Buscado no Partido Pirata
Texto de Anna
Nimus.
Uma
genealogia dos direitos de propriedade do autor
O autor nem sempre existiu. A imagem do autor como uma fonte de originalidade, um gênio conduzido por alguma compulsão secreta de criar obras de arte a partir de uma torrente espontânea de sentimentos poderosos, é uma invenção do século XVIII. Esta imagem continua a influenciar a forma como as pessoas falam a respeito dos “grandes artistas” da história e também se infiltra nas afirmações mais modestas do regime de propriedade intelectual segundo as quais os autores possuem ideias originais que exprimem a sua personalidade única, tendo por isso um direito natural a exercer a posse das suas obras – ou de vender os seus direitos, se o desejarem. Apesar destas ideias parecerem hoje auto-evidentes, elas foram uma anormalidade no seu tempo. As diferentes tradições pré-Iluministas não consideravam que as ideias fossem invenções originais que pudessem ser detidas, uma vez que o conhecimento era mantido em comum. A arte e a filosofia resultavam da sabedoria acumulada do passado. Não existiam autores – na acepção de criadores originais e autoridades incontestáveis – mas apenas mestres de vários ofícios (escultura, pintura, poesia, filosofia) cuja função era apropriar o conhecimento existente, reorganizá-lo, adaptá-lo à sua época e transmiti-lo mais além. Os artistas e sábios eram mensageiros e a sua capacidade de revelar o conhecimento era considerada uma dádiva dos deuses. A arte era regida por uma economia da dádiva: o patronato aristocrata era uma dádiva em troca da dádiva simbólica da obra. Mesmo a visão do mundo neoclássica que antecedeu imediatamente o Romantismo considerava a arte como sendo uma imitação da natureza e o artista como um artesão que transmitia ideias pertencentes a uma cultura comum.
A revolução Romântica marcou o nascimento da autoria proprietária. Aboliu a crença de que as criações do intelecto humano eram dádivas dos deuses que podiam ser controladas por decretos reais. Mas embora tenha libertado a capacidade produtiva dos indivíduos de causas supranaturais e do controlo político, ela identificou esta capacidade na soberania do indivíduo, ignorando o contexto social de produção mais vasto. E acorrentou a produção do conhecimento à ideia de propriedade privada que dominou o discurso filosófico e político desde Locke. A redefinição do artista enquanto criador original efectuada pelo Romantismo foi um efeito da combinação de transformações políticas, económicas e tecnológicas. A produção industrial introduzida ao longo do século XVIII conduziu a uma mercantilização crescente. A vedação das terras comuns obrigou muitos agricultores que obtinham o seu sustento da terra a tornarem-se trabalhadores em cidades industriais e o domínio das relações de mercado começou a permear todas as esferas da vida. O crescimento acentuado da literacia criou um novo público de classe média composto por consumidores – um requisito necessário para a comercialização da cultura. A capacidade da imprensa de reproduzir e distribuir em massa a palavra escrita destruiu valores estabelecidos, deslocando a arte das cortes para os cafés e salões de chá. E a medida que o mundo feudal do patronato definhava, juntamente com o sistema de soberania política que o amparava, escritores e artistas tentaram pela primeira vez subsistir dos lucros gerados com a venda das suas obras.
O Romantismo surgiu a partir de uma reação contraditória a estes desenvolvimentos. Era uma oposição ao capitalismo, embora expressa através da linguagem da propriedade privada e dos princípios herdados do discurso filosófico que legitimavam o modo de produção do capitalismo. O Romantismo denunciou a alienação e a perda da independência engendrada pela produção industrial e pelas relações de mercado e apresentou o artista em oposição heróica ao ímpeto pelo lucro. Adotando a metáfora de crescimento orgânico utilizada por Rousseau e a noção de gênio como força inata que criava a partir do interior de si empregada por Kant, os autores românticos celebraram o artista como um ser indomado e espontâneo (como a própria natureza), conduzido pela necessidade intuitiva e indiferente às normas e convenções sociais. Ao situar a obra de arte num sujeito natural e pré-social, o seu significado estava livre de ser contaminado pela vida quotidiana. A arte não era nem pública, nem social, não sendo também semelhante ao trabalho dos operários que produziam mercadorias. Era auto-reflexiva, providenciando uma janela para uma subjectividade transcendente.
Em meados da década de 1750, Edward Young e Samuel Richardson foram os primeiros a defenderem que a obra de um autor, uma vez que era fruto da sua personalidade única, pertencia na verdade mais a ele do que os objetos materiais produzidos por um operário pertenciam a este. Esta ideia encontrou os seus apoiantes mais entusiásticos entre os românticos alemães e ingleses, embora também tenha repercutido em círculos literários mais vastos. Em 1772 Lessing estabeleceu uma relação entre a originalidade e os direitos sobre as ideias e defendeu que os artistas tinham direito aos rendimentos econômicos gerados pelas suas obras. Apercebendo-se de que o problema em definir ideias como propriedade consistia no fato de que muitas pessoas pareciam partilhar as mesmas ideias, Fichte sustentou em 1791 que para que uma ideia fosse considerada como propriedade ela teria que possuir alguma característica distinta que permitisse que apenas um único indivíduo tivesse a sua pretensão. Essa qualidade não residia na ideia em si própria mas na forma única que o autor empregava para comunicá-la. Ideias que eram comuns podiam tornar-se propriedade privada através da forma original de expressão utilizada pelo autor. É esta distinção entre o conteúdo (as ideias) e a forma (o estilo e expressão específicos dessas ideias) que esteve na base do direito de propriedade intelectual. Por volta de 1830, Wordsworth introduziu na prática a noção de gênio – definida como a introdução de um novo elemento no universo intelectual – em ações legais nas guerras pelo copyright. Defendendo que o gênio artístico era frequentemente ignorado pelos contemporâneos, sendo apenas reconhecido após a morte do autor. tornou-se um ativista pela extensão do copyright para 60 anos após a morte de um autor. A dualidade de Wordsworth ao invocar o autor não só como um gênio solitário mas também como um agente econômico interessado era sintomática da cumplicidade entre a estética romântica e a lógica da mercantilização. A visão romântica do mundo aspirava a elevar a arte a um espaço puro superior à produção de mercadorias, mas a sua definição da obra criativa enquanto propriedade reintegrava a arte na própria esfera que procurava negar.
A existência de “direitos de cópia” (copy rights) precede as noções setecentistas do direito do autor à propriedade. Entre os séculos XVI e XVII as licenças reais concederam direitos exclusivos a alguns livreiros de copiar (ou imprimir) determinados textos. Em 1557, a Rainha Ana da Inglaterra outorgou um monopólio exclusivo de impressão a uma corporação de livreiros de Londres, a Stationers Company, porque assim podia controlar quais os livros que eram publicados ou banidos. Os primeiros copyrights consistiram nos direitos dos livreiros à impressão de cópias, tendo sido criados devido às necessidades ideológicas das monarquias absolutas de controlar o conhecimento e censurar as vozes discordantes. Depois do Licensing Act ter atingido o seu termo em 1694, o monopólio da Stationers Company foi ameaçado pelos livreiros de província, aqueles da Escócia e da Irlanda que eram designados de “piratas”. A Stationers Company requereu ao Parlamento uma nova lei para alargar o seu monopólio sob o copyright. Mas esta era uma Inglaterra diferente daquela de 1557: o Parlamento tinha executado o Rei Carlos I em 1649, abolido a monarquia e instalado uma república presidida por Cromwell, restaurado a monarquia com Carlos II, deposto Jaime II na Revolução de 1688 e aprovado em 1689 a Bill of Rights, o primeiro decreto de soberania constitucional moderna. O Statute of Anne, aprovado em 1710 pelo Parlamento, constitui um duro golpe contra a Stationers Company. A lei proclamou os autores (e não os editores) como os proprietários das suas obras e restringiu o prazo do copyright para 14 anos no caso de novos livros e 21 anos para as obras anteriores. A lei, cujo subtítulo era “Um Decreto para o Fomento da Instrução, ao conferir o direito à Cópia de Livros Impressos aos Autores ou compradores dessas Cópias, durante os períodos aí mencionados”, tentava compatibilizar as ideias filosóficas do Iluminismo com os interesses econômicos de um capitalismo nascente pela criação de um mercado do conhecimento assentado na concorrência.
A intenção da lei não era criar um copyright do autor mas antes derrubar o monopólio da Stationers Company. Uma vez que este monopólio se encontrava excessivamente instituído para ser atacado superficialmente, a reversão da propriedade do editor para o autor proporcionou uma base sólida. Depois da aprovação do Statute of Anne, a Stationers Company ignorou as suas restrições temporais, tendo-se iniciado nos tribunais uma batalha pela propriedade literária que se prolongou por mais de 50 anos. No caso Millar vs. Taylor (1769), um editor londrino pertencente à Stationers Company ganhou um veredicto que confirmava um direito de common law que estabelecia a perpetuidade do copyright, não obstante o Statute of Anne. Esta decisão foi revogada no caso decisivo de Donaldson vs. Becket (1774); A sentença favorável ao livreiro escocês Donaldson rejeitou o argumento em favor da perpetuidade do copyright e manteve os limites estatuídos no Statute of Anne. Os editores processavam-se uns aos outros nos tribunais, invocando os direitos dos autores como um pretexto na sua batalha pelo poder econômico. A noção do autor como um criador com um direito natural a exercer a posse sobre ideias pode ter sido inventada por artistas e filósofos, mas foram os editores que lucraram com ela. As leis não são redigidas por poetas, mas sim por estados e estes existem para impor o privilégio econômico, adotando qualquer legitimação filosófica que acharem conveniente a determinada altura. O Statute of Anne codificou a forma capitalista da relação autor-editor: desde o início, o copyright estava ligado ao autor, sendo contudo automaticamente assumido pelos editores através dos mecanismos “neutrais” do mercado. Em teoria, os autores tinham o direito de possuir os frutos do seu trabalho, mas uma vez que criavam ideias imateriais e que careciam dos recursos tecnológicos para produzirem livros, tinham que vender os seus direitos a um indivíduo que dispusesse capital suficiente para explorá-los. Essencialmente, isso significava terem que vender o seu trabalho. A exploração do autor estava impregnada no regime de propriedade intelectual desde a sua concepção.
As leis de propriedade intelectual mudaram com os ventos da história de forma a justificarem interesses específicos. Os países que exportavam propriedade intelectual favoreceram a noção dos direitos naturais dos autores, enquanto que as nações em desenvolvimento, que eram sobretudo importadoras, insistiram numa interpretação mais utilitarista que limitava o copyright com base no interesse público. Durante o século XIX, as empresas editoriais americanas justificaram a publicação não-autorizada de escritores britânicos com o fundamento utilitarista de que o interesse do público em dispor de grandes obras ao preço mais barato possível prevalecia sobre os direitos dos autores. Pelo início do século XX, à medida que os autores americanos se iam tornando mais populares na Europa e as empresas editoriais americanas se tornavam exportadoras de propriedade intelectual, a lei foi oportunamente alterada, passando subitamente a reconhecer os direitos naturais dos autores a possuir as suas ideias e ignorando as teorias anteriores relativas à utilidade social. Durante o século XX, o direito de propriedade intelectual ampliou os direitos dos proprietários de várias formas: através do aumento da duração da copyright para 70 anos após a morte, mediante a padronização dos regimes internacionais de propriedade intelectual de modo a privilegiar as empresas de países economicamente dominantes (alcançada com a transferência das funções de regulação da propriedade intelectual da Organização Mundial da Propriedade Intelectual para a Organização Mundial do Comércio) e por intermédio da redefinição dos meios de proteção e tipos de propriedade intelectual que poderiam beneficiar de proteção. Até meados do século XIX, ocopyright implicava apenas a protecção contra a cópia literal. Até ao final do século XIX, isto foi redefinido de forma a que (contrariando a definição de Fichte) a propriedade protegida pelo copyright consistisse não apenas na forma mas também na substância – o que significava que as traduções passavam também a ser abrangidas pelo copyright. Mais tarde, esta proteção foi alargada a toda e qualquer adaptação próxima do original, como o enredo de uma novela ou de uma peça de teatro ou a utilização de personagens de um filme ou de um livro para criar uma sequela. Os tipos de propriedade protegidos pelo copyright também aumentaram exponencialmente. No início, o copyright era uma regulamentação para a reprodução de material impresso. Mas com cada nova tecnologia de reprodução (palavras, sons, fotografias, imagens em movimento, informação digital), a legislação foi sendo alterada. Começando por proteger apenas textos, no início do século XX o copyright abrangia todo o tipo de “obras”. Em 1983, no âmbito do julgamento de um caso decisivo, foi argumentado que o software de computador também era uma “obra” de autoria original, sendo análoga à poesia, música e pintura na sua capacidade de captar a originalidade e imaginação criativa do autor. Isto demonstra bem os contextos completamente diferentes em que o mito do gênio criativo foi invocado para legitimar interesses econômicos. E em cada um destes casos decisivos, a atenção afastou-se sempre das empresas (as verdadeiras beneficiadas) para se centrar na figura comiserabilista do autor, com quem as pessoas se identificam e que desejam recompensar.
