser criticado no final do século XVII e início do século XVIII por ser monopolista e também por ser instrumento de censura (já que a coroa utilizava a autorização dada à corporação para controlar o que era publicado).
Fruto da pressão por concorrência de mercado e liberdade de expressão, de um lado, e os interesses comerciais dos livreiros, de outro, em 1710 foi criado esse sistema híbrido que chamamos copyright (ou direito de autor, na tradição do direito da Europa continental). Ele reformava o antigo copy right corporativo, transformando o direito perpétuo em direito temporário (válido por 14 anos, renováveis por mais 14) e passando a titularidade do direito, do editor para o autor da obra. Nascia assim o direito autoral como o conhecemos: um monopólio temporário sobre uma obra do espírito que busca estimular a criação dando ao autor a prerrogativa exclusiva de explorá-la.
Ainda no século XVIII, o direito autoral foi levado para os Estados Unidos, após a independência e para a França, após a revolução. Embora a filosofia de legitimação fosse diferente, ele mantinha a forma de um monopólio temporário sobre a obra que era dado ao autor. Por isso, o direito autoral sempre foi um encrave monopolista num sistema que buscava a livre concorrência. Ele era, por exemplo, a única exceção aceita por James Madison (um dos pais fundadores dos Estados Unidos) para o sistema de livre mercado – e era aceito apenas porque era temporário e porque não era uma finalidade em si, mas um meio para se estimular o autor.
Quando no último século os prazos e o escopo de proteção do direito de autor ultrapassaram qualquer limite razoável, ficou patente que esse monopólio, de meio, havia se convertido em fim e que ao invés de estimular os criadores, estava apenas beneficiando intermediários e criando entraves para que o público tivesse acesso às criações do espírito.
Assim, vimos recentemente no caso brasileiro (onde o termo de proteção é de 70 anos após a morte do autor) que o acesso a uma obra importante como a de Freud enfrentou obstáculos por todo o século XX e ainda no começo do XXI. A editora que detinha os direitos de tradução para língua portuguesa havia decidido que a forma mais adequada de publicar a obra era por meio de uma tradução da tradução para o inglês. Muitos estudiosos discordavam desta opção, mas o monopólio que a editora brasileira detinha impedia que se publicasse uma tradução direta do alemão. Durante muitos anos, professores mais rigorosos divulgavam clandestinamente traduções diretas do alemão para seus alunos como se estivessem cometendo um delito. A obra de Freud começou a ser publicada ainda no século XIX. O público brasileiro teve que esperar mais de 110 anos para ter acesso a uma tradução direta do alemão, quando a obra de Freud entrou em domínio público.
As distorções deste sistema de monopólio também impedem que bibliotecas e cinematecas tirem cópias de obras raras para fins de preservação quando não conseguem autorização dos detentores do direito – quando esses detentores não são localizados, uma leitura rigorosa da lei diria para a instituição simplesmente deixar o original estragar; essa mesma lei proíbe hoje que estudantes tirem cópias de livros que estão esgotados – em média, um terço de toda base bibliográfica dos cursos.
Esse conjunto atordoante de distorções faz com que pessoas de bom senso repensem o papel dos direitos autorais no mundo contemporâneo, seja porque impedem a livre concorrência, seja porque deveriam ser bens comuns. Se ainda há motivo para se acreditar neste dispositivo que busca criar monopólios temporários para estimular o autor a criar novas obras, então é preciso que esse monopólio seja muito bem regulado, com termos de proteção mais curtos e exceções e limitações definidas. A chave para se entender a posição da The Economist é a seguinte: ao contrário de outros setores da economia, no direito autoral, quanto mais regulação existir, mais livre é o mercado – e, inversamente, quanto mais amplo é o direito, mais prevalecem os efeitos deletérios do monopólio.
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