buscado no Amálgama
Minha avó não domava mais as sílabas, soprava-as fracas, por vezes inaudíveis, quase murmúrios.
[ nota do editor: o que segue são capítulos, mais ou menos em ordem, de Antes do Passado ]
* * *
~~ 2009 ~~
Missão cumprida
O telefone tocou sem parar naquele dia. Chamou mais que o habitual
durante toda a semana. A maioria de telefonemas interurbanos, de gente
que eu conhecia há tempos. Parentes e amigos de convivência íntima ou
diária davam os pêsames pessoalmente.
Eu mal conseguia abrir, sequer passar os olhos, nas páginas 84 e 85.
Tentava tomar coragem para ir em frente com a leitura. A capa da edição
do primeiro dia de julho de 2009 da maior revista do Brasil parecia uma
lápide. Trazia a luva cravejada de lantejoulas destacada do fundo preto.
Abaixo vinha a inscrição: Michael Jackson, 1958-2009, como nas pedras
dos túmulos. Dentro, catorze páginas sobre o astro da música pop de
minha adolescência — uma lembrança querida dos anos 80.
A Veja, número 46, ano 42; a Veja que homenageava o
falecimento do ídolo norte-americano, nas páginas 84 e 85 dava notícia
de outras mortes. Assassinatos ocorridos em 1973, talvez 74, quando
oficiais do exército e “seus homens” mataram Cilon Cunha Brum, Antônio
Teodoro de Castro e José Lima Piauhy Dourado, remanescentes da Guerrilha
do Araguaia, presos após a aniquilação do movimento. No semanário, uma
fonte militar — que só falou ao jornalista sob a condição do anonimato —
relatou que Cilon e Antônio Teodoro foram liquidados juntos, um ao lado
do outro.
A logística do crime: em Marabá foram embarcados num helicóptero da
Força Aérea Brasileira e transportados até certo ponto da selva
amazônica. De lá, outro helicóptero — aviadores diferentes, mesmos
algozes — seguiu para a fazenda de um “colaborador”, no Pará mesmo. O
lugar devia ser longe, porque depois de muito caminharem, alguém avisou
que iam parar e descansar. Foi quando houve a ordem de fogo. O primeiro a
cair foi Antônio. Um tiro na cabeça fez com que seu corpo tombasse.
Depois tio Cilon: Cilon Cunha Brum. Não especificaram se o tiro foi no
crânio, como o outro jovem. Mas os atiradores descarregaram as armas. A
munição que tinham foi toda para os corpos. A fonte, participante ativa
no evento, garantiu ao jornalista que “parecia pelotão de fuzilamento”.
Outro dado que a fonte informou: os corpos dos militantes do PC do B
ficaram insepultos. Os dois jovens, ambos de 28 anos, foram largados ao
relento. Houve quem se preocupasse em cobri-los com folhas, mas parece
que não adiantou grande coisa: os bichos foram atraídos pelo cheiro. “A
ordem era não deixar sair ninguém de lá vivo”, o anônimo explicou ao
repórter. “Era uma missão e cumprimos o que foi determinado.”
As páginas 84 e 85 da Veja foram ilustradas com fotos. Numa
delas a irmã de Antônio, Maria Eliana de Castro, aparecia segurando um
retrato do estudante. Na outra um oficial aposentado: garboso, a legenda
informando que ele admitiu combater guerrilheiros, mas que não puxara o
gatilho. Ele se deixou fotografar ao lado de uma mala, uma valise que
pôs aberta, deixando à mostra seus alfarrábios de guerra. Com um leve
sorriso, segurava um mapa, exibia cartografia especializada do Brasil.
Ah, a glória de esconder cadáveres de comunistas! Fiel cumpridor de
missões superiores, a foto dele transbordava orgulho. O oficial, símbolo
do fato inconteste: prenderam, torturaram, mataram — só que ninguém vai
dizer como, quando ou onde. Eu quase conseguia ouvir sua voz, do sofá
onde me ajeitei para ler a matéria inteira: “Você, aí do outro lado, vai
ficar sem nada saber, vai sofrer calada, calado: sem capa e sem lápide;
sem corpo, nem vela.”