A Propriedade Intelectual enquanto Fraude
Se como Proudhon afirmou na sua célebre frase, a propriedade é um roubo, então a propriedade intelectual é uma fraude. A propriedade é um roubo porque o detentor da propriedade não tem qualquer direito legítimo ao fruto do trabalho. Os proprietários não conseguiam extrair mais do que os custos de reprodução dos instrumentos que eles contribuíam para o processo senão através da obstrução do acesso por parte dos trabalhadores aos meios de produção. Nas palavras de Benjamin Tucker, o credor tem direito à devolução do montante integral e nada mais. Quando os camponeses da era pré-industrial se viram impedidos pelas novas vedações de terem acesso à terra comum, pode-se dizer que a sua terra lhes foi roubada. Mas se a propriedade física pode ser roubada, será que a inteligência ou as ideias podem ser roubadas? Se a vossa terra vos é roubada, deixam de a poder usar, exceto segundo as condições impostas pelo novo “proprietário” privado. Se a posse de uma ideia é análoga à posse de propriedade material, ela deveria ser sujeita às mesmas condições de troca econômica, confisco e apreensão – e em caso de ser apreendida deixaria então de ser a propriedade do seu dono. Mas se a vossa ideia é utilizada por outros, vocês não perdem a capacidade de utilizá-la – então, o que é que foi de fato roubado? A noção tradicional de propriedade, como algo que pode ser detido em exclusividade, é irreconciliável com intangíveis como as ideias. Ao contrário de um objeto material, que apenas pode existir num lugar a cada momento, as ideias não são rivais nem exclusivas. Um poema não deixa de pertencer menos ao autor por existir em milhares de memórias.
Propriedade intelectual é um conceito desprovido de sentido – as ideias não funcionam como a terra e não podem ser detidas ou alienadas. Todos os debates sobre a propriedade intelectual travados nos tribunais e entre os panfletários ao longo do século XVIII evidenciaram esta contradição. O que estes debates tornaram óbvio é que os direitos à posse de ideias teriam que ser qualitativamente diferentes dos direitos à posse de propriedade material, e que a facilidade de reproduzir ideias colocava graves problemas à imposição desses direitos. Em simultâneo com os debates filosóficos acerca da natureza da propriedade intelectual, começou a surgir um discurso descomunal que criminalizava a pirataria e o plágio. A tirada mais famosa contra a pirataria foram os opúsculos publicados por Samuel Richardson em 1753 onde denunciava as reimpressões irlandesas não autorizadas da sua novela Sir Charles Grandinson. Contrastando a esclarecida indústria livreira britânica com a selvageria e a imoralidade da pirataria irlandesa, Richardson criminaliza as reimpressões como se se tratassem de roubos. Na verdade, as suas afirmações não tinham qualquer base legal uma vez que a Irlanda não estava sujeita ao regime de propriedade intelectual da Inglaterra. E o que ele denunciava como sendo pirataria, os editores irlandesas encaravam como uma retaliação justa contra o monopólio da Stationers Company. Um ano antes dos opúsculos de Richardson, tinham ocorrido motins nas ruas de Dublin contra as políticas fiscais britânicas, que se inseriam numa luta política mais vasta da independência irlandesa face à Grã-Bretanha. Ao afirmar que esta Causa era a Causa da Literatura em geral, Richardson concebeu a batalha pela propriedade literária em termos puramente estéticos, isolando-a do seu contexto político e econômico. Mas o seu recurso à metáfora da pirataria reavivava a história colonial da Grã-Bretanha e a sua repressão brutal dos piratas do mar. A própria pirataria marítima do século XVIII tem sido interpretada como uma forma de guerra de guerrilha contra o imperialismo britânico, tendo também criado modelos alternativos de trabalho, propriedade e relações sociais baseadas no espírito da democracia, partilha e assistência mútua.
A descrição que Richardson dava da originalidade e da propriedade excluia qualquer noção de apropriação e transmissão cultural. Nunca antes tinha um trabalho pertencido mais a um homem do que este é dele, argumentava, retratando a sua novela como se fosse nova em todos os sentidos da palavra. A sua afirmação era particularmente irônica, dado que ele próprio se tinha apropriado, tanto na novela como nos opúsculos, das histórias de pirataria e plágio provenientes da literatura popular do seu tempo, bem como de O Etíope de Heliodoro, um romance do século III d.c. que foi amplamente imitado ao longo do século XVIII. A ideia de originalidade e o individualismo possessivo que engendrou criaram uma onda gigantesca de paranóia entre os “gênios” autores, cujo receio de serem roubados parecia disfarçar um medo mais básico de que a sua pretensão à originalidade não passasse de uma ficção.
A criação artística não surge ex nihilo (a partir do nada) dos cérebros de indivíduos como se fosse uma linguagem privada; ela foi sempre uma prática social. As ideias não são originais, elas baseiam-se em estratos de conhecimento acumulados ao longo da história. A partir destes estratos comuns, os artistas criam obras que possuem especificidades e inovações inequívocas. Todas as obras criativas combinam ideias, palavras e imagens provenientes da história e do seu contexto contemporâneo. Antes do século XVIII, os poetas citavam os seus predecessores e fontes de inspiração sem reconhecimento formal e os dramaturgos apropriavam-se à vontade dos enredos e diálogos de fontes anteriores sem atribuição. Homero baseou a Ilíada e a Odisseia em tradições orais que remontavam a séculos atrás. A Eneida de Virgílio inspira-se fortemente em Homero. Shakespeare tomou emprestado muitos dos seus enredos e diálogos narrativos de Holinshed. Isto não quer dizer que a ideia de plágio não existia antes do século XVIII, mas que a sua definição alterou-se radicalmente. O termo plagiador (literalmente, raptor) foi pela primeira vez usado por Marcial no primeiro século d.c. para descrever alguém que raptava os seus poemas ao copiá-los por inteiro e fazia-os circular com o nome do copista. O plágio era uma falsa usurpação do trabalho de outro. Mas o fato de que a nova obra tinha passagens semelhantes ou expressões idênticas à inicial não era considerado plágio desde que a nova obra possuísse os seus próprios méritos estéticos. Depois da invenção do gênio criativo, as práticas de colaboração, apropriação e transmissão foram deliberadamente esquecidas. Quando Coleridge, Stendhall, Wilde e T.S. Eliot foram acusados de plágio por incluírem expressões dos seus predecessores nas suas obras, isto refletiu uma redefinição do plágio em concordância com a acepção moderna de autoria possessiva e propriedade exclusiva. O “roubo” de que eram acusados consiste precisamente naquilo que todos os escritores anteriores consideravam natural.
As ideias são virais, elas associam-se a outras ideias, mudam de forma e migram para territórios desconhecidos. O regime de propriedade intelectual restringe a promiscuidade das ideias e encurrala-as dentro de vedações artificiais, extraindo benefícios exclusivos da sua posse e controle. A propriedade intelectual é uma fraude – um privilégio legal para representar-se a si próprio de um modo falso enquanto único “proprietário” de uma ideia, expressão ou técnica e para cobrar uma taxa a todos que pretendam captar, exprimir ou aplicar esta “propriedade” na sua própria produção. Não é o plágio que priva o “proprietário” do uso de uma ideia; é a propriedade intelectual, apoiada pela violência invasora do estado, que priva todos os restantes de usá-la na sua cultura comum. O fundamento para essa privação é a ficção legal do autor enquanto indivíduo soberano que cria obras originais a partir da fonte da sua imaginação, tendo por isso um direito natural e exclusivo de posse. Foucault desmascarou a autoria como sendo o princípio funcional que trava a livre circulação, a livre manipulação, a livre composição, decomposição e recomposição do conhecimento. O autor-função representa um forma de despotismo sobre a proliferação de ideias. Os efeitos deste despotismo e do sistema de propriedade intelectual que protege e preserva consistem em roubar a nossa memória cultural, censurar as nossas palavras e acorrentar a nossa imaginação à lei.
E, contudo, os artistas continuam a sentir-se lisonjeados com a sua associação a este mito do gênio criativo, fazendo vista grossa ao modo como é empregue para justificar a sua exploração e alargar o privilégio da elite detentora da propriedade. O copyright coloca autor contra autor numa guerra de competição pela originalidade – os seus efeitos não são apenas econômicos pois também naturaliza um determinado processo de produção de conhecimento, deslegitima a noção de uma cultura comum e danifica as relações sociais. Os artistas não são encorajados a partilhar os seus pensamentos, expressões e obras ou a contribuir para um fundo comum de criatividade. Em vez disso, protegem ciosamente a sua “propriedade” dos outros, que encaram como potenciais concorrentes, espiões e ladrões deitados à espera de surrupiar e violar as suas ideias originais. Esta é uma visão do mundo da arte criada à imagem do próprio capitalismo, cujo objetivo fundamental é fazer com que as empresas possam apropriar-se dos produtos alienados dos seus trabalhadores intelectuais.
A Revolta Contra a Propriedade Intelectual
A apropriação privada das ideias ao longo dos últimos dois séculos não conseguiu erradicar totalmente a memória de uma cultura comum ou o reconhecimento de que o conhecimento se desenvolve quando as ideias, palavras, sons e imagens podem ser livremente utilizados por todos. Desde o surgimento do autor proprietário que diferentes indivíduos e grupos têm desafiado o regime de propriedade intelectual e o “direito” que concedeu a alguns indivíduos privados de “deterem” obras criativas impedindo ao mesmo tempo que outros as utilizem e reinterpretem. Nas suas Poésies de 1870, Lautréamont apelava a um retorno a uma poesia impessoal, uma poesia escrita por todos. O plágio é necessário, acrescentava. O Progresso assim o exige. O plágio capta o essencial da frase de um autor, emprega as suas expressões, elimina uma ideia falsa e a substitui pela correta. A sua definição subverteu o mito da criatividade individual, que foi utilizado para justificar relações de propriedade em nome do progresso quando na verdade, ao privatizar a cultura, entravava o progresso. A resposta natural foi reapropriar a cultura enquanto esfera de produção coletiva sem reconhecer as vedações artificiais colocadas à autoria. A frase de Lautréamont tornou-se uma referência para as vanguardas artísticas do século XX. O Dada rejeitou a originalidade e considerou que toda a produção artística consistia na reciclagem e remontagem – desde os ready-mades de Duchamp à regra de Tzara para a composição de poemas a partir de recortes de jornais, passando pelas fotomontagens de Hoech, Hausmann e Heartfield. O Dada também questionou a ideia do artista como um gênio solitário e da arte como uma esfera separa através da produção coletiva de não apenas objetos de arte e textos, mas também de notícias falsas, intervenções em encontros políticos e manifestações nas ruas. O seu ataque contra os valores artísticos era uma revolta contra os princípios capitalistas que os fizeram surgir.
As ideias dadaístas foram desenvolvidas de um modo mais sistemático numa teoria pelos Situacionistas (ainda que esta padecesse no tocante à prática concreta). A Internacional Situacionista reconheceu que o détournement – o desvio ou a recodificação dos significados prevalentes em obras de arte, filmes, anúncios e tiras de quadrinhos – devia muito às práticas do dadaísmo, embora com uma diferença. Eles viam o Dada como uma crítica negativa das imagens dominantes que dependia do reconhecimento fácil da imagem negada e definiam o détournement como uma reutilização positiva dos fragmentos existentes enquanto meros elementos na produção de uma nova obra. O détournement não era tanto um antagonismo à tradição; acentuava a reinvenção de um novo mundo a partir dos destroços do antigo. E implicitamente, a revolução não era bem uma insurreição contra o passado, mas antes o aprender a viver de uma forma diferente mediante a criação de novas práticas e formas de comportamento. Estas formas de comportamento também incluiam textos coletivos, frequentemente anônimos, e uma rejeição explícita do regime de copyright mediante a afixação do rótulo “sem copyright” ou “anticopyright” nas suas obras, juntamente com as normas de uso: todos os textos contidos neste livro podem ser livremente reproduzidos, traduzidos ou adaptados mesmo sem referir a fonte.
Foram estas práticas gêmeas do détournement (o plágio necessário de Lautrémont) e do anticopyright que inspiraram muitas práticas artísticas e subculturais entre as décadas de 70 e 90. John Oswald começou a fazer colagens de sons que remixavam obras protegidas pelo copyright durante os anos 70. Em 1985 inventou o termo plunderfonia (plunderphonics, ou seja, “o saque de som”) para designar a prática da pirataria de áudio enquanto prerrogativa composicional, que ele e outros tinham praticado. O lema de Oswald era: se a criatividade é um campo, então o copyright é a cerca. Plunderphonics, o seu álbum de 1989, que continha 25 faixas que remisturavam material retirado de Beenthoven e Michael Jackson, entre outros, foi ameaçado com um processo legal por violação do copyright. Os Negativland tornaram-se a mais ínfame das bandas plunderphonic depois da sua paródia à música “I Still Haven’t Found What I’m Looking For” dos U2 ter sido processada pela companhia discográfica do U2 pela violação do direito de copyright e de marca registada. Os plundervisuais (plundervisuals, “saque de imagens”) possuem também uma longa tradição. O cinema de manipulação de imagens recuperadas de outros filmes (found footage) começa com o trabalho de Bruce Connor nos anos 50, mas tornou-se mais predominante depois da década de 70 com Chick Strand, Mathew Arnold, Craig Baldwin e Keith Sanborn. Com a invenção do gravador de vídeo, a prática do scratch de video, que subvertia as imagens gravadas diretamente dos programas e anúncios de televisão, tornou-se muito popular durante os anos 80 devido à relativa facilidade de produção que oferecia em comparação com a junção de película de celulóide do found film. Uma forma de plágio mais despolitizada e pós-modernista também conquistou ampla reputação nos círculos literários e artísticos durante a década de 90 com as novelas de Kathy Acker – o seu Empire of the Senseless plagiou um capítulo inteiro de Neuromancer de William Gibson, à parte algumas pequenas modificações – e com as apropriações de Sherrie Levine de imagens de Walker Evans, Van Gogh e Duchamp.
