quinta-feira, 3 de maio de 2012

O silêncio que vem do Araguaia

buscado no Amálgama

 

Minha avó não domava mais as sílabas, soprava-as fracas, por vezes inaudíveis, quase murmúrios.

[ nota do editor: o que segue são capítulos, mais ou menos em ordem, de Antes do Passado ]

* * *

~~ 2009 ~~

Missão cumprida

O telefone tocou sem parar naquele dia. Chamou mais que o habitual durante toda a semana. A maioria de telefonemas interurbanos, de gente que eu conhecia há tempos. Parentes e amigos de convivência íntima ou diária davam os pêsames pessoalmente.
Eu mal conseguia abrir, sequer passar os olhos, nas páginas 84 e 85. Tentava tomar coragem para ir em frente com a leitura. A capa da edição do primeiro dia de julho de 2009 da maior revista do Brasil parecia uma lápide. Trazia a luva cravejada de lantejoulas destacada do fundo preto. Abaixo vinha a inscrição: Michael Jackson, 1958-2009, como nas pedras dos túmulos. Dentro, catorze páginas sobre o astro da música pop de minha adolescência — uma lembrança querida dos anos 80.
A Veja, número 46, ano 42; a Veja que homenageava o falecimento do ídolo norte-americano, nas páginas 84 e 85 dava notícia de outras mortes. Assassinatos ocorridos em 1973, talvez 74, quando oficiais do exército e “seus homens” mataram Cilon Cunha Brum, Antônio Teodoro de Castro e José Lima Piauhy Dourado, remanescentes da Guerrilha do Araguaia, presos após a aniquilação do movimento. No semanário, uma fonte militar — que só falou ao jornalista sob a condição do anonimato — relatou que Cilon e Antônio Teodoro foram liquidados juntos, um ao lado do outro.
A logística do crime: em Marabá foram embarcados num helicóptero da Força Aérea Brasileira e transportados até certo ponto da selva amazônica. De lá, outro helicóptero — aviadores diferentes, mesmos algozes — seguiu para a fazenda de um “colaborador”, no Pará mesmo. O lugar devia ser longe, porque depois de muito caminharem, alguém avisou que iam parar e descansar. Foi quando houve a ordem de fogo. O primeiro a cair foi Antônio. Um tiro na cabeça fez com que seu corpo tombasse. Depois tio Cilon: Cilon Cunha Brum. Não especificaram se o tiro foi no crânio, como o outro jovem. Mas os atiradores descarregaram as armas. A munição que tinham foi toda para os corpos. A fonte, participante ativa no evento, garantiu ao jornalista que “parecia pelotão de fuzilamento”. Outro dado que a fonte informou: os corpos dos militantes do PC do B ficaram insepultos. Os dois jovens, ambos de 28 anos, foram largados ao relento. Houve quem se preocupasse em cobri-los com folhas, mas parece que não adiantou grande coisa: os bichos foram atraídos pelo cheiro. “A ordem era não deixar sair ninguém de lá vivo”, o anônimo explicou ao repórter. “Era uma missão e cumprimos o que foi determinado.”
As páginas 84 e 85 da Veja foram ilustradas com fotos. Numa delas a irmã de Antônio, Maria Eliana de Castro, aparecia segurando um retrato do estudante. Na outra um oficial aposentado: garboso, a legenda informando que ele admitiu combater guerrilheiros, mas que não puxara o gatilho. Ele se deixou fotografar ao lado de uma mala, uma valise que pôs aberta, deixando à mostra seus alfarrábios de guerra. Com um leve sorriso, segurava um mapa, exibia cartografia especializada do Brasil. Ah, a glória de esconder cadáveres de comunistas! Fiel cumpridor de missões superiores, a foto dele transbordava orgulho. O oficial, símbolo do fato inconteste: prenderam, torturaram, mataram — só que ninguém vai dizer como, quando ou onde. Eu quase conseguia ouvir sua voz, do sofá onde me ajeitei para ler a matéria inteira: “Você, aí do outro lado, vai ficar sem nada saber, vai sofrer calada, calado: sem capa e sem lápide; sem corpo, nem vela.”