Álbum de família
I.
“Ele vai voltar, não sei quando, mas vai. Vou esperar.” A voz saiu embargada, o rosto virado tentava despistar. Rejane, a neta de onze anos, não costumava questioná-la. Naquele tempo, criança não inquiria os mais velhos. Ela via o esforço da vó Lóia em poupá-la, em se mostrar alegre mesmo quando estava triste. Percebia que a tristeza da avó produzia uma crosta invisível por todos os cômodos da casa. E sabia, como se sabem os nomes das coisas, que não era para falar.
“Ele vai voltar, não sei quando, mas vai. Vou esperar.” A voz saiu embargada, o rosto virado tentava despistar. Rejane, a neta de onze anos, não costumava questioná-la. Naquele tempo, criança não inquiria os mais velhos. Ela via o esforço da vó Lóia em poupá-la, em se mostrar alegre mesmo quando estava triste. Percebia que a tristeza da avó produzia uma crosta invisível por todos os cômodos da casa. E sabia, como se sabem os nomes das coisas, que não era para falar.
Só naquele dia foi diferente. No final de tarde, quando a vó Lóia
retornou da viagem a Porto Alegre para o meu batizado, Rejane não
conseguiu identificar se o pranto era causa ou consequência. Naquela
noite, assustada, violou a regra involuntariamente. As duas deitadas na
cama de casal, a mão de veias saltadas afagando-lhe uma das bochechas,
perguntou, sem que tivesse tempo de se autocensurar:
“Vó, tu tá chorando por causa do tio?”
“…”
“Vó, ele vai morrer?”
“…”
Aquele dia e aquela noite foram uma exceção. Normalmente a menina
precisava se esconder atrás da porta para escutar qualquer menção ao
tio. Apesar dos esforços, nunca conseguiu ouvir uma história inteira,
início, meio e fim. Capturava cenas para depois fazer as emendas,
sozinha. Mas ela não conseguia dar sentido ao emaranhado, o medo a
impedia. Medo grande, como um breu na mata e ela, pequena, lá dentro,
sem nenhum adulto por perto. Ficou maior ainda quando, numa das tardes
em que costumava passar na companhia da avó, uma camionete da polícia
encostou na frente da casa. Deu tempo para ela ver a primeira pisada do
coturno no chão de tábuas. Amedrontada com a cara do homem, correu para
um dos quartos, escondeu-se debaixo da cama. De lá escutou os estrondos,
eles revirando tudo — viu de perto quando um guarda entrou no quarto e
abriu os armários. O policial foi olhar debaixo da cama e deu de cara
com ela. Disse: “Pode sair…” Ela preferiu ficar onde estava até irem
embora.
Passado o susto, não desgrudou mais da avó. Na cozinha, a senhora decidira adiantar os bifes acebolados do jantar.
Achou que a vó, enquanto cortava a carne, soluçava. Não se conteve:
“Vó Lóia, tu tá chorando?”
“Não, minha filha… é a cebola.”
A neta insistiu:
“É por causa do tio?”
“A vó tá cortando cebola e a cebola faz chorar.”
Depois desse dia soube que o medo, o silêncio e o tio eram como se
fossem o mesmo. Como não podia perguntar nada, foi colecionando sons e
imagens em segredo. O tio não voltava nunca, não dava sinal. Se
voltasse, ela ficaria feliz: tio Cilon era alegre, brincalhão. Chegava
de São Paulo cheio de novidades, um montão de coisas bonitas que ninguém
tinha visto antes. E tudo, tudo nele era lindo — ele, as malas de
couro, as roupas, a alegria que trazia consigo.
Recorda pouco dos momentos passados ao seu lado, mas sente-os
vívidos: tio Cilon sorrindo e dando o dinheiro das balas e chocolates —
ela e os primos até perdiam os chinelos no caminho, de tão excitados. Às
vezes ele ia junto comprar as guloseimas. Os sobrinhos ficavam loucos.
Os retratos da época foram todos tirados com a máquina dele — o único na
família que tinha uma câmera tão moderna e portátil.
II.