Stewart Home, um célebre defensor do plágio e organizador de vários Festivais do Plágio entre 1988 e 1989, tem também advogado a utilização de nomes múltiplos como uma táctica para desafiar o mito do gênio criativo. A diferença significativa é que enquanto que o plágio pode ser facilmente recuperado como uma forma de arte – atente-se na vedetização de plagiadores como Kathy Acker ou Sherrie Levine -, a utilização de nomes múltiplos exige uma abnegação que desvia a atenção do nome do autor. A utilização de nomes múltiplos retrocede ao Neoísmo, que encorajava os artistas a trabalharem em conjunto com o nome partilhado de Monty Cantsin. Depois da sua ruptura com o Neoísmo, Home e outros começaram a usar o nome Karen Eliot. A prática também pegou na Itália, onde o nome Luther Blisset foi empregue por centenas de artistas e ativistas entre 1994 e 1999. Luther Blisset tornou-se numa espécie de Robin Hood da era da informação, pregando rebuscadas partidas à indústria cultural, sempre admitindo a responsabilidade e explicando que falhas no sistema tinham sido exploradas para semear uma história falsa. Depois do suicídio simbólico de Luther Blissett em 1999, cinco escritores que participavam ativamente no movimento inventaram o pseudônimo coletivo Wu Ming, que em chinês quer dizer “sem nome”. O nome anônimo e coletivo é também uma rejeição da máquina que transforma os escritores em celebridades. Os Wu Ming afirmam que ao desafiar o mito do autor proprietário se limitaram a tornar explícito o que há muito deveria ser óbvio – não existem “gênios” e, por isso, não existem “proprietários legítimos”, existe apenas troca, reutilização e aperfeiçoamento de ideias. Os Wu Ming acrescentam que esta noção, que em tempos pareceu natural mas que foi marginalizada ao longo dos dois últimos séculos, está atualmente tornando-se predominante de novo devido à revolução digital e ao sucesso do software livre e da General Public License.
A digitalização demonstrou ser uma ameaça muito maior às noções convencionais de autoria e propriedade intelectual do que o plágio praticado por artistas radicais ou as críticas do autor exercidas pelos teóricos pós-estruturalistas. O computador dissolvendo as fronteiras essenciais à ficção moderna do autor enquanto criador solitário de obras originais e únicas. A posse pressupõe uma separação entre textos, assim como entre autor e leitor. A artificialidade desta separação está a tornar-se mais evidente. Em listas de correio electrônico, grupos de discussão e sites de edição aberta, a transição de leitor para escritor é natural e a diferença entre textos originais desaparece dado que os leitores contribuem com comentários e incorporam fragmentos do original na sua resposta sem fazerem citação. Aplicar o copyright à escrita online afigura-se cada vez mais absurdo uma vez que esta é muitas vezes produzida coletivamente e imediatamente multiplicada. À medida que a informação online circula sem qualquer respeito pelas convenções do copyright, o conceito do autor proprietário parece ter-se tornado, deveras, num fantasma do passado. Talvez o efeito mais importante da digitalização consiste no fato de ameaçar os beneficiários tradicionais da propriedade intelectual uma vez que o controle monopolístico exercido pelos editores de livros, companhias discográficas e indústria cinematográfica deixa de ser necessário à medida que pessoas comuns se encarregam elas próprias dos meios de produção e distribuição.
O guru do software livre Richard Stallman sustenta que na era da cópia digital a função do copyright foi totalmente invertida. Embora tenha começado por ser uma medida legal que permitia aos autores restringir os editores em benefício do público em geral, o copyright transformou-se numa arma dos editores para manter o seu monopólio pela imposição de restrições ao público em geral que agora possui os meios para produzir as suas próprias cópias. A finalidade de todo o copyleft e de licenças específicas como a GPL é reverter esta inversão. O copyleft utiliza o direito que está na base do copyright mas vira-o do avesso de modo a servir o oposto do seu objetivo habitual. Em vez de fomentar a privatização, torna-se numa garantia de que todos têm a liberdade de utilizar, copiar, distribuir e modificar software ou qualquer outro tipo de obra. A sua única “restrição” é precisamente aquela que assegura a liberdade – os utilizadores não estão autorizados a limitarem a liberdade de qualquer outro, uma vez que as cópias e derivações devem ser redistribuídas nos termos da mesma licença. O copyleft requer a posse legal apenas para renunciar na prática a esta ao autorizar que todos façam o uso que desejarem da obra, desde que o copyleft seja transmitido. A mera exigência formal da posse significa que nenhuma outra pessoa poderá colocar um copyright em cima de uma obra copyleft e tentar limitar o seu uso.
Visto no seu contexto histórico, o copyleft situa-se em algum lugar entre entre o copyright e o anticopyright. A atitude dos escritores em publicarem as suas obras sob anticopyright era tomada num espírito de generosidade, no intuito de afirmar que o conhecimento apenas pode prosperar quando não é detido por proprietários. Enquanto declaração de “nenhuns direitos reservados”, o anticopyright foi um slogan perfeito introduzido num mundo imperfeito. Presumia-se que os outros iriam utilizar a informação com o mesmo espírito de generosidade. Mas as empresas aprenderam a tirar partido da ausência de copyright e a redistribuírem as obras em troco de uma quantia. Stallman concebeu o copyleft em 1984, depois de uma companhia que desenvolvia aperfeiçoamentos no software que ele tinha colocado sob domínio público (o equivalente técnico ao anticopyright, mas sem a atitude evidente de crítica) ter privatizado o código-fonte, recusando-se a partilhar a nova versão. Assim, de certa forma, o copyleft representa o advento de uma nova era, uma lição difícil sobre como a renúncia a todos os direitos pode levar a abusos por parte de aproveitadores. O copyleft tenta criar um commons baseado em direitos e responsabilidades recíprocas – aqueles que querem partilhar o commons têm determinadas obrigações éticas no sentido de respeitar os direitos de outros utilizadores. Qualquer um pode acrescentar algo ao commons mas ninguém pode subtrair algo dele.
Porém, em outra perspectiva, o copyleft representa um retrocesso em relação ao anticopyright e padece de uma série de contradições. A posição de Stallman está em concordância com um consenso generalizado de que o copyright foi deturpado ao ser transformado num instrumento que beneficia as empresas em lugar dos autores, aqueles a quem originalmente se destinava. Mas a verdade é que nunca existiu uma era dourada do copyright. O copyright foi sempre um instrumento legal que associava textos aos nomes dos autores de forma a transformar ideias em mercadorias e fazer com que os proprietários do capital retirassem daí um lucro. A visão idealizada por Stallman das origens do copyright não reconhece a exploração dos autores exercida durante o sistema inicial de copyright. Esta miopia específica respeitante ao copyright insere-se numa atitude mais ampla de não-enfrentamento das questões econômicas. A “esquerda” (left) no copyleft assemelha-se a um gênero indistinto de libertarismo cujos principais inimigos são os sistemas fechados e opacos e as restrições totalitárias ao acesso à informação em vez do privilégio econômico ou da exploração do trabalho. O copyleft surgiu a partir de uma ética hacker que aspira ao máximo o conhecimento pelo conhecimento. O seu principal objetivo é defender a liberdade de informação das restrições impostas pelo “sistema”, o que explica porque é que se pode encontrar um vasto leque de opiniões políticas entre os hackers. E também explica porque é que a fraternidade que une os hackers entre si – a “esquerda” no copyleft segundo a visão de Stallman – não é a esquerda tal como esta é entendida pela maioria dos ativistas políticos.
A GPL e o copyleft são frequentemente invocados como exemplos do viés anticomercial do movimento do software livre. Mas esse viés não existe. As quatro liberdades exigidas pela GPL – a liberdade de executar, estudar, distribuir e melhorar o código-fonte desde que a mesma liberdade seja transferida para os outros – significa que qualquer restrição adicional – uma cláusula não-comercial, por exemplo – seria não-livre. Manter o software na sua condição “livre” não impede que os programadores possam vender cópias que modificaram com o seu próprio trabalho e também não impede a redistribuição (sem modificação) em troca de um montante por uma organização comercial, desde que acompanhada pela mesma licença e que o código-fonte permaneça acessível. Ao contrário do que alguns entusiastas do software livre afirmam, esta versão de liberdade não suprime a troca, nem é incompatível com uma economia capitalista baseada no roubo da mais-valia. A contradição inerente a este commons deve-se em parte a uma interpretação de proprietário como sinônimo de acesso fechado ou opaco. Proprietário significa que existe um proprietário que proíbe o acesso à informação, que mantém o código-fonte secreto; não quer necessariamente dizer que existe um proprietário que extrai um lucro, apesar de o fato de manter o código-fonte secreto e extrair um lucro coincidir geralmente na prática. Desde que as quatro condições sejam cumpridas, a redistribuição comercial de software livre é não-proprietária. O problema torna-se mais evidente quando estas condições são convertidas para obras baseadas em conteúdo, como poemas, novelas, filmes ou música. Se alguém lança uma novela nos termos de uma licença copyleft e a (editora) Random House a publica e retira um lucro a partir do trabalho do autor, não existe nada de errado com isto desde que o copyleft seja transferido. Uma obra é livre na medida em que pode ser comercialmente apropriada, uma vez que a liberdade é definida como a circulação ilimitada de informação e não como algo livre de exploração.
Não surpreende, por isso, que a principal revisão introduzida quando o copyleft passou a ser aplicado à produção de obras de arte, música e textos tenha sido no sentido de permitir a cópia, modificação e redistribuição desde que para fins não-comerciais. Os Wu Ming defendem a imposição de restrições à utilização comercial ou para fins lucrativos de modo a impedir a exploração parasitária dos trabalhadores culturais. Eles justificam esta restrição e a sua divergência em relação às versões GPL e GFDL (GNU Free Documentation License) do copyleft argumentando que o combate contra a exploração e a luta por uma renumeração justa pelo trabalho tem sido o princípio fundamental da história da esquerda. Outros produtores de conteúdos e editoras de livros (a Verso, por exemplo) alargaram esta restrição ao afirmarem que a cópia, modificação e redistribuição deveria ser não apenas não-comercial mas também fiel ao espírito do original – sem explicarem o que este “espírito” quer dizer. O Indymedia Romênia alterou a sua definição de copyleft para tornar mais claro o significado de “no espírito do original” depois de problemas constantes com o site neofascista Altermedia Romênia, cujas “investidas” abrangiam desde o sequestro do “domínio” indymedia.ro à cópia de textos do Indymedia forjando os respectivos nomes e fontes. As restrições do Indymedia Romênia incluem: a proibição de modificar o nome ou fonte original – uma vez que vai contra a transparência pretendida -, de reproduzir material para proveito monetário – dado que constitui um abuso ao espírito de generosidade – e de reproduzir o material num contexto que viole os direitos de indivíduos ou de grupos mediante a sua discriminação com base na nacionalidade, etnia, género ou preferência sexual – na medida em que contradiz o seu empenho pela igualdade.
Enquanto alguns multiplicaram as restrições, outros rejeitaram qualquer tipo de restrição, incluindo a única restrição imposta pelo copyleft inicial. O movimento em torno da partilha de ficheiros peer-to-peer é o que se assemelha mais à atitude do anticopyright. O melhor exemplo é o blog Copyriot de Rasmus Fleischer do Pyratbiran (Bureau of Piracy), um think-thank contra a propriedade intelectual composto pelos fundadores do Pirate Bay, o tracker de BitTorrent mais utilizado pela comunidade P2P. O lema do Copyriot é “sem copyright, sem licença”. Mas existe uma diferença em relação à tradição mais antiga de anticopyright. Fleischer sustenta que o copyright tornou-se absurdo na era da tecnologia digital porque tem que recorrer a todos os tipos de ficções, como distinções entre enviar (uploading) e baixar (downloading) ou entre produtor e consumidor que, de fato, não existem na comunicação horizontal P2P. O Pyratbiran rejeita o copyright no seu todo – não porque nasceu defeituoso mas porque foi inventado para regular um suporte dispendioso e unidireccional como a imprensa, tendo deixado de corresponder às práticas potenciadas pelas atuais tecnologias de reprodução.
