quinta-feira, 31 de maio de 2012

Luana Tolentino: “Nunca duvidei que eu podia e merecia muito mais. Batalhei. Revidei. Virei o jogo”

buscado no Viomundo



Luana Tolentino: “Nunca passou pela minha cabeça que eu seria empregada doméstica pra sempre. Eu me via fazendo as coisas que eu faço hoje. Juro! Quando lavava o banheiro, por exemplo, ficava imaginando a roupa que eu vestiria para fazer uma palestra – camisa branca, calça social e um scarpim de salto alto (risos)”. Foto: Vanda Godoy


por Conceição Lemes
Luana Tolentino tem 28 anos, é historiadora, professora da Rede Estadual de Ensino de Minas Gerais, pesquisadora da UFMG e militante do movimento negro.
Aos 18, quando entrou na Faculdade, já havia lido Sartre, Dostoievski, Jorge Amado, Clarice Lispector, Graciliano Ramos, Antonio Candido, Zélia Gattai, Nelson Rodrigues. Conhecia muito de música brasileira: Chico Buarque, Dolores Duran, Elis, Paulinho da Viola. Seu interesse era pelo “lado B” da obra desses artistas. “Afinal de contas, o ‘lado A’ todo mundo conhecia”, justifica-se.
Os leitores assíduos do Viomundo já devem ter cruzado com ela nos comentários ou lido algum dos seus textos que publicamos. Estreou aqui com Carta aberta ao grupo antiterrorismo de babás, que nos submeteu por e-mail. O mais recente foi Martinho da Vila, o PT e eu.
Altiva, inteligente, talentosa, inquieta, pronta a combater injustiças e exercer sua cidadania. São características que saltam à vista em Luana e no que ela faz. Encanta. Emociona. Dá esperança no futuro.
A médica, escritora e feminista Fátima Oliveira, com o seu superolho clínico, notou-as, claro.  Tanto que, semana passada, recebi um e-mail seu com esta mensagem: “Olha a Luana Tolentino de BH, que de vez em quando escreve para o Viomundo!”
Junto o link da matéria do IG, onde Luana era uma das entrevistadas. Ela participou das pesquisas para a construção do núcleo de empregadas domésticas da novela “Cheias de Charme”, da TV Globo.
“Foi por culpa do Viomundo”, graceja. “A pesquisadora chegou até mim por causa do texto das babás. Ela estava fazendo uma pesquisa sobre o trabalho doméstico no Brasil e queria saber da minha história, das minhas experiências para construção do núcleo de empregadas domésticas.”
A filha caçula da dona Nelita e do seo Nicolau, irmã do Dennis (o mais velho, é enfermeiro) e da Miriam (a do meio, estudou Nutrição), trabalhou dos 13 aos 17 anos como babá, empregada doméstica e faxineira. Passou maus bocados.
“Comecei aos 13 anos. Cuidava de duas primas e fazia alguns serviços domésticos. Ensinava o dever de casa e levava a mais velha para a escola. Chegava às 8h e saía às 18h. Em seguida ia para o colégio”, relembra. “Vivíamos uma fase muito difícil. Meu pai desempregado. Chegamos a ficar dois meses sem água nem luz. Quando meu pai conseguia pagar algumas contas, passava um mês e eles vinham cortar de novo. Às vezes não ia para a escola porque não tinha água para lavar o uniforme. Uma luta.”
“Eu fui muito humilhada em uma das casas em que trabalhei. E o pior: por uma criança de 10 anos. A mãe não falava nada. A menina deixava as coisas espalhadas só pra eu catar e ainda dizia: ‘Você é a minha empregada. Se não estiver satisfeita, tem muita gente querendo trabalhar’”, abre-se. “Tinha a obrigação de ir buscar o pão todos os dias. As pessoas da casa não comiam o pão amanhecido, que ia sendo armazenado em uma gaveta. Um dia, havia acabado de trazer o pão, fui pegar um pra tomar café. A menina com o dedo em riste falou: ‘Pode deixar esse pão aí. O seu está na gaveta!’ Os pães estavam mofados (lágrimas)… Cheios de bolor (lágrimas).”
“Esse é um assunto do qual me lembro só quando a memória me cobra, como agora. Não vejo sentido em ficar recordando algo que me machuca. O que me interessa é o que eu consegui fazer da minha vida. O barato não está no fato de eu ter sido empregada doméstica e agora estar dando esta entrevista, mas no fato de eu nunca ter duvidado de que aquela não era a vida que eu merecia, que eu podia muito mais”, apruma-se, limpando as lágrimas. “É como se tivesse uma voz no meu ouvido que dissesse: ‘Vai, Luana. Olha pra frente. Segue. Caminha’.”
Luana ainda tem cabelinho nas ventas. Outro dia, numa solenidade na UFMG, encontrou um vizinho, que, ao vê-la lá, perguntou espantado: “O que você está fazendo aqui?” Ela respondeu: “MEU LUGAR É AQUI!”
Com certeza. Luana representa o Brasil que desejamos. Brasil de cidadãos e cidadãs conscientes do seu valor e de seus direitos. Mulher, negra, de origem humilde, trabalhadora, que soube se impor e deu uma virada na sua vida.  Mas que não se acomoda. Batalha solidariamente para que outros consigam também. Vocês  vão ouvir falar muito – e BEM! – dessa mineira de BH, que deu boas risadas durante a nossa conversa, mas que também lacrimejou várias vezes (desculpe-me, por isso, Luana!) ao recordar certos períodos da sua vida. Eis a íntegra da entrevista.