Álbum de família

I.
“Ele vai voltar, não sei quando, mas vai. Vou esperar.” A voz saiu embargada, o rosto virado tentava despistar. Rejane, a neta de onze anos, não costumava questioná-la. Naquele tempo, criança não inquiria os mais velhos. Ela via o esforço da vó Lóia em poupá-la, em se mostrar alegre mesmo quando estava triste. Percebia que a tristeza da avó produzia uma crosta invisível por todos os cômodos da casa. E sabia, como se sabem os nomes das coisas, que não era para falar.
Só naquele dia foi diferente. No final de tarde, quando a vó Lóia retornou da viagem a Porto Alegre para o meu batizado, Rejane não conseguiu identificar se o pranto era causa ou consequência. Naquela noite, assustada, violou a regra involuntariamente. As duas deitadas na cama de casal, a mão de veias saltadas afagando-lhe uma das bochechas, perguntou, sem que tivesse tempo de se autocensurar:
“Vó, tu tá chorando por causa do tio?”
“…”
“Vó, ele vai morrer?”
“…”
Aquele dia e aquela noite foram uma exceção. Normalmente a menina precisava se esconder atrás da porta para escutar qualquer menção ao tio. Apesar dos esforços, nunca conseguiu ouvir uma história inteira, início, meio e fim. Capturava cenas para depois fazer as emendas, sozinha. Mas ela não conseguia dar sentido ao emaranhado, o medo a impedia. Medo grande, como um breu na mata e ela, pequena, lá dentro, sem nenhum adulto por perto. Ficou maior ainda quando, numa das tardes em que costumava passar na companhia da avó, uma camionete da polícia encostou na frente da casa. Deu tempo para ela ver a primeira pisada do coturno no chão de tábuas. Amedrontada com a cara do homem, correu para um dos quartos, escondeu-se debaixo da cama. De lá escutou os estrondos, eles revirando tudo — viu de perto quando um guarda entrou no quarto e abriu os armários. O policial foi olhar debaixo da cama e deu de cara com ela. Disse: “Pode sair…” Ela preferiu ficar onde estava até irem embora.
Passado o susto, não desgrudou mais da avó. Na cozinha, a senhora decidira adiantar os bifes acebolados do jantar.
Achou que a vó, enquanto cortava a carne, soluçava. Não se conteve:
“Vó Lóia, tu tá chorando?”
“Não, minha filha… é a cebola.”
A neta insistiu:
“É por causa do tio?”
“A vó tá cortando cebola e a cebola faz chorar.”
Depois desse dia soube que o medo, o silêncio e o tio eram como se fossem o mesmo. Como não podia perguntar nada, foi colecionando sons e imagens em segredo. O tio não voltava nunca, não dava sinal. Se voltasse, ela ficaria feliz: tio Cilon era alegre, brincalhão. Chegava de São Paulo cheio de novidades, um montão de coisas bonitas que ninguém tinha visto antes. E tudo, tudo nele era lindo — ele, as malas de couro, as roupas, a alegria que trazia consigo.
Recorda pouco dos momentos passados ao seu lado, mas sente-os vívidos: tio Cilon sorrindo e dando o dinheiro das balas e chocolates — ela e os primos até perdiam os chinelos no caminho, de tão excitados. Às vezes ele ia junto comprar as guloseimas. Os sobrinhos ficavam loucos. Os retratos da época foram todos tirados com a máquina dele — o único na família que tinha uma câmera tão moderna e portátil.
II.
Ao vô Lino coube silenciar a mácula. O olhar lá longe, aéreo, o semblante meio taciturno, cada dia mais encobrindo o avô divertido e manhoso. Rejane intuía: isso estava relacionado ao tio. Nunca ninguém disse. Mas ela sabia. De tanto justapor pedaços, acabou criando sensibilidade, as antenas aguçadas pelo proibido compreendiam quando as coisas aconteciam por causa do tio Cilon.
Foi tendo certeza à medida que o tempo avançava e a ausência de palavras, vocábulos que dessem conta do sofrimento indizível, preenchia o ambiente familiar. O tio, a essa altura, tinha sumido. Suas feições esmaecidas fundiam-se à devoção da família grande aos pequenos silêncios. Mas não apenas eles — pairava na casa dos avós a sensação de que alguém sempre estava observando o que faziam.
Os anos foram passando, os interditos, disfarçados entre os adultos, não passavam. Rejane, mesmo com a atmosfera de insegurança, não saía da casa dos avós paternos. Nem quando começaram a revistar a chácara onde o vô Lino criava gado e plantava. O Buraco do Nazário, um oco terra adentro, uma cavidade funda rodeada de cipoais, caules se enroscando em barrancos e pedra, lugar que dava até receio de deixar o gado pastando — os animais poderiam cair lá dentro e ninguém conseguiria tirar mais —, pois lá a polícia também esteve. Rejane não viu, mas era só o que se falava na cidade. Os guardas tinham ido procurar alguma coisa na Caverna dos Morcegos — outro nome do Buraco do Nazário.
Nessa época Rejane arrefeceu. Porém não diminuiu sua convivência com os avós. O que fez, depois que correu o falatório com o lugar dos morcegos, foi começar a voltar para casa antes do anoitecer. Vó Lóia lamentava: “Por que tu quer ir embora, minha filha, fica com a vó…” E a guria entristecia — atravessava a rua cabisbaixa, o peito apertado. O temor de algo que ela não sabia explicar ganhava da imensa vontade de estar com a avó.
Perdurado o medo, incorporado ao normal dos dias como o ar, o céu, o anoitecer e o amanhecer, vô Lino foi ficando cada vez mais quieto, até o dia em que se calou de vez.
Rejane não conseguiu precisar porque as memórias saíam misturadas aos sentimentos, mas acha que foi pouco depois da morte do vô, ou perto do falecimento dele, que a vizinhança começou a falar de tio Cilon em voz alta. Chamavam-no de terrorista. Não muito tempo depois, ao rótulo de homem do terror juntou-se o de ladrão de bancos.
Rejane ficava quieta. Calada e machucada, sabia — como sempre soubera, os silêncios, os segredos — que ele não era nada daquilo. Era um tio querido e brincalhão. Um afeto que ela nunca deixou de bem-querer.
III.
Foi o que me contou quando conseguimos, pela primeira vez em nossas vidas, conversar sobre o tio Cilon.
Era julho do ano de 2009.
*