A definição original de copyleft na acepção de Stallman tenta fundar um commons informativo centrado exclusivamente no princípio da liberdade de informação – neste sentido, é uma definição puramente formal, como um imperativo categórico que requer a liberdade de informação para que seja universalizável. O único limite que se coloca ao sentimento de pertença a esta comunidade reside naqueles que não partilham da aspiração à informação livre – eles não são excluídos, recusam-se a participar dado que se recusam a libertar a informação. Outras versões do copyleft tentaram acrescentar restrições adicionais partindo de uma interpretação mais forte da “esquerda” no copyleft, como se este precisasse de se basear não numa liberdade negativa face a imposições mas em princípios positivos como a valorização da cooperação social, a participação não-hierárquica e a não-discriminação em detrimento do lucro. As definições mais restritivas do copyleft tentaram fundar um commons informativo que não se baseia apenas no livre fluxo de informação mas que se considera a si próprio como parte de um movimento social mais vasto que baseia o seu sentimento de fraternidade em princípios esquerdistas comuns. Nas suas várias mutações, o copyleft representa uma abordagem pragmática e racional que reconhece que os limites à liberdade implicam direitos e responsabilidades recíprocas – as diferentes restrições representam interpretações divergentes sobre o que é que esses direitos e responsabilidades deveriam ser. Em contraste, o anticopyright é uma atitude radical que recusa os compromissos pragmáticos e pretende abolir a propriedade intelectual na sua totalidade. O anticopyright afirma uma liberdade que é absoluta e não admite quaisquer limites a esta pretensão. A incompatibilidade entre estas posições coloca um dilema: afirmamos uma liberdade absoluta, sabendo que poderá ser usada contra nós ou moderamos a liberdade ao limitar o commons informativo às comunidades que não irão abusar dela porque partilham o mesmo “espírito”?
O compromisso das Creative Anti-Commons
As contestações à propriedade intelectual tiveram uma história profícua entre os artistas de vanguarda, os produtores de fanzines, músicos radicais e a franja subcultural. Nos dias de hoje, a luta contra a propriedade intelectual é liderada por advogados, professores e membros do governo. Além de os estratos sociais dos atores principais serem muito diferentes – o que por si só poderia não ser um detalhe significativo -, o contexto do combate contra a propriedade intelectual foi também completamente alterado. Antes de professores de Direito como Lawrence Lessig se terem interessado pela propriedade intelectual, o discurso entre os contestatários era contra qualquer espécie de posse – intelectual ou física – sobre o commons. Agora, o palco central é ocupado pelos apoiantes dos privilégios proprietários e econômicos. O argumento já não é o de que o autor é uma ficção e que a propriedade é um roubo, mas sim que o direito de propriedade intelectual precisa ser refreado e reformado porque passou a violar os direitos dos criadores. Lessig critica as recentes alterações na legislação do copyright impostas pelas transnacionais de mídia e os seus poderosos grupos de pressão, o alargamento do copyright para períodos absurdamente longos e outras perversões que constrangem a criatividade dos artistas. Mas ele não coloca em causa o copyright em si, uma vez que considera que é o incentivo mais importante para os artistas criarem. O objetivo consiste em impedir o extremismo e absolutismo reinante na propriedade intelectual e preservar ao mesmo tempo os efeitos benéficos desta.
Na sua apresentação durante a conferência Wizards of OS 4 em Berlim, Lessig elogiou a cultura Read-Write
da partilha livre da autoria colaborativa que tem sido predominante ao longo de grande parte da história da humanidade. Durante o último século esta cultura Read-Write tem sido contrariada pelas leis de propriedade intelectual e convertida numa cultura Read-Only dominada por um regime de controle pelo produtor. Lessig lamenta-se das deturpações recentes do direito do copyright que censuraram o trabalho de artistas que produzem remixes como o DJ Dangermouse (The Grey Album) e Javier Prato (Jesus Cristo: O Musical). Os dois foram ameaçados pelos proprietários legais das músicas utilizadas na produção das suas obras, tal como John Oswald e os Negativland o tinham sido antes deles. Nestes casos, os desígnios dos artistas, que foram tratados como meros consumidores perante a lei, foram submetidos ao controle exercido pelos produtores – os Beatles e Gloria Gaynor, respectivamente – e os seus representantes legais. O problema reside no fato de que o controle dos produtores está criando uma cultura Read-Only e destruindo o dinamismo e a diversidade da produção criativa. Está promovendo os interesses tacanhos de uns poucos “produtores” privilegiados às custas de todos os outros. Lessig contrasta o controle do produtor com o commons cultural – uma reserva comum de valor que todos podem utilizar e em que todos podem contribuir. O commons recusa o controle do produtor e insiste na liberdade dos consumidores. O “livre” na cultura livre não se refere à liberdade imposta pelo estado que concede aos produtores o controle sobre a utilização da “sua” obra mas sim à liberdade natural dos consumidores de utilizar a reserva cultural comum. Em princípio, a noção de um commons cultural revoga a distinção entre produtores e consumidores, vistos como agentes com os mesmos direitos num processo em curso.
Lessig sustenta que em resultado de uma produção entre pares baseada num commons e, mais especificamente, da associação Creative Commons, a possibilidade de uma cultura Read-Write está a renascer. Mas será a Creative Commons de facto um commons? De acordo com o seu site, a Creative Commons define a gama de possibilidades entre o copyright total – todos os direitos reservados – e o domínio público – nenhuns direitos reservados. As nossas licenças ajudam-no a manter o seu copyright sem impedirem que outros façam determinado uso da sua obra – um copyright de “alguns direitos reservados”. O sentido é evidente: a Creative Commons serve para ajudá-lo a “si”, o produtor, a manter o controle sobre a “sua” obra. Você pode escolher entre uma série de restrições que pretende aplicar à “sua” obra, como proibir a reprodução, a criação de obras derivadas ou a utilização comercial. Parte-se do princípio que, sendo você um autor-produtor, tudo o que crie e que afirme que é propriedade sua. O direito do consumidor não é mencionado, tal como a distinção entre produtores e consumidores não é disputada. O Creative Commons não rejeita o controle exercido pelo produtor; antes, legitima-o. E em vez de revogar a distinção entre produtor e consumidor, impõe-a. Ele alarga o quadro legal de modo a que os produtores neguem aos consumidores a possibilidade de criar valor de uso ou valor de troca a partir do recurso comum.
Se os Beatles ou Gloria Gaynor tivessem publicado a sua obra segundo o modelo Creative Commons, o lançamento do The Grey Album ou do Jesus Cristo: O Musical seria da mesma forma uma opção deles e não do DJ Dangermouse ou de Javier Patro. Os representantes legais dos Beatles e de Gloria Gaynor poderiam ter utilizado licenças CC para, com a mesma facilidade, impor o seu controle sobre a utilização da sua obra. E mesmo o problema apresentado por Lessig relativo ao controle exercido pelo produtor não é resolvido pela “solução” do Creative Commons, na medida em que o produtor detém o direito exclusivo de escolher o grau de liberdade a conceder ao consumidor, um direito que Lessig nunca contesta. A missão do Creative Commons no sentido de conceder aos produtores a “liberdade” de escolher o grau de restrições a aplicar à publicação das suas obras contradiz as condições reais da produção baseada num commons. A referência de Lessig ao DJ Danger Mouse e a Javier Prato como exemplos de forma a promover a causa da Creative Commons é uma desonestidade extravagante.
Uma desonestidade semelhante surge no elogio dirigido por Lessig ao movimento do software livre quando afirma que a arquitetura deste garante (tanto tecnologica como legalmente, sob a forma das suas licenças) a possibilidade de usar o recurso comum do código-fonte. Apesar de sustentar que o Creative Commons alarga os princípios do movimento do software livre, a liberdade que ele concede aos criadores no sentido de escolherem como é que querem que as suas obras sejam usadas é muito diferente da liberdade que a GPL concede aos utilizadores de copiar, modificar e distribuir o software, desde que a mesma liberdade seja transferida para os demais. Stallman fez recentemente uma declaração onde rejeitava o Creative Commons na sua totalidade, na medida em que algumas das suas licenças são livres enquanto que outras não são, o que leva as pessoas a confundirem a marca comum como se fosse algo consistente quando, na verdade, não existe um critério comum e uma posição ética por detrás desta marca. Enquanto o copyleft requer a posse legal apenas para renunciá-la na prática, as referências à posse feitas pela Creative Commons deixam de ser uma inversão irônica para passarem a ser reais. As licenças CC permitem colocar restrições arbitrárias à liberdade dos utilizadores de acordo com as preferências e os gostos particulares de um autor. Neste sentido, a Creative Commons é uma versão mais rebuscada do copyright. Não contesta o regime de copyright como um todo nem preserva o seu estatuto legal de modo a virar a prática do copyright do avesso, como o copyleft o faz.
O domínio público, o anticopyright e o copyleft são, cada um deles, esforços no sentido da criação de um commons, um espaço partilhado de não-posse que pode ser livremente utilizado por todos. As condições de utilização podem ser diferentes, de acordo com as várias interpretações de direitos e responsabilidades, mas estes direitos são direitos comuns e os recursos são partilhados equitativamente por toda a comunidade – o seu uso não é decidido arbitrariamente, caso a caso e obedecendo aos caprichos dos membros individuais. Em contraste, a Creative Commons é um esforço no sentido de usar um regime de posse de propriedade (direito de copyright) para criar um recurso culturalmente partilhado que não é detido por ninguém. Os seus bens culturais – que no seu conjunto formam uma amálgama incoerente – não pertencem à comunidade, uma vez que a possibilidade de usá-los depende da autorização dos autores individuais. A Creative Commons é, na verdade, um anti-commons que difunde uma lógica capitalista de privatização debaixo de um nome que induz deliberadamente ao erro. O seu objetivo consiste em ajudar os donos de propriedade intelectual a recuperarem o atraso diante o ritmo rápido a que a troca de informação se processa. E isto mediante a disponibilização não tanto de informação, mas de definições mais sofisticadas para vários graus de propriedade e de controle pelo produtor.
O que começou como um movimento pela abolição da propriedade intelectual transformou-se num movimento de personalização das licenças dos proprietários. Quase sem se dar por isso, o que era antes um perigoso movimento de radicais, hackers e piratas é agora o domínio de reformistas, revisionistas e defensores do capitalismo. Quando o capital se vê ameaçado, ele coopta a sua oposição. Já vimos várias vezes este cenário ao longo da história – o seu exemplo mais espectacular é a transformação dos conselhos de trabalhadores em regime de autogestão num movimento sindical que negocia contratos legais com os proprietários de empresas. O Creative Commons é uma subversão semelhante que em vez de contestar o “direito” à propriedade privada, tenta obter pequenas concessões num campo de jogos em que o jogo e as suas regras já estão previamente determinadas. O efeito real do Creative Commons reside em confinar a contestação política à esfera do que já é admissível.
Ao mesmo tempo que reduz este campo de contestação, o Creative Commons apresenta-se a si próprio como radical, como a vanguarda da batalha contra a propriedade intelectual. O Creative Commons tornou-se uma espécie de ortodoxia por omissão no licenciamento não comercial e uma causa popular entre os artistas e intelectuais que geralmente se consideram como sendo de esquerda e contra o regime de propriedade intelectual em particular. A marca Creative Commons é invocada de um modo moralista em inúmeros sites, blogs, discursos, ensaios, obras de arte e músicas como se constituísse a condição necessária e suficiente para a revolução iminente de uma verdadeira “cultura livre”. O Creative Commons faz parte de um movimento mais vasto de copyfight, que é definido como uma luta para manter a propriedade intelectual amarrada à sua finalidade inicial e impedir que se desvie demasiado. Os indivíduos e grupos associados a este movimento (John Perry Barlow, David Bollier, James Boyle, Creative Commons, EFF, freeculture.org, Larry Lessig, Jessica Litman, Eric Raymond, Slashdot.org) defendem aquilo que Boyle designou como sendo uma propriedade intelectual mais inteligente ou uma reforma da propriedade intelectual que não ameace a liberdade de expressão, a democracia, a concorrência, a inovação, a educação, o progresso da ciência e outras coisas que são fundamentais para o nosso (?) bem-estar social, cultural e econômico.
Numa repetição sinistra dos combates contra o copyright que surgiram durante o período do Romantismo, os excessos da forma capitalista de propriedade intelectual são opostos, embora através do recurso à sua própria linguagem e pressupostos. O Creative Commons preserva as ideias de originalidade, criatividade e direitos de propriedade do Romantismo e, de forma semelhante a este, considera que a “cultura livre” é uma esfera separada que existe num estado fenomenal de isolamento em relação ao mundo da produção material. Desde o século XVIII que as ideias de “criatividade” e de “originalidade” têm estado inextricavelmente ligadas a um anti-commons de conhecimento. A Creative Commons não é exceção. Não há dúvida que o Creative Commons pode chamar a atenção para algumas das questões da luta permanente contra a propriedade intelectual. Mas ele é insuficiente na melhor das hipóteses e, na pior, apenas mais uma tentativa dos defensores da propriedade de confundir o discurso, envenenar o poço e excluir qualquer análise revolucionária.
Este texto resultou de uma série de conversas e de trocas de correspondência entre Joanne Richardson e Dmytri Kleiner. Muito obrigado a tod(x)s os que contribuíram para a sua elaboração: Saul Albert, Mikhail Bakunin, David Berry, Critical Art Ensemble, Johann Gottlieb Fichte, Michel Foucault, Martin Fredriksson, Marci Hamilton, Carla Hesse, Benjamin Mako Hill, Stewart Home, Dan Hunter, Mark Lemley, Lawrence Lessig, Karl Marx, Giles Moss, Milton Mueller, Piratbyran, Pierre-Joseph Proudhon, Toni Prug, Samuel Richardson, Patrice Riemens, Mark Rose, Pamela Samuelson, a International Situacionista, Johan Soderberg, Richard Stallman, Kathryn Temple, Benjamin Tucker, Jason Toynbee, Tristan Tzara, Wikipedia, Martha Woodmansee, Wu Ming.
Adaptado da tradução de Miguel Caetano.