Viomundo — Quem é Luana Tolentino hoje?
Luana TolentinoUma pessoa muito VIVA. Acho que é o que melhor me define. Uma pessoa inquieta, angustiada com as injustiças e certa de que falta muito para termos, de fato, um país democrático, mas que, sem sombra de dúvidas, estamos no caminho certo.

Viomundo — O que é ser mulher e negra no Brasil 2012?
Luana Tolentino — Elisa Larkim, que é outra pesquisadora, diz que “a situação da mulher negra é o próprio retrato da femininização da pobreza”.
Eu concordo. Ao longo da história, a mulher negra sempre teve sua imagem ligada à sexualidade, ao erotismo e ao exotismo, ou comercializada como produto de exportação de baixo custo. Basta ver a forma como é representada nas telenovelas, no cinema e na literatura. Pesa, de forma descomunal, sobre os nossos ombros os quase quatro séculos de escravidão a que a população negra foi submetida.
Há sempre a expectativa de que ocupemos posições subalternas, que estejamos sempre prontas para servir os outros. Mesmo depois de ter deixado o trabalho doméstico, ao me dirigir a alguns prédios da Zona Sul de BH,  por diversas vezes,  fui interpelada pelos porteiros: “Você é a nova faxineira do prédio?” Quando ascendemos socialmente, somos sempre vistas como pessoas “fora do lugar”.
Aliás, outro dia, numa solenidade na UFMG, encontrei um vizinho, que, ao ver-me lá, perguntou espantado: “O que você está fazendo aqui?” Eu respondi: “MEU LUGAR É AQUI!”
Além de lutar contra o machismo, temos que lutar contra os preconceitos de raça e classe. Somos triplamente discriminadas.
Vejo a criação dos grupos de Mulheres Negras na década de 1980 como um divisor de águas da nossa história. A partir do momento em que as mulheres negras não se viam representadas no Movimento de Mulheres, começaram a fundar suas próprias organizações e, assim, deram maior visibilidade às nossas especificidades. Minha mãe estudou apenas até a segunda série do fundamental. Eu e minha irmã chegamos à universidade.