Ao vô Lino coube silenciar a mácula. O olhar lá longe, aéreo, o semblante meio taciturno, cada dia mais encobrindo o avô divertido e manhoso. Rejane intuía: isso estava relacionado ao tio. Nunca ninguém disse. Mas ela sabia. De tanto justapor pedaços, acabou criando sensibilidade, as antenas aguçadas pelo proibido compreendiam quando as coisas aconteciam por causa do tio Cilon.
Ao vô Lino coube silenciar a mácula. O olhar lá longe, aéreo, o semblante meio taciturno, cada dia mais encobrindo o avô divertido e manhoso. Rejane intuía: isso estava relacionado ao tio. Nunca ninguém disse. Mas ela sabia. De tanto justapor pedaços, acabou criando sensibilidade, as antenas aguçadas pelo proibido compreendiam quando as coisas aconteciam por causa do tio Cilon.
Foi tendo certeza à medida que o tempo avançava e a ausência de
palavras, vocábulos que dessem conta do sofrimento indizível, preenchia o
ambiente familiar. O tio, a essa altura, tinha sumido. Suas feições
esmaecidas fundiam-se à devoção da família grande aos pequenos
silêncios. Mas não apenas eles — pairava na casa dos avós a sensação de
que alguém sempre estava observando o que faziam.
Os anos foram passando, os interditos, disfarçados entre os adultos,
não passavam. Rejane, mesmo com a atmosfera de insegurança, não saía da
casa dos avós paternos. Nem quando começaram a revistar a chácara onde o
vô Lino criava gado e plantava. O Buraco do Nazário, um oco terra
adentro, uma cavidade funda rodeada de cipoais, caules se enroscando em
barrancos e pedra, lugar que dava até receio de deixar o gado pastando —
os animais poderiam cair lá dentro e ninguém conseguiria tirar mais —,
pois lá a polícia também esteve. Rejane não viu, mas era só o que se
falava na cidade. Os guardas tinham ido procurar alguma coisa na Caverna
dos Morcegos — outro nome do Buraco do Nazário.
Nessa época Rejane arrefeceu. Porém não diminuiu sua convivência com
os avós. O que fez, depois que correu o falatório com o lugar dos
morcegos, foi começar a voltar para casa antes do anoitecer. Vó Lóia
lamentava: “Por que tu quer ir embora, minha filha, fica com a vó…” E a
guria entristecia — atravessava a rua cabisbaixa, o peito apertado. O
temor de algo que ela não sabia explicar ganhava da imensa vontade de
estar com a avó.
Perdurado o medo, incorporado ao normal dos dias como o ar, o céu, o
anoitecer e o amanhecer, vô Lino foi ficando cada vez mais quieto, até o
dia em que se calou de vez.
Rejane não conseguiu precisar porque as memórias saíam misturadas aos
sentimentos, mas acha que foi pouco depois da morte do vô, ou perto do
falecimento dele, que a vizinhança começou a falar de tio Cilon em voz
alta. Chamavam-no de terrorista. Não muito tempo depois, ao rótulo de
homem do terror juntou-se o de ladrão de bancos.
Rejane ficava quieta. Calada e machucada, sabia — como sempre
soubera, os silêncios, os segredos — que ele não era nada daquilo. Era
um tio querido e brincalhão. Um afeto que ela nunca deixou de
bem-querer.
III.
Foi o que me contou quando conseguimos, pela primeira vez em nossas vidas, conversar sobre o tio Cilon.
Foi o que me contou quando conseguimos, pela primeira vez em nossas vidas, conversar sobre o tio Cilon.
Era julho do ano de 2009.
*
~~ Anos 70 ~~
Guardiã
Minha avó não domava mais as sílabas, soprava-as fracas, por vezes
inaudíveis, quase murmúrios. Dizia com o corpo e com os olhos as
palavras que a mão, paralisada, não podia escrever.
Sua cadeira amarela na porta da casa — o corpo ali encaixado, a
bengala ao lado. A mãe de Cilon, minha avó Lóia, com a atenção sempre na
rua: uma imagem que falava e todo mundo sabia o que queria dizer.