Berlim, 2006. Anticopyright. Todos os direitos dispersos.
O autor nem sempre existiu. A imagem do autor como uma fonte de originalidade, um gênio conduzido por alguma compulsão secreta de criar obras de arte a partir de uma torrente espontânea de sentimentos poderosos, é uma invenção do século XVIII. Esta imagem continua a influenciar a forma como as pessoas falam a respeito dos “grandes artistas” da história e também se infiltra nas afirmações mais modestas do regime de propriedade intelectual segundo as quais os autores possuem ideias originais que exprimem a sua personalidade única, tendo por isso um direito natural a exercer a posse das suas obras – ou de vender os seus direitos, se o desejarem. Apesar destas ideias parecerem hoje auto-evidentes, elas foram uma anormalidade no seu tempo. As diferentes tradições pré-Iluministas não consideravam que as ideias fossem invenções originais que pudessem ser detidas, uma vez que o conhecimento era mantido em comum. A arte e a filosofia resultavam da sabedoria acumulada do passado. Não existiam autores – na acepção de criadores originais e autoridades incontestáveis – mas apenas mestres de vários ofícios (escultura, pintura, poesia, filosofia) cuja função era apropriar o conhecimento existente, reorganizá-lo, adaptá-lo à sua época e transmiti-lo mais além. Os artistas e sábios eram mensageiros e a sua capacidade de revelar o conhecimento era considerada uma dádiva dos deuses. A arte era regida por uma economia da dádiva: o patronato aristocrata era uma dádiva em troca da dádiva simbólica da obra. Mesmo a visão do mundo neoclássica que antecedeu imediatamente o Romantismo considerava a arte como sendo uma imitação da natureza e o artista como um artesão que transmitia ideias pertencentes a uma cultura comum.
A revolução Romântica marcou o nascimento da autoria proprietária. Aboliu a crença de que as criações do intelecto humano eram dádivas dos deuses que podiam ser controladas por decretos reais. Mas embora tenha libertado a capacidade produtiva dos indivíduos de causas supranaturais e do controlo político, ela identificou esta capacidade na soberania do indivíduo, ignorando o contexto social de produção mais vasto. E acorrentou a produção do conhecimento à ideia de propriedade privada que dominou o discurso filosófico e político desde Locke. A redefinição do artista enquanto criador original efectuada pelo Romantismo foi um efeito da combinação de transformações políticas, económicas e tecnológicas. A produção industrial introduzida ao longo do século XVIII conduziu a uma mercantilização crescente. A vedação das terras comuns obrigou muitos agricultores que obtinham o seu sustento da terra a tornarem-se trabalhadores em cidades industriais e o domínio das relações de mercado começou a permear todas as esferas da vida. O crescimento acentuado da literacia criou um novo público de classe média composto por consumidores – um requisito necessário para a comercialização da cultura. A capacidade da imprensa de reproduzir e distribuir em massa a palavra escrita destruiu valores estabelecidos, deslocando a arte das cortes para os cafés e salões de chá. E a medida que o mundo feudal do patronato definhava, juntamente com o sistema de soberania política que o amparava, escritores e artistas tentaram pela primeira vez subsistir dos lucros gerados com a venda das suas obras.
O Romantismo surgiu a partir de uma reação contraditória a estes desenvolvimentos. Era uma oposição ao capitalismo, embora expressa através da linguagem da propriedade privada e dos princípios herdados do discurso filosófico que legitimavam o modo de produção do capitalismo. O Romantismo denunciou a alienação e a perda da independência engendrada pela produção industrial e pelas relações de mercado e apresentou o artista em oposição heróica ao ímpeto pelo lucro. Adotando a metáfora de crescimento orgânico utilizada por Rousseau e a noção de gênio como força inata que criava a partir do interior de si empregada por Kant, os autores românticos celebraram o artista como um ser indomado e espontâneo (como a própria natureza), conduzido pela necessidade intuitiva e indiferente às normas e convenções sociais. Ao situar a obra de arte num sujeito natural e pré-social, o seu significado estava livre de ser contaminado pela vida quotidiana. A arte não era nem pública, nem social, não sendo também semelhante ao trabalho dos operários que produziam mercadorias. Era auto-reflexiva, providenciando uma janela para uma subjectividade transcendente.
Em meados da década de 1750, Edward Young e Samuel Richardson foram os primeiros a defenderem que a obra de um autor, uma vez que era fruto da sua personalidade única, pertencia na verdade mais a ele do que os objetos materiais produzidos por um operário pertenciam a este. Esta ideia encontrou os seus apoiantes mais entusiásticos entre os românticos alemães e ingleses, embora também tenha repercutido em círculos literários mais vastos. Em 1772 Lessing estabeleceu uma relação entre a originalidade e os direitos sobre as ideias e defendeu que os artistas tinham direito aos rendimentos econômicos gerados pelas suas obras. Apercebendo-se de que o problema em definir ideias como propriedade consistia no fato de que muitas pessoas pareciam partilhar as mesmas ideias, Fichte sustentou em 1791 que para que uma ideia fosse considerada como propriedade ela teria que possuir alguma característica distinta que permitisse que apenas um único indivíduo tivesse a sua pretensão. Essa qualidade não residia na ideia em si própria mas na forma única que o autor empregava para comunicá-la. Ideias que eram comuns podiam tornar-se propriedade privada através da forma original de expressão utilizada pelo autor. É esta distinção entre o conteúdo (as ideias) e a forma (o estilo e expressão específicos dessas ideias) que esteve na base do direito de propriedade intelectual. Por volta de 1830, Wordsworth introduziu na prática a noção de gênio – definida como a introdução de um novo elemento no universo intelectual – em ações legais nas guerras pelo copyright. Defendendo que o gênio artístico era frequentemente ignorado pelos contemporâneos, sendo apenas reconhecido após a morte do autor. tornou-se um ativista pela extensão do copyright para 60 anos após a morte de um autor. A dualidade de Wordsworth ao invocar o autor não só como um gênio solitário mas também como um agente econômico interessado era sintomática da cumplicidade entre a estética romântica e a lógica da mercantilização. A visão romântica do mundo aspirava a elevar a arte a um espaço puro superior à produção de mercadorias, mas a sua definição da obra criativa enquanto propriedade reintegrava a arte na própria esfera que procurava negar.
A existência de “direitos de cópia” (copy rights) precede as noções setecentistas do direito do autor à propriedade. Entre os séculos XVI e XVII as licenças reais concederam direitos exclusivos a alguns livreiros de copiar (ou imprimir) determinados textos. Em 1557, a Rainha Ana da Inglaterra outorgou um monopólio exclusivo de impressão a uma corporação de livreiros de Londres, a Stationers Company, porque assim podia controlar quais os livros que eram publicados ou banidos. Os primeiros copyrights consistiram nos direitos dos livreiros à impressão de cópias, tendo sido criados devido às necessidades ideológicas das monarquias absolutas de controlar o conhecimento e censurar as vozes discordantes. Depois do Licensing Act ter atingido o seu termo em 1694, o monopólio da Stationers Company foi ameaçado pelos livreiros de província, aqueles da Escócia e da Irlanda que eram designados de “piratas”. A Stationers Company requereu ao Parlamento uma nova lei para alargar o seu monopólio sob o copyright. Mas esta era uma Inglaterra diferente daquela de 1557: o Parlamento tinha executado o Rei Carlos I em 1649, abolido a monarquia e instalado uma república presidida por Cromwell, restaurado a monarquia com Carlos II, deposto Jaime II na Revolução de 1688 e aprovado em 1689 a Bill of Rights, o primeiro decreto de soberania constitucional moderna. O Statute of Anne, aprovado em 1710 pelo Parlamento, constitui um duro golpe contra a Stationers Company. A lei proclamou os autores (e não os editores) como os proprietários das suas obras e restringiu o prazo do copyright para 14 anos no caso de novos livros e 21 anos para as obras anteriores. A lei, cujo subtítulo era “Um Decreto para o Fomento da Instrução, ao conferir o direito à Cópia de Livros Impressos aos Autores ou compradores dessas Cópias, durante os períodos aí mencionados”, tentava compatibilizar as ideias filosóficas do Iluminismo com os interesses econômicos de um capitalismo nascente pela criação de um mercado do conhecimento assentado na concorrência.
A intenção da lei não era criar um copyright do autor mas antes derrubar o monopólio da Stationers Company. Uma vez que este monopólio se encontrava excessivamente instituído para ser atacado superficialmente, a reversão da propriedade do editor para o autor proporcionou uma base sólida. Depois da aprovação do Statute of Anne, a Stationers Company ignorou as suas restrições temporais, tendo-se iniciado nos tribunais uma batalha pela propriedade literária que se prolongou por mais de 50 anos. No caso Millar vs. Taylor (1769), um editor londrino pertencente à Stationers Company ganhou um veredicto que confirmava um direito de common law que estabelecia a perpetuidade do copyright, não obstante o Statute of Anne. Esta decisão foi revogada no caso decisivo de Donaldson vs. Becket (1774); A sentença favorável ao livreiro escocês Donaldson rejeitou o argumento em favor da perpetuidade do copyright e manteve os limites estatuídos no Statute of Anne. Os editores processavam-se uns aos outros nos tribunais, invocando os direitos dos autores como um pretexto na sua batalha pelo poder econômico. A noção do autor como um criador com um direito natural a exercer a posse sobre ideias pode ter sido inventada por artistas e filósofos, mas foram os editores que lucraram com ela. As leis não são redigidas por poetas, mas sim por estados e estes existem para impor o privilégio econômico, adotando qualquer legitimação filosófica que acharem conveniente a determinada altura. O Statute of Anne codificou a forma capitalista da relação autor-editor: desde o início, o copyright estava ligado ao autor, sendo contudo automaticamente assumido pelos editores através dos mecanismos “neutrais” do mercado. Em teoria, os autores tinham o direito de possuir os frutos do seu trabalho, mas uma vez que criavam ideias imateriais e que careciam dos recursos tecnológicos para produzirem livros, tinham que vender os seus direitos a um indivíduo que dispusesse capital suficiente para explorá-los. Essencialmente, isso significava terem que vender o seu trabalho. A exploração do autor estava impregnada no regime de propriedade intelectual desde a sua concepção.
As leis de propriedade intelectual mudaram com os ventos da história de forma a justificarem interesses específicos. Os países que exportavam propriedade intelectual favoreceram a noção dos direitos naturais dos autores, enquanto que as nações em desenvolvimento, que eram sobretudo importadoras, insistiram numa interpretação mais utilitarista que limitava o copyright com base no interesse público. Durante o século XIX, as empresas editoriais americanas justificaram a publicação não-autorizada de escritores britânicos com o fundamento utilitarista de que o interesse do público em dispor de grandes obras ao preço mais barato possível prevalecia sobre os direitos dos autores. Pelo início do século XX, à medida que os autores americanos se iam tornando mais populares na Europa e as empresas editoriais americanas se tornavam exportadoras de propriedade intelectual, a lei foi oportunamente alterada, passando subitamente a reconhecer os direitos naturais dos autores a possuir as suas ideias e ignorando as teorias anteriores relativas à utilidade social. Durante o século XX, o direito de propriedade intelectual ampliou os direitos dos proprietários de várias formas: através do aumento da duração da copyright para 70 anos após a morte, mediante a padronização dos regimes internacionais de propriedade intelectual de modo a privilegiar as empresas de países economicamente dominantes (alcançada com a transferência das funções de regulação da propriedade intelectual da Organização Mundial da Propriedade Intelectual para a Organização Mundial do Comércio) e por intermédio da redefinição dos meios de proteção e tipos de propriedade intelectual que poderiam beneficiar de proteção. Até meados do século XIX, ocopyright implicava apenas a protecção contra a cópia literal. Até ao final do século XIX, isto foi redefinido de forma a que (contrariando a definição de Fichte) a propriedade protegida pelo copyright consistisse não apenas na forma mas também na substância – o que significava que as traduções passavam também a ser abrangidas pelo copyright. Mais tarde, esta proteção foi alargada a toda e qualquer adaptação próxima do original, como o enredo de uma novela ou de uma peça de teatro ou a utilização de personagens de um filme ou de um livro para criar uma sequela. Os tipos de propriedade protegidos pelo copyright também aumentaram exponencialmente. No início, o copyright era uma regulamentação para a reprodução de material impresso. Mas com cada nova tecnologia de reprodução (palavras, sons, fotografias, imagens em movimento, informação digital), a legislação foi sendo alterada. Começando por proteger apenas textos, no início do século XX o copyright abrangia todo o tipo de “obras”. Em 1983, no âmbito do julgamento de um caso decisivo, foi argumentado que o software de computador também era uma “obra” de autoria original, sendo análoga à poesia, música e pintura na sua capacidade de captar a originalidade e imaginação criativa do autor. Isto demonstra bem os contextos completamente diferentes em que o mito do gênio criativo foi invocado para legitimar interesses econômicos. E em cada um destes casos decisivos, a atenção afastou-se sempre das empresas (as verdadeiras beneficiadas) para se centrar na figura comiserabilista do autor, com quem as pessoas se identificam e que desejam recompensar.