Viomundo — Na sua casa, são quantos?
Luana Tolentino — Sou gêmea univitelina, mas a minha irmã não está mais aqui. Então somos 3. Dennis, meu irmão mais velho,  é enfermeiro. A Miriam, minha irmã do meio, estudou Nutrição. E eu, a filha caçula. Minha mãe estudou somente até a segunda série e meu pai terminou o ensino fundamental. Sempre trabalharam no comércio. Ambos têm hoje um pequeno restaurante.
 
Viomundo — Com quantos anos começou a trabalhar?
Luana Tolentino — Aos 13, como babá, na casa de uma tia. Cuidava de duas primas e fazia alguns serviços domésticos. Ensinava o dever de casa e levava a mais velha para a escola. Chegava às 8h e saía às 18h. Em seguida ia para o colégio. Vivíamos uma fase muito difícil. Meu pai desempregado. Chegamos a ficar dois meses sem água e sem luz. Às vezes não ia para escola porque não tinha água para lavar o uniforme. Uma luta.
Depois, com a situação ainda muito difícil, comecei a trabalhar como empregada doméstica. Chegava às 7h e saía às 18h. Era muita coisa pra fazer. Eu tinha 15 anos. Lembro da primeira coisa em que a dona da casa me disse: “Você pode trabalhar aqui, mas não temos condições de assinar a sua carteira”. Essa é uma realidade muito comum no serviço doméstico. Depois, fui trabalhar como faxineira em dois apartamentos num bairro de classe média alta. Chegava às 7h e saía, no máximo, às 15h, pois apartamento não tem quintal para limpar, né?

Viomundo — Sei que passou maus bocados em alguns desses empregos.
Luana Tolentino — Esse é um assunto sobre o qual normalmente não falo, exceto quando a memória me cobra, como agora.

Viomundo – Por quê?
Luana Tolentino – Eu não vejo sentido em ficar lembrando de algo que me machuca. O que me interessa é o que eu consegui fazer da minha vida. Acho que o barato dela não está no fato de eu ter sido empregada doméstica e agora estar dando essa entrevista para você, nas no fato de eu nunca ter duvidado que aquela não era a vida que eu merecia, que eu podia muito mais.
Acho que aprendi muito cedo que devemos sempre olhar pra frente. É como se tivesse uma voz no meu ouvido que dissesse: “Vai, Luana. Olha pra frente. Segue. Caminha”.
É assim que levo a minha vida. Acho que é por isso que não tenho mágoa de nada nem de ninguém.
Mas, inegavelmente, a fase de doméstica foi uma época muito difícil. Em uma das casas em que trabalhei fui, particularmente, muito humilhada. E o pior: por uma criança de 10 anos. A mãe dele era indiferente a isso. Não falava nada. A menina deixava as coisas espalhadas só pra eu catar e ainda dizia: “Você é a minha empregada. Se não estiver satisfeita, tem muita gente querendo trabalhar!”
Tinha a obrigação de ir buscar o pão todos os dias. As pessoas da casa não comiam o pão amanhecido, que ia sendo armazenado em uma gaveta. Um dia, havia acabado de trazer o pão, fui pegar um pra tomar café. A menina com o dedo em riste falou: “Pode deixar esse pão aí. O seu está na gaveta!” Os pães estavam mofados (lágrimas)… Cheios de bolor (lágrimas).
A casa era imensa. Três banheiros e um quintal enorme que tinham que ser lavados todos os dias. Um dia fui calçar os sapatos para ir para escola e não consegui. Senti muita dor. Quando vi, de tão rachados, meus pés minavam sangue. Chegava às 7 e saía às 18h. Minha patroa (odeio essa palavra!) dizia que eu era muito mole.
Não esqueço do último dia em que trabalhei lá. Estava no andar de cima e ela, lá embaixo, dizendo que eu era mole, que mexia nas coisas dela, que havia comido as maçãs que estavam na geladeira. Tudo mentira! Eu já não aguentava mais. Trêmula, desci as escadas. Era a hora do almoço. Falei pra ela (lágrimas): “Esse é o último dia que eu trabalho aqui”. Se fazendo de desentendida, ela perguntou: “Por que você não me falou antes, Luana?” Eu respondi: “Estou indo embora porque ouvi você dizer que eu mexo nas suas coisas e comi as maçãs que estavam na geladeira. Coisa que nunca fiz!”
Virei as costas e fui embora correndo. Não pensei em dinheiro, não pensei em nada. Aí, eu chorei. Chorei muito. No dia seguinte, ela foi lá em casa pedir para que eu voltasse. Não voltei. Daí, comecei a trabalhar como faxineira em apartamentos num bairro de classe média alta de BH. No começo, ajudava a minha mãe. Depois, passei a trabalhar sozinha.
Em um deles, o dono da casa não me oferecia nem água. Às vezes passava o dia sem comer nada, pois em diversos momentos o almoço na minha casa só ficava pronto depois que minha mãe e eu chegávamos com o dinheiro da faxina (lágrimas…). Mas eu me vingava dele. Não tenho problemas em dizer isso.