*
~~ 2009 ~~
Trajeto
Grupos de pessoas se acumulavam ao redor de micros e vans, tornando
impossível saber onde eram vendidas as passagens, ou quem poderia
informar horários e trechos rodoviários. Não via guichês nem placas
luminosas com o nome das empresas de transporte. Acho que minha figura
destoante chamou a atenção de um rapaz porque ele se aproximou com
firmeza: “Vai pra onde?” “Vou pra São Geraldo”, respondi. “O próximo sai
às nove horas, tem que esperar”, avisou, estendendo a passagem e
informando o preço. Paguei pelo bilhete e decidi sentar. Escolhi um
banco defronte ao local onde os micros e as vans paravam, formando uma
barafunda completa. O formigueiro de gente àquela hora da manhã me
fizera lembrar que era dia 26 de dezembro.
A temperatura, mais de trinta graus, parecia intensificada pelo
burburinho, pela precariedade das instalações do terminal rodoviário.
Tentei atenuar a ansiedade, o medo de algo que não sabia muito bem
classificar.
O jeito foi distrair o pensamento: ao imaginar a viagem ao Araguaia,
por tantos anos, pensava num tipo de aventura. Chegara a cogitar ir até
Palmas — a menor distância de avião desde São Paulo. De lá alcançaria
por terra a Ilha do Bananal e subiria de barco até Xambioá, parando nas
cidades ribeirinhas, conhecendo a região desde o Araguaia — o rio que
nasce no Mato Grosso, na divisa com Goiás, une-se ao Tocantins no
extremo norte deste estado e faz a fronteira de Tocantins e Mato Grosso,
Tocantins e Pará, Goiás e Mato Grosso. Desce — subindo no mapa — 2.600
quilômetros. Faria, quem sabe, o mesmo caminho de meu padrinho.
Será que tio Cilon teria rodado pela estrada em construção, a
Transamazônica, que eu iria percorrer dali a uma hora? Será que também
chegou por Marabá? Estava sozinho ou vinha com algum companheiro? Nas
pesquisas, descobri que o PC do B usara caminhos pré-determinados para
deslocar os jovens para perto da área chamada Bico do Papagaio. Nada,
nenhum passo fora dado ao acaso. Tudo era planejado pela direção do
partido. Os estudantes vinham quase sempre de São Paulo, de acordo com
instruções que precisavam ser seguidas à risca. Depois passavam por
Anápolis e iam para Imperatriz; ou de Anápolis iam para Tocantinópolis, e
então Marabá — ou, ainda, pulavam de Anápolis para Araguaína e aí
Xambioá, o meu destino naquela última quinta-feira de 2009.
Imaginei o corpo magro e comprido, inquieto, sempre a virar para os
lados. O semblante preocupado cuidando as portas, as pessoas. O olhar no
chão. O rosto fino emoldurando os olhos inquietos.
O tamanho dos carros que chegavam e saíam fez com que voltasse minha
atenção para frente: todos os veículos ali me pareciam pequenos demais,
inseguros — mas pegar um automóvel da locadora, com motorista, tampouco
me parecia a melhor solução. Não queria fazer 155 quilômetros na
companhia de um desconhecido. Por que não voltava para São Paulo e
deixava a viagem para outra hora? Um voo decolaria às catorze horas para
Brasília — da capital seria simples retornar para casa. O moço que me
vendera a passagem fez um sinal e entendi que era minha vez de embarcar.
No carro ocupei um dos últimos assentos vagos.
Acomodada, a cidade ficando para trás, eu observava as pessoas em
volta: o colorido das roupas de malha, as texturas das peles, os corpos
se apertando, roçando-se uns nos outros porque o número de passagens
vendidas era maior do que aquele que o micro-ônibus comportava. Do lado
de fora, a paisagem mudava e já se via a estrada. Nada de selva. De um
lado gado e pasto, palmeiras esparsas pontilhando o campo. De outro,
Batalhão da Infantaria da Selva, Regimento Floriano, 23º Batalhão
Logístico da Selva. Era a saída de Marabá.
Para mim, a entrada no Araguaia.
* * *
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