A Propriedade Intelectual enquanto Fraude
Se como Proudhon afirmou na sua célebre frase, a propriedade é um roubo, então a propriedade intelectual é uma fraude. A propriedade é um roubo porque o detentor da propriedade não tem qualquer direito legítimo ao fruto do trabalho. Os proprietários não conseguiam extrair mais do que os custos de reprodução dos instrumentos que eles contribuíam para o processo senão através da obstrução do acesso por parte dos trabalhadores aos meios de produção. Nas palavras de Benjamin Tucker, o credor tem direito à devolução do montante integral e nada mais. Quando os camponeses da era pré-industrial se viram impedidos pelas novas vedações de terem acesso à terra comum, pode-se dizer que a sua terra lhes foi roubada. Mas se a propriedade física pode ser roubada, será que a inteligência ou as ideias podem ser roubadas? Se a vossa terra vos é roubada, deixam de a poder usar, exceto segundo as condições impostas pelo novo “proprietário” privado. Se a posse de uma ideia é análoga à posse de propriedade material, ela deveria ser sujeita às mesmas condições de troca econômica, confisco e apreensão – e em caso de ser apreendida deixaria então de ser a propriedade do seu dono. Mas se a vossa ideia é utilizada por outros, vocês não perdem a capacidade de utilizá-la – então, o que é que foi de fato roubado? A noção tradicional de propriedade, como algo que pode ser detido em exclusividade, é irreconciliável com intangíveis como as ideias. Ao contrário de um objeto material, que apenas pode existir num lugar a cada momento, as ideias não são rivais nem exclusivas. Um poema não deixa de pertencer menos ao autor por existir em milhares de memórias.
Propriedade intelectual é um conceito desprovido de sentido – as ideias não funcionam como a terra e não podem ser detidas ou alienadas. Todos os debates sobre a propriedade intelectual travados nos tribunais e entre os panfletários ao longo do século XVIII evidenciaram esta contradição. O que estes debates tornaram óbvio é que os direitos à posse de ideias teriam que ser qualitativamente diferentes dos direitos à posse de propriedade material, e que a facilidade de reproduzir ideias colocava graves problemas à imposição desses direitos. Em simultâneo com os debates filosóficos acerca da natureza da propriedade intelectual, começou a surgir um discurso descomunal que criminalizava a pirataria e o plágio. A tirada mais famosa contra a pirataria foram os opúsculos publicados por Samuel Richardson em 1753 onde denunciava as reimpressões irlandesas não autorizadas da sua novela Sir Charles Grandinson. Contrastando a esclarecida indústria livreira britânica com a selvageria e a imoralidade da pirataria irlandesa, Richardson criminaliza as reimpressões como se se tratassem de roubos. Na verdade, as suas afirmações não tinham qualquer base legal uma vez que a Irlanda não estava sujeita ao regime de propriedade intelectual da Inglaterra. E o que ele denunciava como sendo pirataria, os editores irlandesas encaravam como uma retaliação justa contra o monopólio da Stationers Company. Um ano antes dos opúsculos de Richardson, tinham ocorrido motins nas ruas de Dublin contra as políticas fiscais britânicas, que se inseriam numa luta política mais vasta da independência irlandesa face à Grã-Bretanha. Ao afirmar que esta Causa era a Causa da Literatura em geral, Richardson concebeu a batalha pela propriedade literária em termos puramente estéticos, isolando-a do seu contexto político e econômico. Mas o seu recurso à metáfora da pirataria reavivava a história colonial da Grã-Bretanha e a sua repressão brutal dos piratas do mar. A própria pirataria marítima do século XVIII tem sido interpretada como uma forma de guerra de guerrilha contra o imperialismo britânico, tendo também criado modelos alternativos de trabalho, propriedade e relações sociais baseadas no espírito da democracia, partilha e assistência mútua.
A descrição que Richardson dava da originalidade e da propriedade excluia qualquer noção de apropriação e transmissão cultural. Nunca antes tinha um trabalho pertencido mais a um homem do que este é dele, argumentava, retratando a sua novela como se fosse nova em todos os sentidos da palavra. A sua afirmação era particularmente irônica, dado que ele próprio se tinha apropriado, tanto na novela como nos opúsculos, das histórias de pirataria e plágio provenientes da literatura popular do seu tempo, bem como de O Etíope de Heliodoro, um romance do século III d.c. que foi amplamente imitado ao longo do século XVIII. A ideia de originalidade e o individualismo possessivo que engendrou criaram uma onda gigantesca de paranóia entre os “gênios” autores, cujo receio de serem roubados parecia disfarçar um medo mais básico de que a sua pretensão à originalidade não passasse de uma ficção.
A criação artística não surge ex nihilo (a partir do nada) dos cérebros de indivíduos como se fosse uma linguagem privada; ela foi sempre uma prática social. As ideias não são originais, elas baseiam-se em estratos de conhecimento acumulados ao longo da história. A partir destes estratos comuns, os artistas criam obras que possuem especificidades e inovações inequívocas. Todas as obras criativas combinam ideias, palavras e imagens provenientes da história e do seu contexto contemporâneo. Antes do século XVIII, os poetas citavam os seus predecessores e fontes de inspiração sem reconhecimento formal e os dramaturgos apropriavam-se à vontade dos enredos e diálogos de fontes anteriores sem atribuição. Homero baseou a Ilíada e a Odisseia em tradições orais que remontavam a séculos atrás. A Eneida de Virgílio inspira-se fortemente em Homero. Shakespeare tomou emprestado muitos dos seus enredos e diálogos narrativos de Holinshed. Isto não quer dizer que a ideia de plágio não existia antes do século XVIII, mas que a sua definição alterou-se radicalmente. O termo plagiador (literalmente, raptor) foi pela primeira vez usado por Marcial no primeiro século d.c. para descrever alguém que raptava os seus poemas ao copiá-los por inteiro e fazia-os circular com o nome do copista. O plágio era uma falsa usurpação do trabalho de outro. Mas o fato de que a nova obra tinha passagens semelhantes ou expressões idênticas à inicial não era considerado plágio desde que a nova obra possuísse os seus próprios méritos estéticos. Depois da invenção do gênio criativo, as práticas de colaboração, apropriação e transmissão foram deliberadamente esquecidas. Quando Coleridge, Stendhall, Wilde e T.S. Eliot foram acusados de plágio por incluírem expressões dos seus predecessores nas suas obras, isto refletiu uma redefinição do plágio em concordância com a acepção moderna de autoria possessiva e propriedade exclusiva. O “roubo” de que eram acusados consiste precisamente naquilo que todos os escritores anteriores consideravam natural.
As ideias são virais, elas associam-se a outras ideias, mudam de forma e migram para territórios desconhecidos. O regime de propriedade intelectual restringe a promiscuidade das ideias e encurrala-as dentro de vedações artificiais, extraindo benefícios exclusivos da sua posse e controle. A propriedade intelectual é uma fraude – um privilégio legal para representar-se a si próprio de um modo falso enquanto único “proprietário” de uma ideia, expressão ou técnica e para cobrar uma taxa a todos que pretendam captar, exprimir ou aplicar esta “propriedade” na sua própria produção. Não é o plágio que priva o “proprietário” do uso de uma ideia; é a propriedade intelectual, apoiada pela violência invasora do estado, que priva todos os restantes de usá-la na sua cultura comum. O fundamento para essa privação é a ficção legal do autor enquanto indivíduo soberano que cria obras originais a partir da fonte da sua imaginação, tendo por isso um direito natural e exclusivo de posse. Foucault desmascarou a autoria como sendo o princípio funcional que trava a livre circulação, a livre manipulação, a livre composição, decomposição e recomposição do conhecimento. O autor-função representa um forma de despotismo sobre a proliferação de ideias. Os efeitos deste despotismo e do sistema de propriedade intelectual que protege e preserva consistem em roubar a nossa memória cultural, censurar as nossas palavras e acorrentar a nossa imaginação à lei.
E, contudo, os artistas continuam a sentir-se lisonjeados com a sua associação a este mito do gênio criativo, fazendo vista grossa ao modo como é empregue para justificar a sua exploração e alargar o privilégio da elite detentora da propriedade. O copyright coloca autor contra autor numa guerra de competição pela originalidade – os seus efeitos não são apenas econômicos pois também naturaliza um determinado processo de produção de conhecimento, deslegitima a noção de uma cultura comum e danifica as relações sociais. Os artistas não são encorajados a partilhar os seus pensamentos, expressões e obras ou a contribuir para um fundo comum de criatividade. Em vez disso, protegem ciosamente a sua “propriedade” dos outros, que encaram como potenciais concorrentes, espiões e ladrões deitados à espera de surrupiar e violar as suas ideias originais. Esta é uma visão do mundo da arte criada à imagem do próprio capitalismo, cujo objetivo fundamental é fazer com que as empresas possam apropriar-se dos produtos alienados dos seus trabalhadores intelectuais.
A Revolta Contra a Propriedade Intelectual
A apropriação privada das ideias ao longo dos últimos dois séculos não conseguiu erradicar totalmente a memória de uma cultura comum ou o reconhecimento de que o conhecimento se desenvolve quando as ideias, palavras, sons e imagens podem ser livremente utilizados por todos. Desde o surgimento do autor proprietário que diferentes indivíduos e grupos têm desafiado o regime de propriedade intelectual e o “direito” que concedeu a alguns indivíduos privados de “deterem” obras criativas impedindo ao mesmo tempo que outros as utilizem e reinterpretem. Nas suas Poésies de 1870, Lautréamont apelava a um retorno a uma poesia impessoal, uma poesia escrita por todos. O plágio é necessário, acrescentava. O Progresso assim o exige. O plágio capta o essencial da frase de um autor, emprega as suas expressões, elimina uma ideia falsa e a substitui pela correta. A sua definição subverteu o mito da criatividade individual, que foi utilizado para justificar relações de propriedade em nome do progresso quando na verdade, ao privatizar a cultura, entravava o progresso. A resposta natural foi reapropriar a cultura enquanto esfera de produção coletiva sem reconhecer as vedações artificiais colocadas à autoria. A frase de Lautréamont tornou-se uma referência para as vanguardas artísticas do século XX. O Dada rejeitou a originalidade e considerou que toda a produção artística consistia na reciclagem e remontagem – desde os ready-mades de Duchamp à regra de Tzara para a composição de poemas a partir de recortes de jornais, passando pelas fotomontagens de Hoech, Hausmann e Heartfield. O Dada também questionou a ideia do artista como um gênio solitário e da arte como uma esfera separa através da produção coletiva de não apenas objetos de arte e textos, mas também de notícias falsas, intervenções em encontros políticos e manifestações nas ruas. O seu ataque contra os valores artísticos era uma revolta contra os princípios capitalistas que os fizeram surgir.
As ideias dadaístas foram desenvolvidas de um modo mais sistemático numa teoria pelos Situacionistas (ainda que esta padecesse no tocante à prática concreta). A Internacional Situacionista reconheceu que o détournement – o desvio ou a recodificação dos significados prevalentes em obras de arte, filmes, anúncios e tiras de quadrinhos – devia muito às práticas do dadaísmo, embora com uma diferença. Eles viam o Dada como uma crítica negativa das imagens dominantes que dependia do reconhecimento fácil da imagem negada e definiam o détournement como uma reutilização positiva dos fragmentos existentes enquanto meros elementos na produção de uma nova obra. O détournement não era tanto um antagonismo à tradição; acentuava a reinvenção de um novo mundo a partir dos destroços do antigo. E implicitamente, a revolução não era bem uma insurreição contra o passado, mas antes o aprender a viver de uma forma diferente mediante a criação de novas práticas e formas de comportamento. Estas formas de comportamento também incluiam textos coletivos, frequentemente anônimos, e uma rejeição explícita do regime de copyright mediante a afixação do rótulo “sem copyright” ou “anticopyright” nas suas obras, juntamente com as normas de uso: todos os textos contidos neste livro podem ser livremente reproduzidos, traduzidos ou adaptados mesmo sem referir a fonte.
Foram estas práticas gêmeas do détournement (o plágio necessário de Lautrémont) e do anticopyright que inspiraram muitas práticas artísticas e subculturais entre as décadas de 70 e 90. John Oswald começou a fazer colagens de sons que remixavam obras protegidas pelo copyright durante os anos 70. Em 1985 inventou o termo plunderfonia (plunderphonics, ou seja, “o saque de som”) para designar a prática da pirataria de áudio enquanto prerrogativa composicional, que ele e outros tinham praticado. O lema de Oswald era: se a criatividade é um campo, então o copyright é a cerca. Plunderphonics, o seu álbum de 1989, que continha 25 faixas que remisturavam material retirado de Beenthoven e Michael Jackson, entre outros, foi ameaçado com um processo legal por violação do copyright. Os Negativland tornaram-se a mais ínfame das bandas plunderphonic depois da sua paródia à música “I Still Haven’t Found What I’m Looking For” dos U2 ter sido processada pela companhia discográfica do U2 pela violação do direito de copyright e de marca registada. Os plundervisuais (plundervisuals, “saque de imagens”) possuem também uma longa tradição. O cinema de manipulação de imagens recuperadas de outros filmes (found footage) começa com o trabalho de Bruce Connor nos anos 50, mas tornou-se mais predominante depois da década de 70 com Chick Strand, Mathew Arnold, Craig Baldwin e Keith Sanborn. Com a invenção do gravador de vídeo, a prática do scratch de video, que subvertia as imagens gravadas diretamente dos programas e anúncios de televisão, tornou-se muito popular durante os anos 80 devido à relativa facilidade de produção que oferecia em comparação com a junção de película de celulóide do found film. Uma forma de plágio mais despolitizada e pós-modernista também conquistou ampla reputação nos círculos literários e artísticos durante a década de 90 com as novelas de Kathy Acker – o seu Empire of the Senseless plagiou um capítulo inteiro de Neuromancer de William Gibson, à parte algumas pequenas modificações – e com as apropriações de Sherrie Levine de imagens de Walker Evans, Van Gogh e Duchamp.