Viomundo – De que maneira?
Luana Tolentino — Tinha prazer de deixar uma lista enorme de produtos para ele comprar. O que podia ser usado em um mês, eu gastava em 15 dias. De propósito. Acho que isso mostra que, embora tivesse apenas 16 anos, eu possuía consciência da exploração que vivia.
Mas nem tudo foi tristeza. Trabalhei num outro apartamento nesse mesmo bairro. O dono do apartamento me tratava com muito carinho. Ele dizia que gostava muito de mim. Dizia que eu vivia sorrindo. Elogiava o meu trabalho. Ele era gaúcho. Eu sabia muita coisa sobre a imigração. Ficava perguntando de qual país a família dele veio, como era a vida no sul. Falava da Segunda Guerra. Acho que ele gostava disso. Ele falava: “Você é muito inteligente, menina!” (risos…lágrimas). Quando eu chegava lá para trabalhar, ele dizia: “Luana, você pode comer o que você quiser. Não precisa pedir”. E quando eu chegava em casa, falava dele. Falava com carinho também, com alegria.

Viomundo – O que mais te marcou?
Luana Tolentino — Foi uma época de muito sofrimento, né? Em todos os sentidos. O tempo todo sendo humilhada, sendo aviltada, um monte de gente se achando no direito (lágrimas) de me tirar o que tenho como um princípio básico: a condição de ser humano que merece ser tratada com respeito (lágrimas).
Por outro lado, prefiro lembrar que, mesmo diante disso tudo, fui em frente. Criei recursos para suportar. Não desisti. Batalhei. Revidei. Virei o jogo. Além disso, penso que a vida foi generosa comigo. Sempre me deu muito. Tenho pais que não fizeram outra coisa na vida a não ser trabalhar para que meus irmãos e eu pudéssemos ser quem somos. A vida colocou pessoas boas no meu caminho que foram essenciais para que eu chegasse até aqui.

Viomundo – E essa história de que fez parte do grupo que a Globo ouviu para a novela, como foi isso?
Luana Tolentino — Foi por culpa do Viomundo (risos e mais risos). A pesquisadora chegou até mim por causa do texto das babás, que vocês publicaram. Ela estava fazendo uma pesquisa sobre o trabalho doméstico no Brasil e queria saber da minha história, das minhas experiências para construção do núcleo de empregadas domésticas. Sei que questões importantes, como a questão racial, não serão discutidas na novela. É um produto feito para entreter, com alguns padrões a serem seguidos, padrões invariavelmente racistas e machistas. Mas o fato de a pesquisadora ter pensado em apresentar empregadas de forma mais humanizada e menos estereotipada a partir da minha história me deixou muito feliz.

Viomundo – Você assiste à novela?
Luana TolentinoPrefiro não assistir  (risos).