~~ Anos 70 ~~

Guardiã

Minha avó não domava mais as sílabas, soprava-as fracas, por vezes inaudíveis, quase murmúrios. Dizia com o corpo e com os olhos as palavras que a mão, paralisada, não podia escrever.
Sua cadeira amarela na porta da casa — o corpo ali encaixado, a bengala ao lado. A mãe de Cilon, minha avó Lóia, com a atenção sempre na rua: uma imagem que falava e todo mundo sabia o que queria dizer.
*

~~ 2009 ~~

Trajeto

Grupos de pessoas se acumulavam ao redor de micros e vans, tornando impossível saber onde eram vendidas as passagens, ou quem poderia informar horários e trechos rodoviários. Não via guichês nem placas luminosas com o nome das empresas de transporte. Acho que minha figura destoante chamou a atenção de um rapaz porque ele se aproximou com firmeza: “Vai pra onde?” “Vou pra São Geraldo”, respondi. “O próximo sai às nove horas, tem que esperar”, avisou, estendendo a passagem e informando o preço. Paguei pelo bilhete e decidi sentar. Escolhi um banco defronte ao local onde os micros e as vans paravam, formando uma barafunda completa. O formigueiro de gente àquela hora da manhã me fizera lembrar que era dia 26 de dezembro.
A temperatura, mais de trinta graus, parecia intensificada pelo burburinho, pela precariedade das instalações do terminal rodoviário. Tentei atenuar a ansiedade, o medo de algo que não sabia muito bem classificar.
O jeito foi distrair o pensamento: ao imaginar a viagem ao Araguaia, por tantos anos, pensava num tipo de aventura. Chegara a cogitar ir até Palmas — a menor distância de avião desde São Paulo. De lá alcançaria por terra a Ilha do Bananal e subiria de barco até Xambioá, parando nas cidades ribeirinhas, conhecendo a região desde o Araguaia — o rio que nasce no Mato Grosso, na divisa com Goiás, une-se ao Tocantins no extremo norte deste estado e faz a fronteira de Tocantins e Mato Grosso, Tocantins e Pará, Goiás e Mato Grosso. Desce — subindo no mapa — 2.600 quilômetros. Faria, quem sabe, o mesmo caminho de meu padrinho.
Será que tio Cilon teria rodado pela estrada em construção, a Transamazônica, que eu iria percorrer dali a uma hora? Será que também chegou por Marabá? Estava sozinho ou vinha com algum companheiro? Nas pesquisas, descobri que o PC do B usara caminhos pré-determinados para deslocar os jovens para perto da área chamada Bico do Papagaio. Nada, nenhum passo fora dado ao acaso. Tudo era planejado pela direção do partido. Os estudantes vinham quase sempre de São Paulo, de acordo com instruções que precisavam ser seguidas à risca. Depois passavam por Anápolis e iam para Imperatriz; ou de Anápolis iam para Tocantinópolis, e então Marabá — ou, ainda, pulavam de Anápolis para Araguaína e aí Xambioá, o meu destino naquela última quinta-feira de 2009.
Imaginei o corpo magro e comprido, inquieto, sempre a virar para os lados. O semblante preocupado cuidando as portas, as pessoas. O olhar no chão. O rosto fino emoldurando os olhos inquietos.
O tamanho dos carros que chegavam e saíam fez com que voltasse minha atenção para frente: todos os veículos ali me pareciam pequenos demais, inseguros — mas pegar um automóvel da locadora, com motorista, tampouco me parecia a melhor solução. Não queria fazer 155 quilômetros na companhia de um desconhecido. Por que não voltava para São Paulo e deixava a viagem para outra hora? Um voo decolaria às catorze horas para Brasília — da capital seria simples retornar para casa. O moço que me vendera a passagem fez um sinal e entendi que era minha vez de embarcar. No carro ocupei um dos últimos assentos vagos.
Acomodada, a cidade ficando para trás, eu observava as pessoas em volta: o colorido das roupas de malha, as texturas das peles, os corpos se apertando, roçando-se uns nos outros porque o número de passagens vendidas era maior do que aquele que o micro-ônibus comportava. Do lado de fora, a paisagem mudava e já se via a estrada. Nada de selva. De um lado gado e pasto, palmeiras esparsas pontilhando o campo. De outro, Batalhão da Infantaria da Selva, Regimento Floriano, 23º Batalhão Logístico da Selva. Era a saída de Marabá.
Para mim, a entrada no Araguaia.
* * *

Antes do passado

Liniane Haag Brum

Arquipélago
, 2012

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