Stewart Home, um célebre defensor do plágio e organizador de vários Festivais do Plágio entre 1988 e 1989, tem também advogado a utilização de nomes múltiplos como uma táctica para desafiar o mito do gênio criativo. A diferença significativa é que enquanto que o plágio pode ser facilmente recuperado como uma forma de arte – atente-se na vedetização de plagiadores como Kathy Acker ou Sherrie Levine -, a utilização de nomes múltiplos exige uma abnegação que desvia a atenção do nome do autor. A utilização de nomes múltiplos retrocede ao Neoísmo, que encorajava os artistas a trabalharem em conjunto com o nome partilhado de Monty Cantsin. Depois da sua ruptura com o Neoísmo, Home e outros começaram a usar o nome Karen Eliot. A prática também pegou na Itália, onde o nome Luther Blisset foi empregue por centenas de artistas e ativistas entre 1994 e 1999. Luther Blisset tornou-se numa espécie de Robin Hood da era da informação, pregando rebuscadas partidas à indústria cultural, sempre admitindo a responsabilidade e explicando que falhas no sistema tinham sido exploradas para semear uma história falsa. Depois do suicídio simbólico de Luther Blissett em 1999, cinco escritores que participavam ativamente no movimento inventaram o pseudônimo coletivo Wu Ming, que em chinês quer dizer “sem nome”. O nome anônimo e coletivo é também uma rejeição da máquina que transforma os escritores em celebridades. Os Wu Ming afirmam que ao desafiar o mito do autor proprietário se limitaram a tornar explícito o que há muito deveria ser óbvio – não existem “gênios” e, por isso, não existem “proprietários legítimos”, existe apenas troca, reutilização e aperfeiçoamento de ideias. Os Wu Ming acrescentam que esta noção, que em tempos pareceu natural mas que foi marginalizada ao longo dos dois últimos séculos, está atualmente tornando-se predominante de novo devido à revolução digital e ao sucesso do software livre e da General Public License.
A digitalização demonstrou ser uma ameaça muito maior às noções convencionais de autoria e propriedade intelectual do que o plágio praticado por artistas radicais ou as críticas do autor exercidas pelos teóricos pós-estruturalistas. O computador dissolvendo as fronteiras essenciais à ficção moderna do autor enquanto criador solitário de obras originais e únicas. A posse pressupõe uma separação entre textos, assim como entre autor e leitor. A artificialidade desta separação está a tornar-se mais evidente. Em listas de correio electrônico, grupos de discussão e sites de edição aberta, a transição de leitor para escritor é natural e a diferença entre textos originais desaparece dado que os leitores contribuem com comentários e incorporam fragmentos do original na sua resposta sem fazerem citação. Aplicar o copyright à escrita online afigura-se cada vez mais absurdo uma vez que esta é muitas vezes produzida coletivamente e imediatamente multiplicada. À medida que a informação online circula sem qualquer respeito pelas convenções do copyright, o conceito do autor proprietário parece ter-se tornado, deveras, num fantasma do passado. Talvez o efeito mais importante da digitalização consiste no fato de ameaçar os beneficiários tradicionais da propriedade intelectual uma vez que o controle monopolístico exercido pelos editores de livros, companhias discográficas e indústria cinematográfica deixa de ser necessário à medida que pessoas comuns se encarregam elas próprias dos meios de produção e distribuição.
O guru do software livre Richard Stallman sustenta que na era da cópia digital a função do copyright foi totalmente invertida. Embora tenha começado por ser uma medida legal que permitia aos autores restringir os editores em benefício do público em geral, o copyright transformou-se numa arma dos editores para manter o seu monopólio pela imposição de restrições ao público em geral que agora possui os meios para produzir as suas próprias cópias. A finalidade de todo o copyleft e de licenças específicas como a GPL é reverter esta inversão. O copyleft utiliza o direito que está na base do copyright mas vira-o do avesso de modo a servir o oposto do seu objetivo habitual. Em vez de fomentar a privatização, torna-se numa garantia de que todos têm a liberdade de utilizar, copiar, distribuir e modificar software ou qualquer outro tipo de obra. A sua única “restrição” é precisamente aquela que assegura a liberdade – os utilizadores não estão autorizados a limitarem a liberdade de qualquer outro, uma vez que as cópias e derivações devem ser redistribuídas nos termos da mesma licença. O copyleft requer a posse legal apenas para renunciar na prática a esta ao autorizar que todos façam o uso que desejarem da obra, desde que o copyleft seja transmitido. A mera exigência formal da posse significa que nenhuma outra pessoa poderá colocar um copyright em cima de uma obra copyleft e tentar limitar o seu uso.
Visto no seu contexto histórico, o copyleft situa-se em algum lugar entre entre o copyright e o anticopyright. A atitude dos escritores em publicarem as suas obras sob anticopyright era tomada num espírito de generosidade, no intuito de afirmar que o conhecimento apenas pode prosperar quando não é detido por proprietários. Enquanto declaração de “nenhuns direitos reservados”, o anticopyright foi um slogan perfeito introduzido num mundo imperfeito. Presumia-se que os outros iriam utilizar a informação com o mesmo espírito de generosidade. Mas as empresas aprenderam a tirar partido da ausência de copyright e a redistribuírem as obras em troco de uma quantia. Stallman concebeu o copyleft em 1984, depois de uma companhia que desenvolvia aperfeiçoamentos no software que ele tinha colocado sob domínio público (o equivalente técnico ao anticopyright, mas sem a atitude evidente de crítica) ter privatizado o código-fonte, recusando-se a partilhar a nova versão. Assim, de certa forma, o copyleft representa o advento de uma nova era, uma lição difícil sobre como a renúncia a todos os direitos pode levar a abusos por parte de aproveitadores. O copyleft tenta criar um commons baseado em direitos e responsabilidades recíprocas – aqueles que querem partilhar o commons têm determinadas obrigações éticas no sentido de respeitar os direitos de outros utilizadores. Qualquer um pode acrescentar algo ao commons mas ninguém pode subtrair algo dele.
Porém, em outra perspectiva, o copyleft representa um retrocesso em relação ao anticopyright e padece de uma série de contradições. A posição de Stallman está em concordância com um consenso generalizado de que o copyright foi deturpado ao ser transformado num instrumento que beneficia as empresas em lugar dos autores, aqueles a quem originalmente se destinava. Mas a verdade é que nunca existiu uma era dourada do copyright. O copyright foi sempre um instrumento legal que associava textos aos nomes dos autores de forma a transformar ideias em mercadorias e fazer com que os proprietários do capital retirassem daí um lucro. A visão idealizada por Stallman das origens do copyright não reconhece a exploração dos autores exercida durante o sistema inicial de copyright. Esta miopia específica respeitante ao copyright insere-se numa atitude mais ampla de não-enfrentamento das questões econômicas. A “esquerda” (left) no copyleft assemelha-se a um gênero indistinto de libertarismo cujos principais inimigos são os sistemas fechados e opacos e as restrições totalitárias ao acesso à informação em vez do privilégio econômico ou da exploração do trabalho. O copyleft surgiu a partir de uma ética hacker que aspira ao máximo o conhecimento pelo conhecimento. O seu principal objetivo é defender a liberdade de informação das restrições impostas pelo “sistema”, o que explica porque é que se pode encontrar um vasto leque de opiniões políticas entre os hackers. E também explica porque é que a fraternidade que une os hackers entre si – a “esquerda” no copyleft segundo a visão de Stallman – não é a esquerda tal como esta é entendida pela maioria dos ativistas políticos.
A GPL e o copyleft são frequentemente invocados como exemplos do viés anticomercial do movimento do software livre. Mas esse viés não existe. As quatro liberdades exigidas pela GPL – a liberdade de executar, estudar, distribuir e melhorar o código-fonte desde que a mesma liberdade seja transferida para os outros – significa que qualquer restrição adicional – uma cláusula não-comercial, por exemplo – seria não-livre. Manter o software na sua condição “livre” não impede que os programadores possam vender cópias que modificaram com o seu próprio trabalho e também não impede a redistribuição (sem modificação) em troca de um montante por uma organização comercial, desde que acompanhada pela mesma licença e que o código-fonte permaneça acessível. Ao contrário do que alguns entusiastas do software livre afirmam, esta versão de liberdade não suprime a troca, nem é incompatível com uma economia capitalista baseada no roubo da mais-valia. A contradição inerente a este commons deve-se em parte a uma interpretação de proprietário como sinônimo de acesso fechado ou opaco. Proprietário significa que existe um proprietário que proíbe o acesso à informação, que mantém o código-fonte secreto; não quer necessariamente dizer que existe um proprietário que extrai um lucro, apesar de o fato de manter o código-fonte secreto e extrair um lucro coincidir geralmente na prática. Desde que as quatro condições sejam cumpridas, a redistribuição comercial de software livre é não-proprietária. O problema torna-se mais evidente quando estas condições são convertidas para obras baseadas em conteúdo, como poemas, novelas, filmes ou música. Se alguém lança uma novela nos termos de uma licença copyleft e a (editora) Random House a publica e retira um lucro a partir do trabalho do autor, não existe nada de errado com isto desde que o copyleft seja transferido. Uma obra é livre na medida em que pode ser comercialmente apropriada, uma vez que a liberdade é definida como a circulação ilimitada de informação e não como algo livre de exploração.
Não surpreende, por isso, que a principal revisão introduzida quando o copyleft passou a ser aplicado à produção de obras de arte, música e textos tenha sido no sentido de permitir a cópia, modificação e redistribuição desde que para fins não-comerciais. Os Wu Ming defendem a imposição de restrições à utilização comercial ou para fins lucrativos de modo a impedir a exploração parasitária dos trabalhadores culturais. Eles justificam esta restrição e a sua divergência em relação às versões GPL e GFDL (GNU Free Documentation License) do copyleft argumentando que o combate contra a exploração e a luta por uma renumeração justa pelo trabalho tem sido o princípio fundamental da história da esquerda. Outros produtores de conteúdos e editoras de livros (a Verso, por exemplo) alargaram esta restrição ao afirmarem que a cópia, modificação e redistribuição deveria ser não apenas não-comercial mas também fiel ao espírito do original – sem explicarem o que este “espírito” quer dizer. O Indymedia Romênia alterou a sua definição de copyleft para tornar mais claro o significado de “no espírito do original” depois de problemas constantes com o site neofascista Altermedia Romênia, cujas “investidas” abrangiam desde o sequestro do “domínio” indymedia.ro à cópia de textos do Indymedia forjando os respectivos nomes e fontes. As restrições do Indymedia Romênia incluem: a proibição de modificar o nome ou fonte original – uma vez que vai contra a transparência pretendida -, de reproduzir material para proveito monetário – dado que constitui um abuso ao espírito de generosidade – e de reproduzir o material num contexto que viole os direitos de indivíduos ou de grupos mediante a sua discriminação com base na nacionalidade, etnia, género ou preferência sexual – na medida em que contradiz o seu empenho pela igualdade.
Enquanto alguns multiplicaram as restrições, outros rejeitaram qualquer tipo de restrição, incluindo a única restrição imposta pelo copyleft inicial. O movimento em torno da partilha de ficheiros peer-to-peer é o que se assemelha mais à atitude do anticopyright. O melhor exemplo é o blog Copyriot de Rasmus Fleischer do Pyratbiran (Bureau of Piracy), um think-thank contra a propriedade intelectual composto pelos fundadores do Pirate Bay, o tracker de BitTorrent mais utilizado pela comunidade P2P. O lema do Copyriot é “sem copyright, sem licença”. Mas existe uma diferença em relação à tradição mais antiga de anticopyright. Fleischer sustenta que o copyright tornou-se absurdo na era da tecnologia digital porque tem que recorrer a todos os tipos de ficções, como distinções entre enviar (uploading) e baixar (downloading) ou entre produtor e consumidor que, de fato, não existem na comunicação horizontal P2P. O Pyratbiran rejeita o copyright no seu todo – não porque nasceu defeituoso mas porque foi inventado para regular um suporte dispendioso e unidireccional como a imprensa, tendo deixado de corresponder às práticas potenciadas pelas atuais tecnologias de reprodução.