Viomundo – O que acha de chamarem as domésticas de secretarias do lar?
 Luana Tolentino – Como diz a minha mãe, de boas intenções, o inferno está cheio.

Viomundo — Você trabalhou nessa área até quando?
Luana Tolentino — Dos 13 aos 17. Aí, consegui um emprego em telemarketing. Quando entrei na faculdade, voltei a trabalhar como faxineira para conseguir pagar os meus estudos.  Me fFormei no Centro Universitário de Belo Horizonte, uma faculdade particular. Trabalhava de segunda a sexta no telemarketing e, aos sábados, fazia faxina. Foi assim durante o primeiro ano da faculdade.
No telemarketing, especificamente, enfrentei novo tipo de barreira: o fator raça. Numa empresa, soube que a gerente, embora tivesse gostado muito de mim durante a entrevista,  ficou em dúvida pelo fato de eu ser negra. A vaga era para o setor de atendimento. Felizmente, fui contratada e os melhores números em vendas eram meus. Em outra empresa, eu era operadora de telemarketing e a gerente me colocou para lavar o banheiro. Pedi demissão e denunciei o fato ao Centro de Integração Empresa Escola. Eu tinha 17 anos. Em compensação, fui muito bem tratada na última empresa de telemarketing em que trabalhei antes de me formar.  Fui feliz lá. Era a única negra fora da área de serviços gerais.

Viomundo — O que é mais duro no emprego de doméstica?
Luana Tolentino — É o tratamento dado às empregadas domésticas, que muitas vezes são responsáveis pela criação e educação dos filhos dos patrões, que muitas vezes lhes devotam o amor de um filho. Não existe outra profissão que traga de maneira tão forte os resquícios dos anos de escravidão vividos no Brasil.
Eu me lembro bem da discussão em torno da regulamentação do emprego doméstico. Boa parte da elite e da classe média ficou enfurecida: “Vai gerar muito desemprego, porque não temos condições de arcar com as exigências da Lei”.
O Grupo Antiterrorista de Babás, do qual falei no texto publicado aqui, é uma prova disso. Um grupo de mulheres que se une para “combater” empregadas que reivindicam direitos concedidos a qualquer trabalhador: férias, folgas semanais, 13º salário. Isso mostra a forma como as trabalhadoras domésticas são vistas por muitos: pessoas de segunda categoria, que não merecem qualquer tipo de benefício.
Mas eu me alegro muito ao perceber que isso está mudando. Já se fala em “revolução das empregadas domésticas”. É um trabalho que tem se tornado cada vez mais caro e escasso. Tem havido uma mobilidade considerável. Mulheres que exerciam essa função têm migrado para outras áreas, ingressando em cursos técnicos e no ensino superior. Isso é maravilhoso!

Viomundo – Quando faxinava, lavava quintal, banheiro, te passava pela cabeça que hoje seria professora de História e pesquisadora de grupos de estudos da UFMG?
Luana Tolentino — Às vezes eu me faço essa pergunta. Nunca passou pela minha cabeça que eu seria empregada doméstica pra sempre. Eu me via fazendo as coisas que eu faço hoje. Juro! Quando lavava o banheiro, por exemplo, ficava imaginando a roupa que eu vestiria para fazer uma palestra – camisa branca, calça social e um scarpim de salto alto (risos). Me imaginava escrevendo. Fazia isso para amenizar tudo aquilo e também porque acreditava que era isso o que eu iria fazer.
Acho que nasci professora. Aos 10 anos, alfabetizei uma criança de 5. Quando entrou na escola, ela já sabia escrever o nome, o alfabeto, os números. Tudo ensinado por mim. Mas não me imaginava professora, afinal de contas, todo mundo dizia que ser professor não era bom, era loucura, ganhava mal e todas as leituras que as pessoas fazem da profissão, que, de certo modo, têm um fundo de verdade.
Mas também não conseguia pensar em nenhuma outra profissão (risos…).  Então, só aos 48 minutos do segundo tempo, quando não tinha mais jeito, aceitei (acho que essa é a melhor palavra) que seria professora. Aceitei na hora de fazer o vestibular. E hoje quando entro em sala de aula, quando atravesso os portões da UFMG, quando publico um texto aqui no Viomundo e vejo um monte de comentários, não sei explicar o que sinto. Gosto de olhar para a minha estante e ver que tenho uma infinidade de livros. Já não sei quantos são. É uma sensação de alegria, meu coração palpita. Não sei explicar.  Me sinto realizada.

Viomundo — Por que História?
Luana Tolentino — Nunca gostei da área de Exatas. Acho que História tem a ver com o meu desejo de querer mudar o mundo. Sou uma sonhadora, questionadora, “malcriada”. Sempre fui assim.

Viomundo — Como avalia a situação hoje do professor da rede pública de Minas?
Luana Tolentino — A situação da educação mineira não difere muito da de outras regiões do país. Baixos salários, escolas com falta de estrutura, violência contra professores. O ensino é precário. As escolas não cumprem o papel de formar cidadãos críticos, participativos. Poucos alunos conseguem ingressar em universidades públicas. A evasão é muito grande. Assim como é muito grande o número de alunos que conclui o ensino médio sem conseguir escrever corretamente nem ler e compreender um texto.
Estamos brigando por um direito que é nosso: o piso salarial, que também é baixo dada a importância da nossa profissão. E não há nenhum movimento por parte do Governo de que indique que essa situação irá mudar a curto prazo. Mas eu sou uma “realista esperançosa”. Minha preocupação maior  é com o meu trabalho, com o que eu posso fazer pelos meus alunos. Não estou satisfeita com as condições de trabalho oferecidas e espero em breve estar exercendo a minha profissão em outro lugar.
 
Viomundo – Mas está feliz com o que tem conseguido fazer atualmente?
Luana Tolentino – Muito! Amo o que faço. Dou aula na periferia. Trabalho principalmente a questão da cidadania e a questão racial. É muito bom ver os alunos mais confiantes, autoestima elevada, questionando a vida,  escola, o governo. Cada avanço é uma vitória pra mim.
Na última sexta-feira, levei um escritor de Cabo Verde lá na escola. Os alunos ficaram vidrados. Eram160 em silêncio numa quadra para ouvi-lo. Tiveram oportunidade de conhecer Pedro Matos, escritor africano que fala e escreve em cinco idiomas, faz Mestrado na UFMG, conhece a Europa. Enfim, pudemos desmistificar uma série de estereótipos negativos que eles tinham em relação à África. Eles se sentiram valorizados. Acredito que nunca esquecerão deste dia.