A definição original de copyleft na acepção de Stallman tenta fundar um commons informativo centrado exclusivamente no princípio da liberdade de informação – neste sentido, é uma definição puramente formal, como um imperativo categórico que requer a liberdade de informação para que seja universalizável. O único limite que se coloca ao sentimento de pertença a esta comunidade reside naqueles que não partilham da aspiração à informação livre – eles não são excluídos, recusam-se a participar dado que se recusam a libertar a informação. Outras versões do copyleft tentaram acrescentar restrições adicionais partindo de uma interpretação mais forte da “esquerda” no copyleft, como se este precisasse de se basear não numa liberdade negativa face a imposições mas em princípios positivos como a valorização da cooperação social, a participação não-hierárquica e a não-discriminação em detrimento do lucro. As definições mais restritivas do copyleft tentaram fundar um commons informativo que não se baseia apenas no livre fluxo de informação mas que se considera a si próprio como parte de um movimento social mais vasto que baseia o seu sentimento de fraternidade em princípios esquerdistas comuns. Nas suas várias mutações, o copyleft representa uma abordagem pragmática e racional que reconhece que os limites à liberdade implicam direitos e responsabilidades recíprocas – as diferentes restrições representam interpretações divergentes sobre o que é que esses direitos e responsabilidades deveriam ser. Em contraste, o anticopyright é uma atitude radical que recusa os compromissos pragmáticos e pretende abolir a propriedade intelectual na sua totalidade. O anticopyright afirma uma liberdade que é absoluta e não admite quaisquer limites a esta pretensão. A incompatibilidade entre estas posições coloca um dilema: afirmamos uma liberdade absoluta, sabendo que poderá ser usada contra nós ou moderamos a liberdade ao limitar o commons informativo às comunidades que não irão abusar dela porque partilham o mesmo “espírito”?
O compromisso das Creative Anti-Commons
As contestações à propriedade intelectual tiveram uma história profícua entre os artistas de vanguarda, os produtores de fanzines, músicos radicais e a franja subcultural. Nos dias de hoje, a luta contra a propriedade intelectual é liderada por advogados, professores e membros do governo. Além de os estratos sociais dos atores principais serem muito diferentes – o que por si só poderia não ser um detalhe significativo -, o contexto do combate contra a propriedade intelectual foi também completamente alterado. Antes de professores de Direito como Lawrence Lessig se terem interessado pela propriedade intelectual, o discurso entre os contestatários era contra qualquer espécie de posse – intelectual ou física – sobre o commons. Agora, o palco central é ocupado pelos apoiantes dos privilégios proprietários e econômicos. O argumento já não é o de que o autor é uma ficção e que a propriedade é um roubo, mas sim que o direito de propriedade intelectual precisa ser refreado e reformado porque passou a violar os direitos dos criadores. Lessig critica as recentes alterações na legislação do copyright impostas pelas transnacionais de mídia e os seus poderosos grupos de pressão, o alargamento do copyright para períodos absurdamente longos e outras perversões que constrangem a criatividade dos artistas. Mas ele não coloca em causa o copyright em si, uma vez que considera que é o incentivo mais importante para os artistas criarem. O objetivo consiste em impedir o extremismo e absolutismo reinante na propriedade intelectual e preservar ao mesmo tempo os efeitos benéficos desta.
Na sua apresentação durante a conferência Wizards of OS 4 em Berlim, Lessig elogiou a cultura Read-Write
da partilha livre da autoria colaborativa que tem sido predominante ao longo de grande parte da história da humanidade. Durante o último século esta cultura Read-Write tem sido contrariada pelas leis de propriedade intelectual e convertida numa cultura Read-Only dominada por um regime de controle pelo produtor. Lessig lamenta-se das deturpações recentes do direito do copyright que censuraram o trabalho de artistas que produzem remixes como o DJ Dangermouse (The Grey Album) e Javier Prato (Jesus Cristo: O Musical). Os dois foram ameaçados pelos proprietários legais das músicas utilizadas na produção das suas obras, tal como John Oswald e os Negativland o tinham sido antes deles. Nestes casos, os desígnios dos artistas, que foram tratados como meros consumidores perante a lei, foram submetidos ao controle exercido pelos produtores – os Beatles e Gloria Gaynor, respectivamente – e os seus representantes legais. O problema reside no fato de que o controle dos produtores está criando uma cultura Read-Only e destruindo o dinamismo e a diversidade da produção criativa. Está promovendo os interesses tacanhos de uns poucos “produtores” privilegiados às custas de todos os outros. Lessig contrasta o controle do produtor com o commons cultural – uma reserva comum de valor que todos podem utilizar e em que todos podem contribuir. O commons recusa o controle do produtor e insiste na liberdade dos consumidores. O “livre” na cultura livre não se refere à liberdade imposta pelo estado que concede aos produtores o controle sobre a utilização da “sua” obra mas sim à liberdade natural dos consumidores de utilizar a reserva cultural comum. Em princípio, a noção de um commons cultural revoga a distinção entre produtores e consumidores, vistos como agentes com os mesmos direitos num processo em curso.
Lessig sustenta que em resultado de uma produção entre pares baseada num commons e, mais especificamente, da associação Creative Commons, a possibilidade de uma cultura Read-Write está a renascer. Mas será a Creative Commons de facto um commons? De acordo com o seu site, a Creative Commons define a gama de possibilidades entre o copyright total – todos os direitos reservados – e o domínio público – nenhuns direitos reservados. As nossas licenças ajudam-no a manter o seu copyright sem impedirem que outros façam determinado uso da sua obra – um copyright de “alguns direitos reservados”. O sentido é evidente: a Creative Commons serve para ajudá-lo a “si”, o produtor, a manter o controle sobre a “sua” obra. Você pode escolher entre uma série de restrições que pretende aplicar à “sua” obra, como proibir a reprodução, a criação de obras derivadas ou a utilização comercial. Parte-se do princípio que, sendo você um autor-produtor, tudo o que crie e que afirme que é propriedade sua. O direito do consumidor não é mencionado, tal como a distinção entre produtores e consumidores não é disputada. O Creative Commons não rejeita o controle exercido pelo produtor; antes, legitima-o. E em vez de revogar a distinção entre produtor e consumidor, impõe-a. Ele alarga o quadro legal de modo a que os produtores neguem aos consumidores a possibilidade de criar valor de uso ou valor de troca a partir do recurso comum.
Se os Beatles ou Gloria Gaynor tivessem publicado a sua obra segundo o modelo Creative Commons, o lançamento do The Grey Album ou do Jesus Cristo: O Musical seria da mesma forma uma opção deles e não do DJ Dangermouse ou de Javier Patro. Os representantes legais dos Beatles e de Gloria Gaynor poderiam ter utilizado licenças CC para, com a mesma facilidade, impor o seu controle sobre a utilização da sua obra. E mesmo o problema apresentado por Lessig relativo ao controle exercido pelo produtor não é resolvido pela “solução” do Creative Commons, na medida em que o produtor detém o direito exclusivo de escolher o grau de liberdade a conceder ao consumidor, um direito que Lessig nunca contesta. A missão do Creative Commons no sentido de conceder aos produtores a “liberdade” de escolher o grau de restrições a aplicar à publicação das suas obras contradiz as condições reais da produção baseada num commons. A referência de Lessig ao DJ Danger Mouse e a Javier Prato como exemplos de forma a promover a causa da Creative Commons é uma desonestidade extravagante.
Uma desonestidade semelhante surge no elogio dirigido por Lessig ao movimento do software livre quando afirma que a arquitetura deste garante (tanto tecnologica como legalmente, sob a forma das suas licenças) a possibilidade de usar o recurso comum do código-fonte. Apesar de sustentar que o Creative Commons alarga os princípios do movimento do software livre, a liberdade que ele concede aos criadores no sentido de escolherem como é que querem que as suas obras sejam usadas é muito diferente da liberdade que a GPL concede aos utilizadores de copiar, modificar e distribuir o software, desde que a mesma liberdade seja transferida para os demais. Stallman fez recentemente uma declaração onde rejeitava o Creative Commons na sua totalidade, na medida em que algumas das suas licenças são livres enquanto que outras não são, o que leva as pessoas a confundirem a marca comum como se fosse algo consistente quando, na verdade, não existe um critério comum e uma posição ética por detrás desta marca. Enquanto o copyleft requer a posse legal apenas para renunciá-la na prática, as referências à posse feitas pela Creative Commons deixam de ser uma inversão irônica para passarem a ser reais. As licenças CC permitem colocar restrições arbitrárias à liberdade dos utilizadores de acordo com as preferências e os gostos particulares de um autor. Neste sentido, a Creative Commons é uma versão mais rebuscada do copyright. Não contesta o regime de copyright como um todo nem preserva o seu estatuto legal de modo a virar a prática do copyright do avesso, como o copyleft o faz.
O domínio público, o anticopyright e o copyleft são, cada um deles, esforços no sentido da criação de um commons, um espaço partilhado de não-posse que pode ser livremente utilizado por todos. As condições de utilização podem ser diferentes, de acordo com as várias interpretações de direitos e responsabilidades, mas estes direitos são direitos comuns e os recursos são partilhados equitativamente por toda a comunidade – o seu uso não é decidido arbitrariamente, caso a caso e obedecendo aos caprichos dos membros individuais. Em contraste, a Creative Commons é um esforço no sentido de usar um regime de posse de propriedade (direito de copyright) para criar um recurso culturalmente partilhado que não é detido por ninguém. Os seus bens culturais – que no seu conjunto formam uma amálgama incoerente – não pertencem à comunidade, uma vez que a possibilidade de usá-los depende da autorização dos autores individuais. A Creative Commons é, na verdade, um anti-commons que difunde uma lógica capitalista de privatização debaixo de um nome que induz deliberadamente ao erro. O seu objetivo consiste em ajudar os donos de propriedade intelectual a recuperarem o atraso diante o ritmo rápido a que a troca de informação se processa. E isto mediante a disponibilização não tanto de informação, mas de definições mais sofisticadas para vários graus de propriedade e de controle pelo produtor.
O que começou como um movimento pela abolição da propriedade intelectual transformou-se num movimento de personalização das licenças dos proprietários. Quase sem se dar por isso, o que era antes um perigoso movimento de radicais, hackers e piratas é agora o domínio de reformistas, revisionistas e defensores do capitalismo. Quando o capital se vê ameaçado, ele coopta a sua oposição. Já vimos várias vezes este cenário ao longo da história – o seu exemplo mais espectacular é a transformação dos conselhos de trabalhadores em regime de autogestão num movimento sindical que negocia contratos legais com os proprietários de empresas. O Creative Commons é uma subversão semelhante que em vez de contestar o “direito” à propriedade privada, tenta obter pequenas concessões num campo de jogos em que o jogo e as suas regras já estão previamente determinadas. O efeito real do Creative Commons reside em confinar a contestação política à esfera do que já é admissível.
Ao mesmo tempo que reduz este campo de contestação, o Creative Commons apresenta-se a si próprio como radical, como a vanguarda da batalha contra a propriedade intelectual. O Creative Commons tornou-se uma espécie de ortodoxia por omissão no licenciamento não comercial e uma causa popular entre os artistas e intelectuais que geralmente se consideram como sendo de esquerda e contra o regime de propriedade intelectual em particular. A marca Creative Commons é invocada de um modo moralista em inúmeros sites, blogs, discursos, ensaios, obras de arte e músicas como se constituísse a condição necessária e suficiente para a revolução iminente de uma verdadeira “cultura livre”. O Creative Commons faz parte de um movimento mais vasto de copyfight, que é definido como uma luta para manter a propriedade intelectual amarrada à sua finalidade inicial e impedir que se desvie demasiado. Os indivíduos e grupos associados a este movimento (John Perry Barlow, David Bollier, James Boyle, Creative Commons, EFF, freeculture.org, Larry Lessig, Jessica Litman, Eric Raymond, Slashdot.org) defendem aquilo que Boyle designou como sendo uma propriedade intelectual mais inteligente ou uma reforma da propriedade intelectual que não ameace a liberdade de expressão, a democracia, a concorrência, a inovação, a educação, o progresso da ciência e outras coisas que são fundamentais para o nosso (?) bem-estar social, cultural e econômico.
Numa repetição sinistra dos combates contra o copyright que surgiram durante o período do Romantismo, os excessos da forma capitalista de propriedade intelectual são opostos, embora através do recurso à sua própria linguagem e pressupostos. O Creative Commons preserva as ideias de originalidade, criatividade e direitos de propriedade do Romantismo e, de forma semelhante a este, considera que a “cultura livre” é uma esfera separada que existe num estado fenomenal de isolamento em relação ao mundo da produção material. Desde o século XVIII que as ideias de “criatividade” e de “originalidade” têm estado inextricavelmente ligadas a um anti-commons de conhecimento. A Creative Commons não é exceção. Não há dúvida que o Creative Commons pode chamar a atenção para algumas das questões da luta permanente contra a propriedade intelectual. Mas ele é insuficiente na melhor das hipóteses e, na pior, apenas mais uma tentativa dos defensores da propriedade de confundir o discurso, envenenar o poço e excluir qualquer análise revolucionária.
Este texto resultou de uma série de conversas e de trocas de correspondência entre Joanne Richardson e Dmytri Kleiner. Muito obrigado a tod(x)s os que contribuíram para a sua elaboração: Saul Albert, Mikhail Bakunin, David Berry, Critical Art Ensemble, Johann Gottlieb Fichte, Michel Foucault, Martin Fredriksson, Marci Hamilton, Carla Hesse, Benjamin Mako Hill, Stewart Home, Dan Hunter, Mark Lemley, Lawrence Lessig, Karl Marx, Giles Moss, Milton Mueller, Piratbyran, Pierre-Joseph Proudhon, Toni Prug, Samuel Richardson, Patrice Riemens, Mark Rose, Pamela Samuelson, a International Situacionista, Johan Soderberg, Richard Stallman, Kathryn Temple, Benjamin Tucker, Jason Toynbee, Tristan Tzara, Wikipedia, Martha Woodmansee, Wu Ming.
Adaptado da tradução de Miguel Caetano.
Berlim, 2006. Anticopyright. Todos os direitos dispersos.
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