Viomundo — Sei que você lê muito. Sempre foi assim?
Luana Tolentino -- Na infância, o único presente que eu me lembro do meu pai ter dado a mim e a meus irmãos foi uma coleção de clássicos infantis.  Meu pai sempre priorizou a nossa educação. Não tínhamos TV em cores, vídeo-cassete, brinquedos… Mas, no início do ano, o material escolar estava todinho lá.
Além disso, meu pai é um homem que sempre leu muito. Ele lê qualquer coisa: jornal velho, bula de remédio, rótulo de maionese (risos). É um homem muito inteligente. Conversa sobre qualquer assunto. Então acho que esse gosto pela leitura veio dele.
Na adolescência, eu lia muito porque sonhava ser inteligente. Na minha cabeça ser inteligente era ler livros, assinar jornais, fazer palestras, dar entrevista no programa da Leda Nagle (risos), ouvir Chico Buarque, escrever livros, ter uma biblioteca em casa. E eu fui atrás desse sonho (lágrimas…).
Achava que gente inteligente lia a Veja (risos…). Tanto que, aos 16 anos assinei a Veja. (risos…). Aos 18, assinei a Folha. Hoje eu sei que, nessa área, fiz tudo errado! (risos…).
Quando cheguei à Faculdade, já conhecia muito de música brasileira: Chico Buarque, Dolores Duran, Elis, Paulinho da Viola. Meu interesse era pelo “lado B” da obra desses artistas. Afinal de contas, o “lado A” todo mundo conhecia.
Já havia lido Sartre, Dostoievski e muita coisa de literatura brasileira — Jorge Amado, Clarice Lispector, Graciliano Ramos (foi lá que aprendi o significado da palavra pederasta – achei o máximo!), Antonio Callado (ali entendi o que foi a ditadura militar), Machado, Lima Barreto (acho que foi ele que despertou a Luana militante do movimento negro) e muitos outros. Lendo Zélia Gattai comecei a me interessar por essas coisas de esquerda.  Aí, eu descobri que ler a Veja não era coisa de gente inteligente (risos…). Amava as crônicas do Nelson Rodrigues. Tudo pelo meu sonho de ser inteligente (lágrimas).
Se você observar, os autores que eu lia dizem muito sobre a maneira como eu vejo o mundo. Hoje vejo que isso era uma fuga. Tinha que fugir da vida difícil, das humilhações e do racismo, sim! Eu podia até não entender bem o que era racismo, mas na infância e na adolescência somos assolados por ele da forma mais perversa, através dos apelidos, das discriminações, da indiferença dos professores na escola.
Voltando à questão da fuga, às vezes eu pensava: “Luana, suas amigas não lêem a Folha e são felizes do mesmo jeito. Por que, em vez de pagar a assinatura da Folha você não compra um sapato?” Era um conflito muito grande. Mas eu não tenho dúvidas de que tudo isso valeu a pena. Boa parte da minha formação está aí.
Atualmente, leio mais textos acadêmicos e livros e artigos sobre a questão racial do que literatura. Além de historiadora, pesquiso literatura de autoria feminina e participo de um grupo de Literatura Afro-Brasileira, ambos na UFMG. Tenho bolsa numa pesquisa sobre imprensa feminina. Sinto falta de ler coisas sem compromisso, entende?

Viomundo – E o Estatuto da Igualdade Racial, como o avalia?
Luana Tolentino — No momento da aprovação, em 2010, houve um clima de decepção em função da questão das cotas terem ficado de fora. Passados dois anos, aqui estamos comemorando a decisão do STF [Supremo Tribunal Federal]. Ótimo, não? Isso é sinal de que avançamos. Por outro lado, a punição dos crimes de racismo ainda é muito pequena e um dos pontos principais do Estatuto era a criação de mecanismos para a punição efetiva desse tipo de delito. Políticas públicas em favor da juventude negra precisam ser postas em prática urgentemente. Tem acontecido um genocídio silencioso de jovens negros nas periferias do Brasil e pouca coisa tem sido feita para mudar essa realidade.

Viomundo — O que achou da surra que o DEM levou no STF em relação às cotas raciais?
Luana Tolentino – Foi de lavar a alma. Infelizmente eu não pude acompanhar a votação, meu computador estava sem áudio. Entendo a decisão do STF como o começo de um novo tempo. E, claro, de muitas lutas. Mas uma coisa precisa ser dita: a aprovação da Constitucionalidade das Cotas não foi uma concessão do Supremo Tribunal Federal. Assim como a implementação da lei 10.639/03, que tornou obrigatório o ensino da História dos Africanos e dos Afro-Brasileiros no currículo escolar, não foi uma benesse do governo Lula. Todas essas medidas que visam à equidade racial são fruto de lutas e reivindicações do Movimento Negro. Aqui, quando falo em Movimento Negro não estou me referindo apenas às Organizações ou aos Grupos, mas a todas as manifestações de apoio à causa negra. Sem a participação dos movimentos sociais nada disso teria sido possível.
 
Viomundo — O que diria para aqueles que continuam a condenar as cotas raciais?
Luana Tolentino — Sempre que a questão das cotas vem à tona penso logo no que foi dito pelo antropólogo Kabengele Munanga: “Qualquer proposta de mudança em benefício dos excluídos jamais receberia apoio unânime, sobretudo quando se trata de uma sociedade racista”. Eu acrescento: “Uma sociedade racista que não se assume como tal”.
Pesquisas realizadas por órgãos do Governo não deixam dúvidas quanto à situação de exclusão na qual vive a população negra no país. Não se pode admitir que um país onde mais de 50% da população é afrodescendente, apenas 4% dos afrodescendentes estejam matriculados em instituições de ensino superior. As cotas, como já foi comprovado em experiências realizadas em outros países, são um método eficaz de reparação e combate às desigualdades socioeconômicas. Ser contra as cotas é ser contrário também à existência de uma sociedade justa e igualitária.

Viomundo — Tem gente que diz que é a favor de cotas para os pobres e contra para os afrodescentes. O que tem a dizer sobre isso?
Luana Tolentino — Esse é um argumento muito utilizado pelos contrários às ações afirmativas. Esse fundamento advém do famigerado mito da democracia racial que, infelizmente, 80 anos depois de sua criação permanece muito vivo no imaginário coletivo. A idéia de que somos todos mestiços cumpre o papel de escamotear a discussão acerca das desigualdades provocadas pelo racismo e pela discriminação racial. Essas pessoas “esquecem” que as camadas pobres da sociedade são ocupadas majoritariamente por negros e pardos. Também que esse segmento da população é mais vulnerável à violência e enfrenta maiores dificuldades no acesso a bens públicos.

Viomundo – Você às vezes nos manda denúncias sobre racismo na propaganda. Acha que estamos melhorando nessa área?
Luana Tolentino — Sim. E mais uma vez devido às ações do movimento negro. O caso da propaganda da Caixa foi uma vitória inesquecível. A Caixa foi obrigada a refazer o comercial. E, mesmo depois de tudo esclarecido, eu ainda fui obrigada a ouvir: “O Machado de Assis não pode ser negro só porque você quer”.
Não é fácil lutar contra a ignorância. Mais recentemente o Conar [Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária] determinou que a cervejaria Devassa alterasse o comercial em função do teor racista e sexista. E, por fim, o cantor Alexandre Pires foi convocado a prestar esclarecimentos ao Ministério Público em função da conotação racista do vídeo Kong, onde pessoas são comparadas a macacos. Ah, já ia me esquecendo. O Azeite Gallo também foi obrigado a mudar sua peça publicitária.

Viomundo — Pelo que eu sei, você votou na presidenta Dilma. O que está achando do governo dela até agora?
Luana Tolentino – Eu tenho acompanhado mais de perto a questão dos movimentos sociais. E nesse segmento vejo que há insatisfação. Grupos de mulheres, homossexuais, indígenas e sem-terra têm criticado o retrocesso no que diz respeito à formulação de políticas públicas que garantam os direitos desses segmentos. Me preocupam  o aumento da violência contra os homossexuais e as mortes no campo. Também os impactos que podem ser trazidos pela construção da usina de Belo Monte e a aprovação do novo Código Florestal. Tem-se enfatizado que somos a 6ª maior economia do mundo, mas não consigo digerir que um país que atingiu este patamar tenha um sistema de educação pública tão deficiente e precário.

Viomundo — O que sonha para você?
Luana  TolentinoAcho que já sonhei muito (risos…). Agora eu quero é realizar.

Viomundo – E para o Brasil?
Luana Tolentino — Meus sonhos para o Brasil vão além das questões políticas e econômicas. Desejo que um dia todos nós, independentemente do que somos e das nossas escolhas, possamos ser respeitados e tratados como iguais, como semelhantes.

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